Segundo resgate? "É conversa que se tem quando não há outra para ter", diz Marcelo. Tem autoridade para dizer porque o país se habituou há muito a ouvir-lhe palavras raras, mas sempre oportunas e profundas, e nunca, mas nunca, comentários superficiais sobre os casos e os livros da semana, do mês ou do ano, incluindo as novidades do Borda d'Água, quem morre ou quem deu à luz, quem foi premiado lá fora ou cá dentro, o que quis realmente dizer quem disse alguma coisa, as intenções evidentes e ocultas dos actores políticos, tanto de Portugal como dos Estados Unidos ou do Bangladesh, o desempenho da selecção de todos nós e a do Braga que diz estar-lhe no coração.
Isto sem esquecer a emaranhada situação política em Celorico de Basto, concelho a cuja Assembleia Municipal presidiu com mérito depois de ter desempenhado iguais funções em Cascais; nem a longa lista de organizações a que pertenceu, nas quais quem o acompanhou recorda que Marcelo, sempre que oportuno, isto é, quando aparecia, falava.
Deste intenso labor a história regista o caso da vichyssoise, o mergulho no Tejo e o passeio como motorista de táxi quando foi candidato à Câmara de Lisboa, no primeiro porque aldrabou imaginativamente o cofundador do Independente, nos outros porque inaugurou, nas campanhas eleitorais, a palhaçada popularucha. E não regista mais nada porque ̶ caso singular ̶ ninguém se consegue lembrar de coisa alguma.
Dos cerca de 5000 discursos, e outras tantas entrevistas, com que atravancou, desde há quarenta anos, o espaço público, as pessoas recordam com saudade a agradável sensação de perceberem o que o homem dizia, o que com outros actores nem sempre sucede, e darem por si, frequentemente, a concordar com o Professor. Tanto que milhões se abasteceram de opiniões, semanalmente, nas suas homilias televisivas, podendo perorar com segurança, no barbeiro ou no café, sobre os males da pátria, o aquecimento global, os escritores da moda ou outro qualquer assunto que excitasse as paixões e entupisse a comunicação social.
Estes milhões elegeram-no Presidente da República. Ficaram de fora uns quantos maduros que se dividiram por candidatos sem futuro, e o povo de esquerda - a comunista, a que julga que não o é, e parte dos socialistas.
Marcelo, em campanha, disse nada. E gente arguta pôde assim supor que o homem iria, na presidência, equilibrar o esquerdismo do governo do golpista Costa, pelo que a ausência de ideias claras fosse sobre o que fosse seria apenas uma tática para não afugentar eleitores.
Não lhes ocorreu que Marcelo não tem outra estratégia que não seja a de servir a sua popularidade; e que naquela cabeça não mora nenhuma ideia que preste sobre o passado, ou o futuro, de Portugal e da União Europeia, o equilíbrio das contas públicas, os destinos do Serviço Nacional de Saúde ou o dos carros sem condutor.
Sobre todas estas matérias o que Marcelo quer é consensos. Consensos que não ponham em causa a democracia (que estima moderadamente ̶ se o regime caetanista não tivesse caído dele teria sido uma figura grada), a União Europeia e os respectivos fundos estruturais, a opinião dominante na Academia seja sobre o que for, e a estabilidade, que supõe não um meio para atingir fins mas um fim em si mesma, porque só nela ele pode brilhar e reinar.
É por isso que odeia Passos: este tem algumas qualidades e muitos defeitos. Nas qualidades, não lhe perdoa ter duas ou três ideias acertadas sobre economia e ser cego para o evidente brilho marcelista; e nos defeitos não lhe aceita a manifesta falta de jeito para escolher companhias nem a inabilidade retórica.
O governo actual faz um evidente número de equilibrismo, que consiste em dar do Orçamento directamente o que puder ao maior número de eleitores, tentando ao mesmo tempo contentar os credores pelo expediente de aumentar os impostos de modo a afectar subrepticiamente sobretudo o menor número que ainda tenha alguma coisa de seu, e taxar todos com impostos indirectos embutidos nos preços, de modo a que não se note que são escolhas, dessa forma aproximando-se do exigido equilíbrio orçamental.
Esta estratégia vai falhar (não se cria riqueza acabrunhando-a com impostos nem se diminui a despesa aumentando-a nos rendimentos dos funcionários e pensionistas e comprimindo-a em despesas incompressíveis) mas, enquanto o falhanço não for evidente, agrada aos eleitores miseráveis para os quais alguns Euros a mais no bolso fazem diferença, e que são a maioria. Como a economia não cresce, faz todo o sentido discutir o segundo resgate (o quarto, aliás, em democracia, parte dos mesmos milhões que elegeram Marcelo também elegeram as políticas que já garantiram três falências). Porém, discutir é inerentemente instável, e portanto temos de aguardar pacientemente que a casa comece a desmoronar e haja um novo consenso - o de que esta merda, assim, não pode ser.
Um líder vê mais longe do que os liderados, essa é uma das suas obrigações. Marcelo é porém o tipo de líder que vai atrás da multidão. Elegeram-no? Amanhem-se com ele.
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