Há quem ache que não há qualquer razão para a existência de bancos privados desde que estes detêm, como de facto detêm, o poder de criar moeda, uma antiga prerrogativa do Estado.
Prerrogativa do Estado é como quem diz; que na realidade o que o Estado faz, e o que deixa de fazer, sempre foi o que o soberano quis. E o soberano quis com frequência desvalorizar a moeda metálica, falsificando-lhe a composição em metais nobres mas retendo o valor nominal, para financiar as suas guerras e os seus delírios de grandeza, na ilusão, tão velha como o mundo desde o tempo dos lídios, que a moeda é em si mesma a riqueza, em vez de simplesmente a representar. Esta degradação foi facilitada com o papel-moeda, que já nem dava sequer o trabalho de cunhar, e o fim do padrão-ouro em devido tempo, e atingiu, ao termo de uma evolução de séculos, o actual esplendor, primeiro com meros lançamentos de registos em papel e agora, em respeito à preservação das florestas, com transacções electrónicas.
Os bancos privados, quando nasceram, deram provas de saber como fazer frutificar os recursos postos à sua guarda, de tal forma que cedo começaram a emprestar ao soberano. E descobriram um pouco mais tarde que, já que o sistema repousava na confiança do depositante de que o seu dinheiro estava aplicado com critério, e que seria adequadamente remunerado e reembolsado, emprestar um múltiplo dos depósitos detidos era apenas uma extensão da confiança.
Com uma ou outra ocasional falência espoletada por uma corrida aos depósitos, o sistema podia funcionar. Mas não se o desastre de um banco se comunicasse aos outros - o famoso risco sistémico. E isso, infelizmente, sucedeu algumas vezes, a última há pouco, com a agravante de, desta vez, haver pouca gente que tendo beneficiado de anos a ganhar fortunas à boleia de prémios de desempenho tenha perdido o que especulativamente ganhou, e menos ainda gente a saltar pela janela.
Consequências de organizações too big to fail, e de equipas de gestão sob pressão para realizar mais-valias de qualquer maneira, a curto prazo, certas de que empochados os prémios milionários quem viesse atrás que fechasse a porta.
É nisto que estamos. E então como é, nacionalizamos os bancos todos?
Não há sociedades desenvolvidas sem bancos privados; os bancos públicos, onde existem, nunca deram qualquer sinal de se distinguirem pela qualidade da gestão, e pelo contrário são invariavelmente mais burocráticos, menos competitivos e mais sensíveis à influência do poder político do dia; e das crises dos bancos, que acompanham quando não provocam as crises cíclicas do capitalismo, sai-se para novos períodos de crescimento, enquanto em todos os países onde a banca é ou foi integralmente pública crises não houve - nem crescimento, criação de riqueza, liberdade económica ou sociedade de consumo. O que há, hélas, e mesmo assim com excepção de uma casta de dirigentes do Partido, é igualdade na miséria e violência do Estado para negar direitos básicos de cidadania.
A "nossa" Caixa Geral de Depósitos era, no tempo do Estado Novo, uma instituição sólida, e dispunha de consideráveis vantagens quer em clientes cativos (as autarquias, por exemplo, era lá que se financiavam) quer em depositantes (muitos funcionários públicos e serviços do Estado, igualmente por exemplo). A gestão não era, nem tinha de ser, competitiva, bastava-lhe ser rigorosa e comedida.
A CGD transformou-se porém, com o regime democrático, num bicho anómalo: mais dependente ainda do poder político que a banca privada, imaginou-se que podia ser com naturalidade uma estância para gestores de aviário oriundos do Centrão; e que com este enquadramento seria um banco como os outros, competindo com naturalidade num mercado em que a promiscuidade entre o Estado e a banca era de tal ordem que se poderia julgar que, pública ou privada, a banca era tudo farinha do mesmo saco. E é claro que, sendo um banco igual aos outros, permitiu-se que os seus gestores, em nome da necessidade de atrair os melhores, tivessem as regalias pornográficas que são a norma no sector, tudo sob a supervisão de um organismo pletórico e invisual, ele próprio uma gigantesca inutilidade e um depósito de parasitas pagos a peso de ouro.
Mas não era. Bastou que viesse um governo particularmente corrupto, e particularmente inconsciente no seu intervencionismo demente, para que a CGD viesse a ter necessidade de sucessivos aumentos de capital. E mesmo que a queda do BES dê a impressão de que os casos são iguais, não são: o BES pagou o preço de uma gestão arriscada e de um crescimento desmedido para a miséria de capital com que reiniciou a sua actividade aquando da privatização, e não sobreviveu a uma crise séria, nem à alteração pelo BCE dos critérios de necessidade de capital, nem a um governo menos susceptível à influência do seu poder de facto, falindo. Os seus accionistas perderam tudo, os seus gestores têm para anos de opróbrio e infindáveis sarilhos judiciais e o contribuinte perdeu, e continua a perder, o necessário para evitar o tal risco. Mas o BES acabou.
