Quarta-feira, 31 de Agosto de 2016

Maçã com bicho

Pergunta-se: Há alguma razão para a Apple Irlandesa ter pago em 2014, a título de IRC, apenas 0,005% (e pouco mais do que isso, mas não mais de 1%, nos nove anos anteriores) enquanto as outras empresas irlandesas pagaram 12,5%?

 

A Comissão Europeia acha que não; o governo irlandês acha que sim. Acha que sim mas a notícia não diz porquê. O ministro pertinente, Michael Noonan, terá apenas declarado: "Discordo profundamente da Comissão. A decisão deixa-me sem outra alternativa a não ser procurar aprovação do governo para recorrer". A empresa, por sua vez disse o que lhe competia: "A Apple cumpre a lei e paga todos os impostos que deve independentemente do lugar onde opera. Vamos recorrer".

 

Como àquilo que a Apple teoricamente deve ao Estado Irlandês, isto é, 13 mil milhões (!), se pode abater o que se mostre devido noutros Estados (o nosso, caracteristicamente, já afia o dente), é lícito concluir que, mesmo sem sabermos se a Apple virá algum dia a pagar, os escritórios de advogados especialistas em direito fiscal têm anos de trabalho à sua frente.

 

Curiosamente, o que a Apple da Irlanda tivesse pago, além do que pagou, à sede americana, a título de custos de investigação e desenvolvimento, teria sido considerado custo, portanto directamente dedutível a estes 13 mil milhões, e as autoridades americanas, ao contrário do que fariam as portuguesas se se deparassem com um caso semelhante, não só não reclamam nada como rosnam: "o Departamento do Tesouro norte-americano criticou a decisão da Comissão Europeia de ordenar ao grupo informático Apple o reembolso de uma soma recorde, alegando que ameaça 'o espírito de parceria económica' entre Estados Unidos e União Europeia".

 

Suponho que o ministro Noonan, e os seus antecessores, não serão corruptos; e que as autoridades fiscais americanas não são estúpidas nem escravas dos grandes grupos económicos. Portanto, toda esta história está mal contada: se a Irlanda achou que os seus muito competitivos 12,5% de IRC não eram suficientemente atractivos algumas razões terá tido  ̶  quais foram? Sem essa explicação, não se pode começar, como diz a nossa comunicação social em jornalistês, a "apontar o dedo".

 

Aguardemos, pois. Ainda que, se eu fosse executivo da Apple, já estaria a benzodiazepinas, porque o recurso obriga ao depósito do chumbo (que aliás resulta apenas de imposto dito em falta e juros, não multas - o Fisco Europeu já tem os tiques inquisitoriais do português, mas sem particulares requintes) e treze mil milhões congelados devem, suponho, causar algumas cefaleias.

 

Imagino que, em devido tempo, o Tribunal dará razão à Apple porque se a empresa se estabeleceu e investiu com base num acordo com as autoridades legítimas, não podem as condições deste acordo ser alteradas retroactivamente. Ou então o princípio da confiança cede o passo ao princípio da ganância fiscal, que os factos consagram mas a melhor doutrina ainda não.

 

Entretanto, o caso será aproveitado como perfeito para ilustrar a inerente maldade da competição fiscal entre países, e portanto este autoinfligido golpe da Comissão será apresentado por todos os federalistas como um gritante exemplo do que pode acontecer quando não há harmonização fiscal (por cima, claro, que as harmonizações fiscais são sempre pelas taxas mais altas); a Esquerda europeia rejubilará com mais este exemplo da inerente maldade das multinacionais; entre nós, a maioria dos blogueiros e a quase totalidade dos jornalistas digitarão com furor os teclados dos seus IPad, e dos seus IPhone, reclamando multas e sanções à Apple, enquanto frei Anacleto, numa das suas homilias, descreverá às massas embevecidas o país que poderíamos ter se a União Europeia nos subsidiasse, como é sua obrigação, com os recursos de que disporia se não fossem estas roubalheiras; e as autoridades irlandesas, se não a população, olharão para o outro lado do mar da Irlanda pensando melancolicamente que os Ingleses já não têm que aturar estas merdas.

 

Já eu bem gostaria que esta embrulhada fosse connosco. Sonho impossível, claro: que é pacífico que a função das empresas é pagar impostos; e a do Estado criar riqueza. Arranjo que faz com que as empresas estrangeiras não nos venham para aqui incomodar com as suas explorações.

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publicado por José Meireles Graça às 01:11
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7 comentários:
De José Meireles Graça a 1 de Setembro de 2016 às 00:17
Enquanto houver concorrência fiscal, os Estados estarão sob pressão para não subir as taxas. Nisto, como no resto, quanto mais concorrência melhor. As empresas não comem, não dormem, não fazem viagens, não têm amantes e não consomem artigos de luxo nem aliás artigos nenhuns que não sejam necessários para o seu funcionamento. Quem faz ou pode fazer tudo isso e paga os impostos respectivos, incluindo o sobre rendimento, a taxas confiscatórias, são os sócios, os accionistas e os gestores. Em abstracto, o imposto sobre lucros não é assim mais do que uma duplicação de impostos sobre certas categorias de pessoas, no caso as que investem (se tiverem sucesso), e isto seja qual for a taxa. A empresa, esta ou outra qualquer que não seja monopolista, só tem o privilégio de vender na exacta medida em que haja quem queira comprar, e portanto não se trata de privilégio. Repito o que disse no texto: em relação às outras empresas irlandesas, que razões teve o Governo para a discriminação positiva? Não sabemos, mas podemos imaginar: a Apple ofereceu contrapartidas que nenhuma empresa irlandesa podia oferecer.
De Anónimo a 1 de Setembro de 2016 às 11:47
Muito bem.

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