Quarta-feira, 11 de Outubro de 2017

Depressa e bem há pouco quem; devagar e mal é o geral

A acusação saiu hoje e tem mais páginas do que o Declínio e Queda do Império Romano em seis volumes. Só para as ler, e às peças processuais que se vão juntar ao longo do julgamento, os juízes, se usarem óculos, mudarão de graduação durante o processo, ou passarão a necessitar da variedade de ver ao perto, se não usarem.

 

A esquerda do comentariado guarda em geral silêncio. Compreende-se: Sócrates foi idolatrado como nem talvez Mário Soares no seu auge; boa parte do poder socialista incrustado no aparelho do Estado é constituído pelas mesmas pessoas que nunca viram nada, nunca souberam de nada, e de nada se aperceberam; o número dois de Sócrates durante algum tempo é hoje primeiro-ministro; o outro número dois deputado; o resto do seu núcleo duro está quase todo no governo; e a esquerda à esquerda de Sócrates reclama mais, e não menos, promiscuidade entre as grandes empresas e o Estado, como já então reclamava, sem perceber que mais Estado quer dizer, entre outras coisas, mais oportunidades de corrupção.

 

Já a direita rejubila e os heróis do dia são o DCIAP, Rosário Teixeira, Amadeu Guerra e os outros magistrados envolvidos.

 

Mas não é o caso de rejubilar, seria antes a oportunidade para inquirir por que razão foi preciso tanto tempo. Sócrates foi preso em Novembro de 2014 e foi solto ao fim de dez meses sem que jamais quem quer que fosse, muito menos o juiz Carlos Alexandre ou o procurador Rosário Teixeira, se desse ao trabalho de explicar como foi possível que no termo da prisão não houvesse uma acusação com pernas para andar.

 

Sobre a prisão em si disse o que tinha a dizer na altura, e não vejo a mais remota razão para retirar uma vírgula; sobre o juiz Alexandre também disse, em Setembro de 2016, e igualmente não vejo razão para alterar nada.

 

Que não me venham com terrorismos verbais do tipo "ai que todos os que acham mal a prisão e se queixam dos atrasos querem mas é livrar o patife do Sócrates, e portanto refugiam-se em formalismos quando apenas lhe foram aplicadas as mesmas leis que há para todos, algumas das quais aliás foi ele mesmo que aprovou enquanto primeiro-ministro".

 

Não há paciência para esta argumentação: porque a pergunta correcta não é se um ex primeiro-ministro merece um tratamento diferente do dos outros cidadãos - não merece; é o que pode acontecer a um privatus desconhecido da comunicação social e sem dinheiro para pagar a bons advogados se tropeçar num procurador incapaz de investigar contra a provável interferência do suspeito e num juiz que julga que está lá para julgar a culpa - não está - e acha a prisão um expediente legítimo para suprir a inépcia, a preguiça ou a falta de meios.

 

Dir-me-ão porventura que se não fosse Joana Marques Vidal mas o seu antecessor a ocupar o lugar de PGR; e se ainda fosse presidente do STJ Noronha do Nascimento: Sócrates andaria possivelmente na crista do poder político, quem sabe se no lugar de Costa. Talvez. Mas isso prova apenas que pode chegar à cúpula do Supremo Tribunal um juiz medíocre e à da PGR um farsante. E nada, absolutamente nada, garante que a mesma coisa não possa voltar a suceder, nem creio que haja alguma forma de garantir que em todo o aparelho judicial, da base à cúpula, se possam sempre encontrar magistrados com sangue na guelra para trabalhar, autonomia psicológica para serem independentes dos poderes, incluindo o da opinião publica, fósforo no bestunto para entenderem o Direito, e senso, que deve ser o tempero de todas as decisões.

 

Espero que Sócrates venha a ser condenado com base em provas irrefutáveis e não na mera constatação de que quem cabritos vende e cabras não tem de algum lado lhe vem; que a pena seja condizente com a nossa tradição de humanidade, e não a americanice dos 17 anos com que selvaticamente condenaram o sucateiro; e que não se dê o caso de as condenações de quem corrompeu sejam maiores do que as dos corrompidos, quando só estes últimos detivessem poder público.

 

Isto eu espero. E tenho também esperança de ainda estar vivo quando o tribunal decidir, não porque sofra de alguma doença letal, mas porque tenho mais de sessenta anos e são quatro mil páginas.

