Quarta-feira, 28 de Maio de 2014

Nem "obrigado" me disseram

 

 

Começa por estragar a noite anterior. No meu caso foi grave porque estava a meio de um trabalho importante (para o meu orçamento), e a perspectiva de acordar às 6 da manhã opera com umas horas de antecedência. Com o alvará de nomeação num envelope e o raciocínio numa papa morna, apresentei-me às 7, como devia, no antigo liceu D. Filipa de Lencastre.

 

Na sala que me competia já se encontravam os outros membros da mesa e o primeiro problema apareceu logo a seguir. Tratava-se de amarrar duas esferográficas às respectivas cabines de voto, e o bocadinho de cordel que nos fora fornecido era claramente insuficiente. A minha primeira missão foi dirigir-me “aos serviços” para pedinchar mais uns centímetros. A missão falhou: não havia mais cordel. Foram essas esferográficas amarradas com habilidade (confesso), e a imagem áspera da miséria do país, aos farrapos que sobraram das eleições anteriores e que algum espírito prudente tinha tido a cautela de conservar pendurados do buraco. A geringonça não ficou com um aspecto resistente, mas calculei que aguentasse, sem sobressaltos, mais este exercício democrático. Nesse ponto tive razão.

 

Contados e recontados os boletins, integrei uma equipa de 3 elementos para forrar a parede exterior da sala com bonitos papelinhos, decorados com os nomes dos candidatos das 16 listas concorrentes. É preciso informar o eleitor, para que este não vote ao engano. Uma a uma, cada folha foi presa à parede de azulejos com tirinhas bem medidas de fita-cola, cortada com os dentes até ao primeiro vómito e, desse momento em diante, com uma tesourinha de canivete que eu trazia no bolso. Abençoada inclinação para os expedientes de rua que, não me fazendo notável pelo requinte das maneiras, já várias vezes me livraram de aflições.

 

Afixámos as listas, um boletim em tamanho industrial, e uma quantidade insuspeita de editais obrigatórios – todos eles essenciais ao bom sucesso do acto eleitoral. Os últimos já foram colados à pressa, em parte por culpa do tempo gasto a receber e encaixar duas informações: a primeira era que o bar da escola estava fechado, e assim iria permanecer todo o dia; a segunda era que os nossos honorários (ou lá como se diz isto em linguagem burocrática) tinham sido cortados para cerca de 2 terços do valor habitual. Cada um de nós iria receber apenas 50 euros. Graças a Deus as casas de banho mantiveram-se abertas; há certas realidades que actuam como diuréticos (não desfazendo).

 

Nisto eram 8 horas, ouviu-se uma sineta, e a mesa foi declarada aberta. Cada membro sentado, muito direitinho, na sua cadeira de pau, à excepção do presidente - cuja função é exercida de pé, no centro do friso, espreitando por cima da urna. Foi muito estimulante porquanto várias moscas entraram na sala e entretiveram-se a esvoaçar as suas vidas na nossa interessada presença. Nos raros intervalos de tédio que este espectáculo consentia, os escrutinadores aproveitaram para contar, um por um, os nomes inscritos nos cadernos eleitorais. É outra cerimónia prevista no protocolo, não fosse suceder que o total divergisse do número registado na papelada oficial e, ao final do dia, arranjássemos um sarilho.

 

Pelas 11 da manhã já tínhamos atendido para cima de alguns 20 eleitores. O secretário da mesa descobriu, no andar de cima, uma máquina automática que fornecia café a troco de umas moedas. Revezámo-nos naquele percurso melancólico, por largos corredores revestidos do mais sumptuoso mármore cor-de-rosa (acabamento polido), onde o som dos nossos passos ecoava sem acanhamento. Quando regressei, uma alma compassiva tinha deixado na sala uma garrafa de água (para cada membro) e uma caixa de biscoitos (para todos). Sem a ter visto, agradeci-lhe do fundo do coração.

 

Uma eleitora elegante chegou, votou, e saiu da cabine com um ar satisfeito agitando na mão o boletim aberto. Cada um olhou para onde pôde e o presidente, com a cabeça de lado e os dedos à frente dos olhos, informou a eleitora que ela tinha de dobrar o papelinho em quatro. Uma velhinha entrou apoiada em canadianas. Outro eleitor chegou enfiado numa roupa preta, numas botas de combate, num blusão militar, e num corpo franzino. De crânio rapado e barbas compridas, cumprimentou e despediu-se com voz aflautada. Corrigidos uns desvios, a velhinha acertou na cabine. Veio um casal com 3 crianças. Votou primeiro um, depois o outro, as crianças fizeram momices. Um gordo, muito gordo, de t-shirt e cabelo farfalhudo, mostrou uma fotografia magra, de gravata e cabelo farfalhudo. A velhinha já vinha a meio caminho de regresso. Outra eleitora apareceu adornada com jóias pesadas e botas modernas. Rodou tão ligeira em direcção à cabine que não parou a tempo: deu mais um quarto de volta, e saiu apontada a uma estante. Num pulinho, alterou a rota, votou, e avançou disparada com o boletim aberto. Os membros da mesa voltaram a olhar para onde conseguiram. O presidente voltou a cabeça de lado e escondeu a cara com os dedos, até a eleitora dominar a trajectória, segurar o movimento, e dobrar o boletim. A velhinha chegou junto da urna, pendurada nas canadianas. Entregou o voto muito dobradinho.

