Mas as mulheres que se vestem com o burkini querem vestir-se assim? É que, se querem, qualquer proibição do Estado é um abuso, não porque não haja limites para o que mulheres e homens podem ou não podem vestir no espaço público, mas sim porque o burkini poderia ser apenas uma moda de vestuário, como tal insindicável pelos poderes públicos.
O Estado não tem que regular a moda, apenas proteger algumas regras em matéria de vestuário sobre as quais há um tal consenso nas nossas sociedades que a sua quebra origina sanções: alguém aceitaria que os funcionários da Fazenda, ao menos no Verão, desempenhassem as suas funções trajados de cuecas (não obstante a forte, e positiva, carga simbólica que tais preparos teriam, dada a natureza do mister em que se ocupam)? E se, no hospital, as enfermeiras usassem como traje a mesma bata diáfana com que se embrulham os pacientes sujeitos a exames, e que ao menor descuido obriga a mostrar o rabo, acaso não se levantaria um clamor público reclamando que naquele estabelecimento as enfermeiras eram putas?
Não vestimos ou, mais exactamente, não nos despimos publicamente conforme poderia dar na veneta a alguns originais, dos quais há sempre uma quantidade razoável, e que não hesitariam decerto em passear-se em pelota; e a ofensa desse, e doutros, tabus, ocasiona repressão que a sociedade exige. E se exige, em nome de valores partilhados que ninguém contesta, então o Estado tem legitimidade para intervir quando esses valores sejam ofendidos.
O traje das mulheres, na praia e fora dela, tem evoluído à medida que elas se têm vindo a libertar da atmosfera do lar, da autoridade do pai, do marido, do irmão e genericamente deles, dos homens. Com a Grande Guerra as mulheres descobriram que eram perfeitamente capazes, para substituir os moços que foram para as trincheiras, de desempenhar tarefas no mundo do trabalho às quais até aí não tinham acesso, e isso contribuiu para o enterro do modelo de mulher vitoriana e para a revolução dos costumes e da moda nos Anos Loucos; com a II Guerra Mundial a força centrífuga da libertação da Mulher acentuou-se; e com a invenção da pílula nos anos sessenta o mulherio no Ocidente deu o grito do Ipiranga e acentuou a reclamação, ente outras coisas, da absoluta igualdade dos sexos perante a Lei, hoje a tal ponto pacífica que a geração mais bem preparada de sempre abriria a boca até às adenoides se soubesse, país a país, quando exactamente obtiveram o direito de voto ou quando, entre nós, puderam ser juízes ou desempenhar cargos de chefia.
O bikini (uma invenção que o monokini agravou e que prejudica, na minha opinião, o sex appeal da maior parte das mulheres, mas isso são outros quinhentos) é uma declaração pública, mesmo que inconsciente, de um facto simples: o nosso corpo é isto, e como dele somos proprietárias podemos oferecê-lo, ou não, a quem queiramos, sem licença de homem nenhum porque não temos menos direito a escolher do que eles - se não gostam ponham na beirinha do prato e se gostam contenham-se.
O bikini é isto e o burkini o seu contrário. E a prova, se fosse necessária, de que as coisas são assim, é que podemos estar certos de que as tolinhas ocidentais que agora desataram a comprar burkinis o fazem com inteira liberdade; enquanto as muçulmanas que declaram usar o burkini por terem direito a essa moda não se livram da suspeita, para não dizer certeza, de estarem apenas a prestar vassalagem aos seus parentes barbudos, como fizeram as suas mães e avós, porque as consequências de não o fazerem seriam terríveis.
Finalmente: É uma atitude inteligente o Estado, em vez de fechar as madraças onde se ensine o ódio ao Ocidente, e impedir a construção de mais mesquitas onde se prega o obscurantismo de uma religião à qual os muçulmanos moderados ainda não impuseram o aggiornamento, andar pelas praias a multar mulheres que tiveram a infelicidade de nascer em sociedades medievais?
Há quem diga, com boas razões, que não. Inclino-me a pensar que sim, não porque a verdadeira guerra esteja aí mas porque, para tratar doenças, nos devemos preocupar com as causas, mas sem desprezar o tratamento sintomático.
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