A Caixa não acabou. E como não acabou e como estava na realidade falida, enxertou-se-lhe uma administração sem o troca-tintismo de numerosos elementos de administrações pretéritas, aumentou-se-lhe mais uma vez o capital, pôs-se uma tampa sobre as loucuras, as aldrabices e as moscambilhas do passado, e declarou-se: Agora é que vai ser ̶ até ao próximo aumento de capital, bem entendido.
Ou talvez não. Que a nova administração resolveu encerrar agências, despedir pessoal (pagando-lhe, em nome da paz social, o que uma empresa privada falida não paga), aumentar os preços dos serviços que presta e dos que imagina prestar, e assaltando com descaramento as contas dos depositantes. Tudo com a bênção do governo (que há muito tornou impossível às empresas pagar em dinheiro, ao contribuinte não ter uma conta bancária e ao cidadão fazer transacções que o Estado desconheça), a cumplicidade dos outros bancos, que vão atrás quando não iam à frente, e o Banco de Portugal, que preside com mansuetude ao roubo organizado.
É de roubo que se trata, e talvez inevitável desde que o BCE inventou que a solução para a crise era tornar o crédito tão barato que nem o depositante é remunerado, nem a margem do banco consente financiamento à economia a não ser com garantias que administrações acéfalas exigem por não saberem avaliar o risco, nem a actividade bancária atrai investidores, nem o futuro da banca tradicional está assegurado, nem os bancos, que deviam ser pequenos, cessam de se conglomerar.
Desastre mais completo não há. E parece evidente que Portugal, que perdeu a sua independência há muito, é um mero receptor de decisões alheias, nesta área com maior nitidez ainda do que noutras.
Seja, o que tem de ser tem muita força. Conviria porém que a casta de gestores que o poder democrático engendrou à boleia do sector público da economia cessasse de sugar um país exangue para fingir que é depositária de competências especiais que lhe justificam as prebendas. Não é, como se prova pela litania de falências, intermináveis ajudas do Estado e promiscuidades sortidas.
O que Paulo Macedo está a fazer na Caixa é provavelmente o que, nas circunstâncias actuais e querendo preservar a sua propriedade pública, tem de ser feito. Mas não se entende que o mesmo cidadão que acha normal pagar o modesto estipêndio que atribui ao Presidente da República e aos membros do Governo encare com equanimidade pagar fortunas a quem desempenha, dentro do Estado, funções que nada têm de mais complexo. E não se diga que são necessárias competências especiais e que elas só se encontram no sector bancário. Porque, mesmo que fosse o caso (e não é, a banca de propriedade portuguesa praticamente desapareceu, não obstante os milhões que o Estado lhe emprestou, o que diz alguma coisa sobre as sumidades que a administraram) desempenhar funções de topo no serviço público deveria ser um privilégio - mais o de servir e menos o de servir-se.
Ao trabalhador cujo miserável ordenado é depositado em conta que a banca assalta para garantir resultados talvez tudo isto interesse pouco, salvo para o confirmar na ideia de os de cima serem uma quadrilha de ladrões.
São. E não é porque se nomeiam comissões que têm a especial incumbência de determinar a extensão do roubo que este deixa de o ser. Mais ainda se os próprios membros dessas comissões ganham, pelo esgotante trabalho de coçarem as costas aos administradores, ordenados obscenos que o ministério das Finanças lhes manda pagar, decerto porque o titular da pasta, como muitos dos anteriores, acha que virá a fazer parte do sistema de portas giratórias que é a norma perversa que a extensão do sector público, a promiscuidade com o Estado, e a corrupção dos costumes, engendraram.
Tem de ser assim? Não tem. O assunto foi há muito bem resolvido. E é uma medida da degradação do nosso regime democrático que a comparação com outros tempos resulte, neste aspecto, desfavorável. É que este diploma dizia, na alínea e) do seu art.º 1º:
"Que beneficiem de financiamentos feitos pelo Estado ou por ele garantidos, bem como as empresas de navegação consideradas de interesse nacional, quando o Estado para elas deva nomear, ou nomeie, delegados ou administradores - quer se revistam da forma de administração, direcção, comissão executiva, fiscalização, ou qualquer outra, não podem perceber remuneração superior à atribuída aos Ministros de Estado".
Os outros artigos e alíneas são igualmente edificantes, numa lei que se lê num ápice. De brinde, está redigida em português, hoje uma raridade. A seriedade também.
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