Há um consenso mais ou menos generalizado: não houve nenhum virar significativo da página da austeridade, apenas trombeteadas restituições de cortes ao funcionalismo, reformados e pensionistas, compensadas por um aumento dos impostos indirectos e das taxas, aqueles a diluir, já se vê, por um número muito maior de destinatários.
Bom negócio eleitoral, como as sondagens mostram. E boa armadilha para os dois pés comunas do tripé geringôncico, que se esganiçam a denunciar o esquema, ambos a reclamar mais défice para contentar os respectivos eleitorados, e ambos silenciando o excesso de reivindicação por a um se permitir que mine o aparelho de Estado, à espera de melhores dias, e ao outro que sonhe em comer eleitores ao PS por, aprovando no essencial tudo, fazer uma grande berrata como se estivesse na oposição ao módico de rigor que o PS aplica.
O pano de fundo é de crescimento económico, e este tem permitido, via aumento de receitas fiscais e diminuição de despesas sociais, que o défice diminua, para alegria dos patrões europeus. E até a dívida pública já começou a diminuir um pouquinho na realidade, e muito na propaganda, pelo engenhoso processo de trocar dívida velha por nova a taxas inferiores, cortesia do BCE e dos reembolsos minorcas ao FMI, mil vezes anunciados.
Aquele crescimento, por sua vez, decorre das várias agências involuntárias da AICEP, que vão colocando bombas por aqui e por ali sob a designação de ISIS e Al-Qaeda, e que afugentam os turistas para cá, das guerras que o islamismo, as primaveras árabes e o americanismo inventaram e que tornaram insalubres vastas regiões do planeta com boas praias, do labor de anónimos na indústria exportadora que começaram há anos a fazer o bypass ao Estado, com crescentes resultados que o fim da crise no exterior facilitou, e do petróleo que afinal não estava para acabar, estava apenas à espera de novas técnicas para ser explorado.
O conjunto é uma reedição das vacas gordas que Guterres desperdiçou, com as inevitáveis diferenças de pessoas e circunstâncias: Guterres era um pusilânime, sério, católico e socialista, Costa é um manipulador, troca-tintas, agnóstico excepto se fosse preciso ser outra coisa, e igualmente socialista; a Europa perdeu a alma que julgava que tinha, e rabeia à procura dela; a dívida é muito maior; em vez de Sampaio, um saco de vento parlapatão com fumos de intelectual, temos Marcelo, o consolador-mor do Reino, do qual apenas se sabe para já que tem tantas tácticas a ocupar a verborreica cabeça que se duvida tenha alguma estratégia para o país; e no lugar do cardeal Pina Moura, felizmente desaparecido, e de Guilherme Oliveira Martins, que se teme reapareça, temos o celebrado Centeno.
Este Centeno tem presidido alegremente à vigarice institucionalizada que são hoje as contas públicas, tendo substituído as promessas de crescimento através do consumo, com que o PS perdeu as eleições mas ganhou aliados leprosos, pela compra de votos de muitos com aumentos de impostos embutidos nos preços para todos; fazendo aprovar orçamentos que são tão ferozmente discutidos quanto incumpridos na sua execução, via cativações; e mimetizando na perfeição os tiques do chefe, que nunca hesitou em degradar o debate político com recurso a todo o tipo de mentiras e truques, tudo embrulhado numa retórica chula e numa oratória reles.
A “Europa”, claro, não sabe nem precisa de saber detalhes: o que sabe é que o défice cai, o produto sobe e se os comunistas apoiam este milagre, cujo santo é Centeno, este bem pode ir para presidente do Eurogrupo, que casos de sucesso destes fazem uma excelente montra para o projecto europeu.
Depois, Centeno já deu mostras de ser flexível, isto é, fazer o que lhe mandam; de emprestar o seu lustro académico (enfim, ao menos um tanto mais consistente do que o do seu infeliz antecessor Dieselcoiso) ao seu abjecto servilismo; e de vir completo com um ar permanentemente aparvalhado, que o pode ajudar nos serpenteios da função, por se imaginar ingénuo quem é retintamente manhoso.
Como quem manda na Europa são os grandes, é natural que se escolham para líderes nominais naturais dos países pequenos, para dar uma impressão de equilíbrio, pelo que Centeno não teve dificuldades de maior em bater os outros três candidatos, da Eslováquia, da Letónia e do Luxemburgo. E não é impossível que, apesar da irrelevância do cargo, ainda o venhamos a ver, para embaraço dos geringonços domésticos, a ser obrigado a usar, lá fora, da franqueza que poupa cá dentro.
