Coisa surpreendente entre nós são aquelas pessoas que circulam no espaço público opinativo e que, não obstante a tenaz repetição da vacuidade das suas ideias, e a periódica revisão dos seus pontos de vista para os adequar aos ares do tempo, disfrutam de um geral apreço.
O exemplo por antonomásia desta variedade de notabilidades é Marcelo: não deixa obra jurídica que valha, nunca ninguém lhe ouviu uma opinião que não fosse uma banalidade, um dito que ficasse pela sua originalidade ou justeza, uma análise que o futuro tivesse revelado clarividente, uma escolha política que fosse além das jogadas florentinas em que toda a vida se desdobrou... nada. E tendo chegado pacificamente a presidente da República, e dando todos os dias o espectáculo torpe de lisonjear a costela portuguesa choramingona, pedinchona e sentimental, dá a sua caução a uma provável débâcle do país, que depois não saberá explicar - Marcelo do futuro não sabe nada, e do passado pouco mais.
É caso único, no sentido de sempre ter tido uma vasta corte que lhe bebeu as charlas hebdomadárias, e hoje se deslumbra com a sua hiperactividade. Mas com plateias mais restritas há outros inexplicáveis exemplos de carreiras de sucesso: Adriano Moreira é tido por especialista de direito internacional, analista da política planetária e depositário de um saber feito de cultura, estudo, reflexão e experiência de vida.
Sucede porém que - caso estranho - nem escrever sabe. E debalde se procurará no emaranhado dos seus textos algum fio condutor que nos conforte numa ideia clara sobre qual é exactamente o problema de que está a falar, e qual a solução que defende. A gente percebe que há ali um problema e que são necessárias reformas. Mas qual o problema e quais as reformas, isso, Adriano nunca se dá à vulgaridade de explicar claramente.
Exagero? Consideremos a frase inicial deste artigo: "O desaparecimento de Fidel Castro produziu os juízos sobre a intervenção na vida do seu país e sobre as consequências que respeitam às relações internacionais que são baseadas na inegável importância dos efeitos e marcas deixados na época em que assumiu o poder, e o exerceu longamente, em Cuba".
O que é que esta merda quer dizer, Nossa Senhora? Que Fidel morreu e que a sua vida teve importância, é isso? Ah bom, e daí? Daí, continua Adriano: "Quando era esperado que na chamada Pequena Cuba, a comunidade de cubanos que habitam, trabalham e encontraram futuro pessoal em Miami, se manifestassem, até com maior excitação do que mostraram quando abandonou o poder, o que os noticiários acentuaram é a moderação dos ajuntamentos de exilados, e dos seus descendentes já americanos, e que estes foram já conhecendo maiores liberdades de ir e voltar à ilha pátria".
Temos portanto que em Miami não se fez tanto barulho como se poderia esperar, e que os noticiários não assinalaram o barulho que não houve, além da novidade de os descendentes dos foragidos de Cuba serem americanos. Imagina-se que este facto extraordinário nos deva ser caro ao coração, visto que a mesma coisa sucedeu aos descendentes dos nossos compatriotas que para lá emigraram, e já agora a todos os outros descendentes de todos os outros emigrantes de todos os outros países.
E vão dois parágrafos sem dizer absolutamente nada, o que possivelmente aguçaria o apetite para os restantes.
Não saímos defraudados, porque na continuação temos direito ao prato de resistência. Reza assim: "A serenidade, com firmeza, é recomendável nas circunstâncias desafiantes de mudança, e a morte de Fidel é sem dúvida, do ponto de vista das emoções, mais desafiante, porque não é sobretudo o passado que se extingue, é o desafio de construir um futuro ocidental que será exigente, requerendo criatividade, ativa política de reconciliação entre as fações, um trabalho que vai exigir generosidade, aos que sentiram a recusa de cidadania e humanidade, e sobretudo aos que assumiram a necessidade de salvaguardar outros valores, que pareceu lembrada na histórica visita de João Paulo II, em que vimos, nos documentários, um Fidel Castro que parecia lembrado da circunstância galega de origem, e da reverência em relação ao pontífice".
A serenidade com firmeza é de facto recomendável para navegar, não nas "circunstâncias desafiantes da mudança" mas neste amontoado de lugares-comuns pedantes: O "desafio de construir um futuro ocidental"? Mas qual desafio qual quê? Ou Cuba se torna numa democracia ou não. Se sim, não será decerto por evolução do regime; se não, talvez possa imitar o capitalismo chinês ou vietnamita, numa versão adaptada. Ou poderá tentar ficar na mesma, até que alguma coisa suceda que faça cair o regime - as ditaduras não são eternas. Haverá decerto quem sobre isto tenha algumas ideias e as defenda com argumentos. Mas não haverá quem se lembre de ver na visita do Papa, e na reacção do velho farsante Fidel, outra coisa mais do que uma habilidade de um regime decrépito para concitar apoios. E a "circunstância galega" de Fidel é de rir: eu também tenho uma devoção especial pelo deus Larouco, decerto pelas minhas origens célticas.
Depois, vêm as citações de autores obscuros para fundamentar um bosquejo histórico onde os americanos são, como era de prever, os maus da fita. E, a fechar, numa arrojada invocação do abade Correia da Serra: "O próprio abade Correia da Serra, tão esperançoso da evolução futura do continente, teria dificuldade em enfrentar o processo em curso, e encaminhá-lo, como é exigido pela justiça e pela paz, para o regresso geral ao aceitamento dos princípios da ONU, em pousio, dos princípios da Declaração Universal de Deveres, nunca aprovada, e para a contenção do complexo militar-industrial, que angustiou o diálogo de Eisenhower com o presidente Juscelino, este que teria hoje outras patrióticas preocupações".
Quanto ao aceitamento dos princípios da ONU (não sabemos se por parte das autoridades americanas se das cubanas, Adriano deixa-nos nessa dúvida excruciante), esse organismo fatal pelo qual imagina passarem todas as soluções, estou em condições de sossegá-lo: agora que Guterres vai estar ao leme, aquelas nações que tripudiarem em cima dos princípios encontrarão adversário à altura; e quanto ao complexo militar-industrial também podemos ter alguma esperança - afinal o complexo em questão nunca colocou obstáculos a que ditaduras comunistas evoluíssem para outros regimes.
Desejo sinceramente que Adriano Moreira continue por muito tempo a brindar-nos com as suas análises. E tenho nisso um interesse egoísta porque, na ordem natural das coisas, é de prever que abandone o número dos vivos antes de mim. E tremo só de pensar no que dirão, ao longo de uma semana, os que lhe fingem entender os artigos e subscrever as ideias. Marcelo, ao menos, percebe-se o que diz, além de ter a enorme superioridade de para liquidar os seus inimigos, e promover a sua imagenzinha, não invocar a ONU.
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