Quinta-feira, 6 de Outubro de 2016

Amanhem-se com ele

Segundo resgate? "É conversa que se tem quando não há outra para ter", diz Marcelo. Tem autoridade para dizer porque o país se habituou há muito a ouvir-lhe palavras raras, mas sempre oportunas e profundas, e nunca, mas nunca, comentários superficiais sobre os casos e os livros da semana, do mês ou do ano, incluindo as novidades do Borda d'Água, quem morre ou quem deu à luz, quem foi premiado lá fora ou cá dentro, o que quis realmente dizer quem disse alguma coisa, as intenções evidentes e ocultas dos actores políticos, tanto de Portugal como dos Estados Unidos ou do Bangladesh, o desempenho da selecção de todos nós e a do Braga que diz estar-lhe no coração.

 

Isto sem esquecer a emaranhada situação política em Celorico de Basto, concelho a cuja Assembleia Municipal presidiu com mérito depois de ter desempenhado iguais funções em Cascais; nem a longa lista de organizações a que pertenceu, nas quais quem o acompanhou recorda que Marcelo, sempre que oportuno, isto é, quando aparecia, falava.

 

Deste intenso labor a história regista o caso da vichyssoise, o mergulho no Tejo e o passeio como motorista de táxi quando foi candidato à Câmara de Lisboa, no primeiro porque aldrabou imaginativamente o cofundador do Independente, nos outros porque inaugurou, nas campanhas eleitorais, a palhaçada popularucha. E não regista mais nada porque  ̶  caso singular  ̶   ninguém se consegue lembrar de coisa alguma.

 

Dos cerca de 5000 discursos, e outras tantas entrevistas, com que atravancou, desde há quarenta anos, o espaço público, as pessoas recordam com saudade a agradável sensação de perceberem o que o homem dizia, o que com outros actores nem sempre sucede, e darem por si, frequentemente, a concordar com o Professor. Tanto que milhões se abasteceram de opiniões, semanalmente, nas suas homilias televisivas, podendo perorar com segurança, no barbeiro ou no café, sobre os males da pátria, o aquecimento global, os escritores da moda ou outro qualquer assunto que excitasse as paixões e entupisse a comunicação social.

 

Estes milhões elegeram-no Presidente da República. Ficaram de fora uns quantos maduros que se dividiram por candidatos sem futuro, e o povo de esquerda - a comunista, a que julga que não o é, e parte dos socialistas.

 

Marcelo, em campanha, disse nada. E gente arguta pôde assim supor que o homem iria, na presidência, equilibrar o esquerdismo do governo do golpista Costa, pelo que a ausência de ideias claras fosse sobre o que fosse seria apenas uma tática para não afugentar eleitores.

 

Não lhes ocorreu que Marcelo não tem outra estratégia que não seja a de servir a sua popularidade; e que naquela cabeça não mora nenhuma ideia que preste sobre o passado, ou o futuro, de Portugal e da União Europeia, o equilíbrio das contas públicas, os destinos do Serviço Nacional de Saúde ou o dos carros sem condutor.

 

Sobre todas estas matérias o que Marcelo quer é consensos. Consensos que não ponham em causa a democracia (que estima moderadamente  ̶  se o regime caetanista não tivesse caído dele teria sido uma figura grada), a União Europeia e os respectivos fundos estruturais, a opinião dominante na Academia seja sobre o que for, e a estabilidade, que supõe não um meio para atingir fins mas um fim em si mesma, porque só nela ele pode brilhar e reinar.

 

É por isso que odeia Passos: este tem algumas qualidades e muitos defeitos. Nas qualidades, não lhe perdoa ter duas ou três ideias acertadas sobre economia e ser cego para o evidente brilho marcelista; e nos defeitos não lhe aceita a manifesta falta de jeito para escolher companhias nem a inabilidade retórica.

 

O governo actual faz um evidente número de equilibrismo, que consiste em dar do Orçamento directamente o que puder ao maior número de eleitores, tentando ao mesmo tempo contentar os credores pelo expediente de aumentar os impostos de modo a afectar subrepticiamente sobretudo o menor número que ainda tenha alguma coisa de seu, e taxar todos com impostos indirectos embutidos nos preços, de modo a que não se note que são escolhas, dessa forma aproximando-se do exigido equilíbrio orçamental.

 

Esta estratégia vai falhar (não se cria riqueza acabrunhando-a com impostos nem se diminui a despesa aumentando-a nos rendimentos dos funcionários e pensionistas e comprimindo-a em despesas incompressíveis) mas, enquanto o falhanço não for evidente, agrada aos eleitores miseráveis para os quais alguns Euros a mais no bolso fazem diferença, e que são a maioria. Como a economia não cresce, faz todo o sentido discutir o segundo resgate (o quarto, aliás, em democracia, parte dos mesmos milhões que elegeram Marcelo também elegeram as políticas que já garantiram três falências). Porém, discutir é inerentemente instável, e portanto temos de aguardar pacientemente que a casa comece a desmoronar e haja um novo consenso - o de que esta merda, assim, não pode ser.

 

Um líder vê mais longe do que os liderados, essa é uma das suas obrigações. Marcelo é porém o tipo de líder que vai atrás da multidão. Elegeram-no? Amanhem-se com ele. 

 

Tags:
publicado por José Meireles Graça às 12:05
link do post | comentar

Pesquisar neste blog

 

Autores

Posts mais comentados

Últimos comentários

https://www.aromaeasy.com/product-category/bulk-es...
E depois queixam-se do Chega...Não acreditam no qu...
Boa tarde, pode-me dizer qual é o seguro que tem??...
Gostei do seu artigo
Até onde eu sei essa doença não e mortal ainda mai...

Arquivos

Janeiro 2020

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Links

Tags

25 de abril

5dias

adse

ambiente

angola

antónio costa

arquitectura

austeridade

banca

banco de portugal

banif

be

bes

bloco de esquerda

blogs

brexit

carlos costa

cartão de cidadão

catarina martins

causas

cavaco silva

cds

censura

cgd

cgtp

comentadores

cortes

crise

cultura

daniel oliveira

deficit

desigualdade

dívida

educação

eleições europeias

ensino

esquerda

estado social

ética

euro

europa

férias

fernando leal da costa

fiscalidade

francisco louçã

gnr

grécia

greve

impostos

irs

itália

jornalismo

josé sócrates

justiça

lisboa

manifestação

marcelo

marcelo rebelo de sousa

mariana mortágua

mário centeno

mário nogueira

mário soares

mba

obama

oe 2017

orçamento

pacheco pereira

partido socialista

passos coelho

paulo portas

pcp

pedro passos coelho

populismo

portugal

ps

psd

público

quadratura do círculo

raquel varela

renzi

rtp

rui rio

salário mínimo

sampaio da nóvoa

saúde

sns

socialismo

socialista

sócrates

syriza

tabaco

tap

tribunal constitucional

trump

ue

união europeia

vasco pulido valente

venezuela

vital moreira

vítor gaspar

todas as tags

blogs SAPO

subscrever feeds