 

Quatro mil?! Um monumento: à venalidade de Sócrates, à natureza corruptora do socialismo e à estupidez do eleitorado. Mas escusava de ser tão grande. Não é que ele não tenha cometido 31 crimes; é que é improvável que venha a ser condenado por todos eles. Na parte em que não for, e mesmo em parte do que seja, é também um monumento à inoperância.

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publicado por José Meireles Graça às 20:31
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7 comentários:
De Justiniano a 12 de Outubro de 2017 às 14:25
Apenas e só para lhe enaltecer o texto, subscrevendo-o totalmente!
Um bem haja,
De José Meireles Graça a 12 de Outubro de 2017 às 15:59
Obrigado, Justiniano.
De Terry Malloy a 12 de Outubro de 2017 às 21:48
É (muito) raro ter alguma coisa a apontar-lhe no que escreve, mas o seu 4º parágrafo é um equívoco completo.

"Por que razão foi preciso tanto tempo. [...] como foi possível que no termo da prisão não houvesse uma acusação com pernas para andar."

1. Os arguidos (anterior primeiro-ministro, presidente do conselho de administração do maior banco privado português, chairman e CEO da empresa mais valiosa da bolsa nacional, etc.) eram as figuras mais poderosas e capazes do país, com acesso ao melhor know-how sobre como dissimular/ocultar/dificultar o acesso a vantagens ilegalmente obtidas;

2. Em resultado disso e da sua sofisticação, foi necessário contar com a colaboração - que não pode ser exigida, imposta ou determinada pelas autoridades portuguesas! - de autoridades públicas de um sem número de jurisdições estrangeiras em 3 continentes diferentes: Suíça, Reino Unido, Angola, Brasil, França, etc.

3. Aqui chegados, e admitindo que a investigação - cujo andamento, pelo que referi em 2., não pode ser determinado ou garantido pelo MP - poderia durar anos, você em Novembro de 2014 tinha duas hipóteses:

a) Deixava correr o marfim e permitia que os homens politica, financeira e "juridicamente" mais poderosos do país fizessem implodir a investigação - pois já estavam a par da mesma e das diligências em curso (coisa já cabalmente tornada pública), com almoços com ex-PGRs a três dias das detenções, a fazer lembrar episódios como "talvez esteja na altura do teu irmão falar com o Guerra" e "estou a chegar a casa do Júdice",

ou,

b) como prevê o código de processo penal, para impedir o "perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova", sujeitava os suspeitos às medidas de coacção necessárias, mesmo sabendo que, pelos factores referidos, a recolha da prova poderia não estar concluída quando os prazos máximos das referidas medidas de coacção expirassem.


Repare que a razão pela qual há, nestes casos, recurso a circuitos financeiros tão complexos, que exigem colaborações sempre lentas de diversas jurisdições estrangeiras, é exactamente esta: levar a investigação a abortar. E um dos modos de levar a investigação a abortar é levar as pessoas de bem a questionarem se não será um terrível abuso demorar-se tanto tempo a resolver-se um caso destes. E com isso a erodirem a legitimidade do MP para continuar a investigação. Ou a legitimarem os arquivamentos amigos.


Parece-me que você cai numa dicotomia falsa:

Ou existiam indícios fortes em 21 de Novembro de 2014 e 1 ano depois tinha de estar pronta a acusação;

ou não existiam e a detenção e prisão preventiva foram um abuso, pois na altura não havia matéria factual que a justificasse, ainda que possa ter surgido depois.

Ora, isto é falso. O que a lei - e bem - exige para aplicação de prisão preventiva são "fortes indícios" da prática dos crimes, i.e., probabilidade elevada da aplicação de uma pena no futuro julgamento.

O MP e o JIC entenderam-no como tal na altura e, creio eu, assim o entenderam todos os juízes dos tribunais superiores em todos os (muitos) recursos da medida aplicada.

Isto não quer dizer que a prova já recolhida, em Novembro de 2014, fosse suficiente para deduzir acusação ou levar os arguidos a julgamento.


A opção era clara: temos fortes indícios dos crimes políticos mais graves alguma vez investigados em democracia e não sabemos quantos meses/anos vamos demorar a recolher a prova cabal para os julgar. Sabemos que os suspeitos - os homens mais poderosos do país - já tomaram conhecimento das investigações e estão a diligenciar para as boicotar. A lei permite-nos detê-los e prendê-los para impedir a destruição/interferência na produção da prova.


