Sexta-feira, 12 de Agosto de 2016

Operação STOP

O inquérito tem como objetivo “estimar o número de residentes e de não residentes que atravessam as principais fronteiras nacionais, conhecer o perfil dos viajantes e suas deslocações, bem como obter uma estrutura de repartição de gastos turísticos internacionais por principais rubricas de despesa”.

 

Das duas, uma: ou se criam filas intermináveis nas fronteiras ou perto delas enquanto o "entrevistador credenciado pelo INE" incomoda os viajantes com as suas perguntas abusivas ou então a amostragem pouco vale.

 

Mas o caso nem sequer é o de mais uma "estatística" para encher chouriços, justificar o lugar de quem se ocupa com inutilidades e fundamentar uma catadupa de "medidas" políticas para promover isto e aquilo: deveria ser óbvio que a GNR mandar parar condutores e retê-los enquanto são submetidos a um interrogatório para saber coisas tão indiscretas como "o dinheiro gasto no destino" e a "escolaridade dos passageiros" é, pura e simplesmente, um abuso.

 

E que um funcionário do INE venha dizer, com a lata inconsciente dos burocratas inimputáveis e com o português deficiente típico da espécie, que se trata de uma “operação estatística oficial desenvolvida de acordo com a lei do sistema estatístico nacional, sendo obrigatória a sua resposta“, e o jornalista nem se incomode a identificá-lo, para execração pública, mostra bem o que é que a nossa comunicação social acha do direito à livre circulação e à reserva da vida privada, e sobre o papel das polícias.

 

Que não cabe nas funções da GNR coagir cidadãos a prestarem declarações fora do âmbito de processos criminais ou da realização dos fins de fiscalização do cumprimento de normas legais, ou de segurança e protecção de pessoas e bens, não carece de demonstração. E por isso o graduado que anuiu à requisição e que instruiu os seus homens para a cumprirem não entende a sua função nem os seus deveres: a ordens ilegais, se o seu cumprimento puder dar origem à prática de crimes, não é devida obediência. E mandar parar pessoas para as submeter a interrogatórios grotescos para defesa de um vago, e abstracto, interesse público, é, claramente, um abuso de poder.

 

Resta a lei que o patarata funcionário invocou. Fui ver, mesmo que seja desde logo evidente que, ainda que fosse obrigatória a resposta às perguntas, nunca o poderia ser no âmbito de uma paragem obrigatória: estar imobilizado numa estrada, por ordem da polícia (portanto sob ameaça de desobediência no caso de o cidadão decidir, por não querer responder às perguntas, abandonar o local) é o equivalente a uma detenção; e as sanções previstas para a falta de resposta são coimas, apenas coimas - não têm a gravidade do crime de desobediência. Isto para além do facto, cuja razoabilidade é evidente, de que para responder a inquéritos há prazos, e estes não podem ser agora, já, porque sim.

 

A Lei (nº 22/2008, de 13 de Maio) é escandalosa, por atribuir ao INE extensíssimos, e desnecessários, poderes - os nossos deputados e os nossos governantes esgotam-se, nas datas comemorativas apropriadas, em tropos arrebatados dando loas à Liberdade, que todavia atiram tradicionalmente às malvas sempre que a Administração lhes põe debaixo do nariz diplomas que lhe reforçam os poderes, encolhendo os dos cidadãos. A Lei, portanto, é prolixa quanto aos direitos da Administração, e exaustiva quanto à organização do Sistema Estatístico Nacional (que inclui aliás também o Banco de Portugal, além de outras entidades menores), mas, mesmo assim, diz no número 3 do artº 4º:

 

Exceptuam-se do disposto no nº 1 os dados objecto de classificação de segurança, de segredo de Estado, de segredo de justiça, dados conservados nos centros de dados dos serviços do Sistema de Informações da República Portuguesa, dados genéticos ou dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada (sublinhado meu) e origem étnica e dados pessoais relativos à saúde e à vida sexual.

 

Há coisa mais privada do que ir ou regressar de férias em paz, sem que Administração Pública, na sua encarnação com botas de cano alto e metralhadora, nos meta a hedionda cabeça cheia de caspa no vidro da frente para saber de onde vimos, para onde vamos, quanto gastamos, que habilitações literárias têm exactamente os passageiros, e mais quanta pergunta indiscreta um inútil sentado num gabinete em Lisboa com ar condicionado congeminou para nos lixar a existência, e justificar a dele?

 

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publicado por José Meireles Graça às 12:24
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5 comentários:
De pita a 13 de Agosto de 2016 às 12:23
Muito bem. Achei que era um post importante.

Como não sou licenciada em Direito (advogada, ministério público, juíza, jurista, porteira, assessora de ministério, chofer de entidade) peço-lhe o obséquio de concretizar o que fazer, legalmente, perante tal investida.

Obrigada
De José Meireles Graça a 13 de Agosto de 2016 às 14:15
Também não sou licenciado em Direito, Pita. Mas não é preciso ser para saber o que fazer: 1) Responder a todas as perguntas do abelhudo e ir em paz; 2) Informar que se recusa a responder por considerar ter sido mandada parar para aquele efeito um abuso, mas que está disponível para responder, inclusive por escrito, se for para tal notificada. No segundo caso compra uma data de chatices, cuja extensão depende da personalidade concreta do comandante da força. No caso pior pode chegar a tribunal, onde o mais provável é ser absolvida. Ao funcionário do INE e aos polícias, em todas as hipóteses, não acontece nada. Por não lhes acontecer nada é que há abusos.
De pita a 13 de Agosto de 2016 às 21:02
Obrigada por sua pronta resposta.

Na minha ignorância ainda pensei que seria útil pedir ao agente da GNR a descrição, oficial, de que penso haver um escrito, das tarefas que os superiores lhe marcaram para aquele dia.
E pedir a identificação? Chegará para travar desmandos? Já não acredito; mas perguntar...

De novo, obrigada
De pita a 13 de Agosto de 2016 às 12:26
Já agora, quanto se gasta com as deslocações e nutrição dos tipos do INE, mais as os tipos da GNR adstritos a esta marmelada?
De oscar maximo a 13 de Agosto de 2016 às 15:48
Penso que os juristas andam a brincar. Se o INE não pode fazer perguntas sobre a vida privada, mais a saúde, vida sexual (pode não ser privada, pode ser num clube de trocas), mais etc., só pode indagar do trabalho. E se o trabalho não for por conta própria, é reenviar o INE para uma empresa.
Tudo isto e como sempre, porque quem faz as leis das três uma: ou quer agradar sempre a todos, ou quer dar trabalho a advogados, ou quer juízes omnipotentes.

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