O porta-voz da Casa Branca veio informar que as cerimónias de entronização de Trump (entronização é como quem diz, as repúblicas escavacaram a realeza mas copiaram, no geral canhestramente, cortejos, cerimónias e encenações para infundir nas massas o mesmo salutar respeito pela sacralidade do poder que dantes estava a cargo da unção) tiveram "a maior audiência de sempre, ponto final!”.
As redes sociais têm gozado largo, inçadas que estão de fotografias que demonstram que Santo Obama teve, no tempo dele, muito mais gente a assistir. E mesmo que nada garanta que as fotografias tenham sido tiradas à mesma hora, e do mesmo ângulo, e certamente não no mesmo dia da semana, a alegação de Sean Spicer padece do mesmo defeito que muitas do patrão: não são para levar a sério, tinha muito a ganhar se dissesse nada, e seria conveniente que rapidamente o staff, e o próprio, se apercebessem que nem o twitter teve tanta importância na vitória como se diz, nem as pessoas ligam por aí além às redes sociais senão para se aliviarem das suas próprias opiniões, e cascarem nas dos outros, nem o público at large se impressiona excessivamente com o tamanho das manifestações: lá menos do que cá mas ainda assim manifestações são coisas do povo de esquerda, e é assim natural que Obama, para mais negro, isto é, representante físico de uma minoria oprimida, socialista até ao ponto em que um americano ganhador de eleições o pode ser, actor consumado e leitor convincente de speech writers inspirados, tivesse assistências homéricas.
O que é que isso interessa? Nada, governar com a rua é coisa de gangues de droga e comunistas, duas classes de cidadãos das quais é desejável um certo grau de afastamento. E por isso uma provável aldrabice em torno da querela sobre quantos espectadores estiveram realmente no Capitólio é um mau negócio.
Trump tem de entregar: criar condições para que a economia cresça e os empregos nasçam, cortar na despesa pública que não seja investimento, libertar as forças produtivas da inovação e da criatividade que a regulamentação sufoca, eliminar os obstáculos que as fantasias sobre o aquecimento global e os combustíveis fósseis estabeleceram, obrigar os aliados a suportarem uma parte da despesa militar mesmo que isso abane alianças, combater a criminalidade e limitar a imigração de elementos que comprometam a sociedade wasp - tornar a América grande, outra vez.
Porque com Obamas e Clintons a América só pode ficar pequena: a receita deles é a mesma que pôs a Europa de joelhos, e que consiste em multiplicar, em nome da igualdade e da justiça social, o número de dependentes do Estado e o das agências que se ocupam de consumir improdutivamente recursos, distribuindo o que sobra de uma fiscalidade crescentemente opressiva; compensar a quebra de natalidade com importações massivas de comunidades que não são assimiláveis numa sociedade respeitadora dos valores do Ocidente, capitalista, de concorrência, e de igualdade entre os sexos e perante a Lei; e deixar que as políticas públicas sejam conduzidas por burocratas que respondem não perante eleitorados mas outros burocratas mais altamente situados na hierarquia da impunidade.
Muitos amigos, escorreitamente de direita, imaginam que o lado grotesco da personalidade de Trump, o seu prodigioso mau gosto, o basismo inane e popularucho dos seus discursos, as suas bravatas, a sua insondável ignorância (que aliás partilha com o cidadão médio e boa parte dos seus antecessores, incluindo Obama) e as suas teses proteccionistas, que ofendem a doutrina liberal (no sentido europeu da palavra) e que podem, se aplicadas cegamente, fazer sair o tiro pela culatra, são tudo o que há para ter em conta.
Mas não. Para já, soube-se hoje que a página da presidência sobre as alterações climáticas sumiu-se, assim como desapareceu a versão em castelhano; e soube-se que logo no primeiro ou segundo dia começou a fazer o que podia, sem o apoio do Congresso, para demolir o Obamacare - três boas notícias.
Três boas notícias porque se a temperatura está a subir ou a baixar é da ordem natural da Terra, a prevenção a golpes de estudos e normas é quase sempre uma desculpa para o avanço da agenda da consultadoria interesseira e da intervenção e poderes do Estado; a grande América é uma criação, entre outras coisas, da emigração anglo-saxónica, da sua língua e dos seus valores - se for submersa pela espanholização não será necessário um muro porque a prazo os EUA ficam um México em ponto grande; e a demolição do Obamacare corresponde a sufocar no ovo um serviço nacional de saúde que à boleia dos seus nascentes triunfos se incrustará nos costumes inamovíveis, tornando-se a prazo insustentável e um factor permanentemente negativo para o crescimento económico.
O homem parece que vai fazer o que prometeu. E mesmo que fique aquém, como inevitavelmente ficará (resolver o problema da criminalidade no coração decaído das cidades e nos bairros negros? Fazer um muro a pagar pelos que ficam de fora? Come on!) é do interesse dos Estados Unidos, e também do nosso, que tenha alguma medida de sucesso.
Convém portanto fazer permanentemente um desconto. O homem é detestável, uma parte do que fará, se fizer, não quereria para nós (de toda a maneira aquela gente ainda não aprendeu a comer de faca e garfo, defende a pena de morte, tem um sistema penal bárbaro e um prodigioso mau-gosto, tem problemas, tradições e hábitos que são só deles) mas o verdadeiro perigo não é Trump, são os seus inimigos.
Nós outros, portugueses, não deveríamos precisar que nos explicassem estas coisas básicas. Que elegemos um presidente professor universitário (embora suspeite que de Direito deve saber pouco), culto (embora suspeite que é cultura dos autores da moda, e mesmo assim só de ler as badanas e ver as exposições fingindo que está a entender alguma coisa), com maneiras (embora suspeite que nem as senhoras deixe falar) e inteligente (embora, se perguntado, não saiba dizer nada que preste sobre o futuro do país, o da Europa e o do mundo, nem, já agora, sobre as alterações climáticas ou o futuro dos automóveis sem condutor) e não nos adiantou nada: o homem dança, e com ele o país, à beira do abismo, parando para tirar uma selfie com o primeiro popular que quer pôr sobre a lareira, numa moldura de plástico dourado, o sorriso de Marcelo, do mesmo material, ao lado do seu trombil obtuso.
Precisamos das virtudes teologais: fé em que a democracia americana tem flexibilidade para cambalhotas súbitas na orientação do país, e instituições para evitar loucuras; esperança em que o mundo se acomode aos abalos que Trump fará junto dos países amigos, e dos inimigos, a uns aparando menos o jogo e a outros mostrando os dentes; e caridade para aturar o estilo em que tudo se fará.
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