Que fazer?
De José Meireles Graça a 13 de Outubro de 2017 às 12:41
Ao contrário do que pensava o prof. Cavaco, num dito na altura muito ecoado, pessoas diferentes com níveis de entendimento semelhantes e com acesso à mesma informação chegam às mesmas conclusões (cito de cor, não estou a ser inteiramente fiel). Isto é erróneo; para ser verdadeiro seria preciso que as pessoas em questão partissem dos mesmos princípios. Sucede que para si, Terry, a prisão é um instrumento perfeitamente legítimo na panóplia dos meios investigatórios quando haja o risco de continuação da prática criminosa, perturbação da ordem pública, etc., tudo à discrição do juiz, o que significa que perante os mesmos factos, acusados e circunstâncias, um juiz decreta a prisão preventiva e o juiz ao lado não. O juiz Alexandre é conhecido por ser um ferrabrás, decerto por entender que há demasiados criminosos à solta e é preferível correr o risco de encarcerar inocentes, que serão sempre uma minoria, do que deixar passar a imagem da ineficácia da Justiça. A conviccão de Alexandre, que é também a minha e a sua, de que Sócrates é culpado, não releva aqui, porque o juiz de instrução não julga, isso é para o tribunal, nem muito menos é uma extensão do ministério público. Você acha que as tais entidades estrangeiras não dariam o seu concurso, como deram, com Sócrates solto, porque este se mexeria para as influenciar. Eu acho que essa colaboração foi prestada porque o ambiente internacional nestas coisas é muito diferente do que foi no passado, e as entidades em questão estão-se nas tintas para o pequeno Sócrates, preso ou solto. Não posso demonstrar isto, claro; mas também não vejo como se pode demonstrar o ponto de vista oposto. Podemos continuar a esgrimir argumentos, Terry, mas é pouco provável que nos entendamos. Porque eu sou lúcido e arguto e você não? Porque eu tenho certamente razão e você não? De todo: porque não valoramos a gravidade da privação da liberdade do mesmo modo; e porque se deixa impressionar (é um processo de intenção que lhe faço, desculpe) pela monstruosidade da personalidade socratiana, achando no fundo que a prisão preventiva, no caso dele, não é senão um adiantamento, e pequeno, à pena que lhe caberá. Um abraço.
De O SÁTIRO a 14 de Outubro de 2017 às 23:35
Creio que não tem noção da complexidade da investigação.
Quando os milhões de JS andam e viajam nas contas do amigo CSS, ainda por cima com países a demorar meses a dar resposta a cartas rogatórias, não me parece que tenha demorado muito.
pelo contrário, foi um trabalho inesgotável,,,,pk se não encontrassem a mínima ligação ou prova de que o dinheiro nas contas de CSS era de JS .......toda a investigação ia por água abaixo.
sobre a prisão de js, perfeitamente legal....e fundamentada. uma das razões da vinda a portugal era destruir discos de computador...obviamente comprometedores
aliás, ainda desapareceram muitos documentos......como há dias foi noticiado...de um ministério.
trabalho brilhante, invansável, só se espera que o novo MºPº não deite tudo a perder..

pk a CORRUPÇÃO. É MAIS DO K EVIDENTE
De Anónimo a 16 de Outubro de 2017 às 10:34
não há p+pachorra para ler um post com tanto palavreado. Se o processo deve ter menos ( quantas ) páginas então os posts aqui tb deviam ter menos palavreado. É isto, certo ?
De Justiniano a 16 de Outubro de 2017 às 16:09
Caríssimos, compreendo a V. perplexidade e indignação!! Mas que a mesma deriva de pouca atenção ao que disse o caro Meireles Graça, que não se reduz à reafirmação de princípios de direito liberal, o que de si não seria pouco nos dias que correm, mas vai muito para lá do formal. Trata-se, na minha leitura, de uma escarreta no focinho daqueles que nunca chegaram a casa, depois de longo e tormentoso dia, com uma mão cheia de nada e que, todavia ou por isso mesmo, insistem na realização sacrificial do outro, à laia da sagração da primavera!!
A questão que mais me intriga é a seguinte, e daria uma interessante investigação. Quais os desenvolvimentos da investigação que ocorreram durante a prisão de Sócrates? Quais desses desenvolvimentos, ou revelações decorreram, ainda que de forma residual, do facto daquele estar preso? Quais is que se verificaram indiferentes à prisão do mesmo?
E creiam-me que nenhuma simpatia me anima em relação ao personagem Sócrates, que combati politicamente, que não a de abominar a injustiça e, sobretudo, a instrumentalização de indivíduos, especialmente a instrumentalização absolutamente inútil que me provoca asco!

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