Que acham de Centeno os colegas dele cá, em particular os que o antecederam na pasta das Finanças? Acham coisas extraordinárias.
Miguel Cadilhe vê “que Mário Centeno tem ideias bastante assentes, sólidas”. E verifica “com agrado que Centeno está com vontade de mudar as posições da eurocracia, os conceitos que vigoraram até agora e que, sinceramente, precisam de uma revisão”.
Sim senhor, é um ambicioso programa, ainda que alguns cépticos possam timidamente dizer que nem sequer em Portugal a geringonça se aguentaria com as mudanças que Centeno quer alegadamente introduzir na supervisão dos mecanismos do euro. E que, já que estamos no capítulo das grandes realizações, Centeno podia aproveitar para resolver de vez o problema do aquecimento global, se se der o caso de ter ideias igualmente firmes na matéria.
Jorge Braga de Macedo confessa as suas dúvidas: “Um presidente português do Eurogrupo conseguiria situar-nos onde estamos, a oeste, motivando a nossa diferencialidade? Não vai sequer tentar”.
São dúvidas insidiosas, e mesmo eu, que tenho sobre as capacidades de Centeno as maiores reservas, acho que não terá grandes dificuldades em situar-nos onde estamos, a oeste. Já quanto à diferencialidade, se Jorge quer com isso dizer que Centeno não vai tentar elevar os conhecimentos de matemática dos portugueses, vejo-me obrigado a concordar, mesmo que não perceba porque haveria o presidente do Eurogrupo de se dar a um tal trabalho.
“Neste quadro em que é crucial criar soluções duradouras e eficientes para a zona euro, Centeno está na posição de poder conseguir fazer vingar até alguns pontos de vista que são melhores para Portugal”, diz Eduardo Catroga com unção. Diz isto e outras coisas inócuas e redondas, a tal ponto que se poderia julgar que não foi este Catroga, mas um homónimo, que negociou pelo PSD o memorando de entendimento.
Bagão Félix não é catedrático de economia ou finanças mas nem por isso está menos entusiasmado que os seus confrades: “É também o justo prémio para Mário Centeno. Tem sabido cultivar uma certa ideia de entendimento entre países do Sul e do Norte. Pouca gente tem feito isso nos últimos anos. Tem um capital de confiança elevado”.
O capital de Centeno é de moeda falsa. Que Bagão, que foi ministro das Finanças pelo CDS, finja não saber isto ou, pior, que o não saiba, é bem a demonstração do novelo em que o CDS se deixa com frequência enredar: pode-se ser socialista e ao mesmo tempo ir à missinha e ser contra o aborto; mas, sendo socialista, não se deveria estar no CDS.
Teixeira dos Santos, o catedrático ao leme da embarcação quando ela naufragou, não deveria, por uma questão de higiene, ser ouvido sobre questões económicas. Mas enfim, ei-lo declarando que “Mário Centeno a presidir ao Eurogrupo é importante porque lhe dá mais força para ser capaz de gerir e de resistir a essas pressões e de manter os resultados alcançados e consolidar este quadro de crescimento com um quadro de maior estabilidade orçamental, de défices mais reduzidos e uma trajetória de redução da dívida que é fundamental para o país. Há que resistir às reivindicações que possam pôr isto em risco, a prazo. É preciso ter força política para o fazer.”
Traduzindo, a autoridade de Centeno sai reforçada junto dos seus parceiros comunistas pelo facto de doravante ter na lapela o pin de presidente do Eurogrupo. Teixeira, Teixeira, pessoas há que veriam com bons olhos que te dedicasses à filatelia ou ao colecionismo de soldadinhos de chumbo, áreas em que decerto poderias atingir um altíssimo grau de expertise.
Já houve, desde o 25 de Abril, 28 ministros das Finanças, com esta ou outras designações. Destes cinco entrevistados quatro pertencem ao que se chama a direita. Mas, com excepção de Braga de Macedo, que por escrever no dialecto em uso na tribo dos adiantados mentais, não se percebe bem o que diz, mas se adivinha ter umas quantas reservas, dizem todos a mesma coisa.
Talvez nos outros onze ainda vivos se pudesse encontrar algum disposto a aliviar-se de um módico de franqueza ou lucidez. João Salgueiro quem sabe, Maria Luís decerto.
Mas estes não. E cabe perguntar: o que move toda esta gente, devotos evidentes da Igreja do Elogio Mútuo?
O que os move é o estatuto socioeconómico que atingiram, ou esperam atingir, e que depende entre nós da boa relação que se tem com o Estado, isto é, com quem o representa.
E Portugal, vai longe com esta gente que detém as alavancas do poder económico?
Não.
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