 

Fizeram-se apostas quanto ao número de votantes, o número de biscoitos, e o número de moscas. O dia avançava nesta azáfama. De vez em quando, os membros da mesa trocavam de lugar. Ou seja: deixavam uma cadeira de pau e sentavam-se noutra cadeira de pau. Houve quem, com os lombares a guinchar e o pescoço encortiçado, se levantasse para rodar os braços e acabasse estendido no soalho, por breves momentos, a rezar de alívio. Ia jurar que não fiz tal coisa, mas foi exactamente assim que vi entrar o delegado do PCP, do meu ponto de vista, virado de pernas para o ar. Trazia umas calças de bombazina, e um casaco de bombazina, cabelo branco e barbas brancas, expressão exausta e um saco de plástico. Deixou-se ficar, perdido ou discreto, encostado a uma parede. Virei uma cadeira, das que estavam empilhadas, e tive dificuldade em convencer o senhor a sentar-se. Puxou de uma sanduíche, ofereceu amavelmente, e comeu. Entreteve-se o resto da tarde com uma biografia de Lenine, numa encadernação velhíssima, de folhas muito amareladas. A dada altura, agarrou no telemóvel e telefonou ao pai. Desconfiei que não tivesse ouvido bem, mas confirmei com o meu colega e com um segundo telefonema, já depois de fechada a urna, quando informou o pai (nessa altura, ouviu-se claramente) que se encontrariam “lá”. E especificou: “no Vitória”.

 

A contagem dos votos não se resume, longe disso, à contagem dos votos. Desde que a sineta toca, às 7 da tarde, para avisar que acabou, é preciso encadear toda uma nova série de tarefas cuidadosas. Desde logo, são dados mais uns minutos para que as pessoas que já tenham entrado no edifício tenham tempo de chegar à respectiva secção – e votar. Só depois disso podemos (e devemos) fechar as portas. A uns dói a cabeça, a outros as costas, os joelhos, o estômago (de fome) ou outras porções do organismo. Pessoalmente, não me posso queixar: doía-me tudo. O que vale é que entre apostas, gentilezas, comentários, e ajudas, a verdade é que temos uma incumbência para levar até ao fim e durante aquele período de dever e de serviço, de humor e responsabilidade, de gosto e de suplício, nasce uma espécie de ligação cúmplice que torna a coisa suportável, quando não prazenteira. Depende bastante das pessoas que o acaso se encarrega de juntar.

 

Foi preciso contar os boletins que sobraram, e os nomes “abatidos” nos cadernos eleitorais. Abrir a urna, contar os votos, distribuir em montinhos, e contar outra vez. Confirmar, pelo menos duas vezes, se não há boletins no grupo errado. Se houver, temos de rever tudo outra vez. Chegada esta hora, o nosso desembaraço intelectual é comparável ao de uma amêijoa. Voltamos ao princípio, trocamos as tarefas, acertamos tudo até não haver dúvidas. Apontamos os resultados num quadro. A seguir, há muito impresso para preencher, actas, duplicados, novos editais para afixar, pacotes para embalar em papel pardo, cordel, rubricas e lacre. No fim, são 10 da noite. Passaram 15 horas.

 

Em modo mecânico, meto-me no carro e chego a casa para comer e assistir dormente, na televisão, aos resultados, aos palpites, e aos discursos dos chefes. Sem excepção, agradecem aos candidatos, aos partidos, aos directores de campanha e às juventudes partidárias, aos eleitores, a quem votou e a quem se absteve, aos portugueses e a Portugal. Nem um único se lembrou dos membros das mesas de voto. Nem “obrigado” me disseram.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 02:22
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De Tiro ao Alvo a 31 de Maio de 2014 às 21:26
Sem lhe tirar razão - ficava bem aos políticos agradecerem aos muitos elementos que compõem as mesas -, disseram-me que os eleitores que "trabalham" nas mesas têm direito a uma remuneração por esse trabalho e que, além disso, estão dispensados do trabalho no dia seguinte. Se assim for, também se podia queixar de que o Estado paga mal...
De Margarida Bentes Penedo a 1 de Junho de 2014 às 01:29
Isso é um facto indesmentível, Tiro: o Estado paga mal aos bons. Em parte, porque paga bem aos medíocres e, principalmente, porque paga uma quantidade extravagante de ordenados inúteis. Mas o ponto, neste texto, é o contrário. Trata-se de descrever o que os membros de uma mesa de voto dão à comunidade, independentemente do Estado lhes pagar como pode.

O agradecimento seria uma elegância e uma gentileza, que podia acontecer se os chefes partidários pensassem no que dizem. Mas preferem despejar discursos em estilo nariz de cera.
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