Sobre o Programa Nacional de Reformas, uma moxinifada pensada em europês por Cavaco, Guterres, Durão Barroso e Sócrates, e editada pelo troca-tintas que actualmente ocupa a cadeira daquelas sumidades que o precederam na torrefacção dos fundos da Europa, é consensual que nos objectivos estamos todos de acordo, o diabo está nas medidas concretas.
Sucede que não, não estamos de acordo nem sequer nos objectivos que figuram na capa: Mais crescimento? Melhor emprego? Maior igualdade? Algum crescimento que se visse já não seria mau, menos desemprego, em alternativa a melhor emprego, não seria pior, e ao fim de quarenta anos de esforços para aumentar a igualdade talvez fosse tempo de concluir que o que tem realmente aumentado são os impostos, a dívida e o número de funcionários públicos.
São 11 mil milhões que se vão liquefazer, segundo informa o ministro Pedro Marques, que declarou a uma imprensa rendida, e uma opinião pública pedinchona, gananciosa e ingénua, que se trata de "uma inversão estratégica política, económica e social". Um cínico portanto este ministro, se não acreditar nas maravilhas que anuncia, e um burro se acreditar.
Os três grandes objectivos da introdução desabrocham em seis logo que se progride no arrazoado. São eles: qualificar os portugueses; promover a inovação na economia; valorizar o território; capitalizar as empresas; modernizar o Estado; e reforçar a coesão e igualdade social.
É nesta parte que se sublinha sobretudo - mal - o acordo quanto aos objectivos:
Porque, para uns, qualificar tem que ver com a qualidade do ensino e esta mede-se por aferição séria de conhecimentos e capacidades; e para outros qualificar quer dizer aumentar o número de diplomas no ensino oficial e promover formações avulsas sob designações generosas como novas oportunidades ou formação profissional, esta uma gigantesca vigarice destinada a disfarçar a taxa de desemprego e reforçar o poder de burocracias, ocupando umas dezenas de milhar de indivíduos a fingir que ensinam a umas centenas uma soma de coisas quase sempre inteiramente inúteis, para desembocar nuns diplomas que garantem nada.
Promover a inovação na economia é um objectivo daninho, como qualquer outro em que o Estado se substitui aos empreendedores e criadores estabelecendo-lhes metas, métodos e meios; e dará lugar a ninhos de empresas, clusters, centros disto e daquilo, parques de empresas viradas para o futuro, colóquios, encontros e workshops, tudo regado a subsídios. No fim, ficarão umas Quimondas, algumas empresas concorrendo deslealmente com outras que não tiveram apoios e umas sobreviventes por estarem na mão de bons empresários - os quais, provavelmente, num ambiente favorável ao empreendedorismo sem decisões casuísticas de agências do Estado, as fariam de todo o modo; ou as fariam melhor, com melhores resultados e possivelmente com mais satélites e mais postos de trabalho.
Valorizar o território soa a especulação imobiliária, por isso fui ver os "eixos de intervenção e objectivos". São eles a "mobilidade sustentável" (subsídios para o transporte colectivo e mais impostos para o particular), "cidades sustentáveis e inteligentes" (incentivos à construção civil e encarecimento das obras e seus processos de licenciamento com novas normas sobre eficiência energética), "economia circular" (novas obrigações declarativas para as empresas, e reforço de organizações parasitárias que viverão à custa daquelas), "coesão territorial" (um inacreditável elenco de tretas a que não falta a "economia do mar", supõe-se que com eventos abrilhantados pelo presidente Marcelo, pessoa que não hesita em atirar-se à água, como é sabido, e os "produtos endógenos regionais" - adivinha-se um renovado interesse no galo de Barcelos, na cerâmica das Caldas e na bendita gastronomia: paios, chouriças, queijadas e o inevitável pastel de nata.
A capitalização das empresas é gritantemente necessária, e misturadas com as proclamações piedosas do costume aparecem duas ou três medidas necessárias e úteis. Tão necessárias e úteis que é lícito duvidar que vejam a luz do dia, porque este é um governo minado pela necessidade de acordos com comunistas, que têm sobre as empresas a mesma opinião que o general Custer tinha sobre os pele-vermelhas - são bons é mortos. São elas: reforço dos incentivos ao financiamento do investimento por recurso a capitais próprios, através da dedutibilidade fiscal do seu custo; e harmonização dos procedimentos e decisões adoptadas pelos credores públicos no âmbito de processos de reestruturação principalmente entre a Autoridade Tributária e Segurança Social. Há outras medidas razoáveis mas dependem de decisões casuísticas. E, como princípio geral, convém ter presente que sempre que há decisões caso a caso da Administração Pública o resultado líquido é abuso muito, erros clamorosos bastantes, corrupção alguma, e possibilidade de recurso em tempo útil e justamente apreciado nenhuma.
A maior modernização que o Estado poderia ter seria simplificar o regime fiscal de modo a torná-lo inteligível a leigos e estável; e amputar-se do lugar indevido e crescente que ocupa na vida das empresas e das pessoas. Sobre isto nem uma palavra - do que se fala neste capítulo é da facilitação da intrusão, isto é, tornar mais simples a obtenção da licença, do alvará, do certificado e do camandro. Que isto é assim vê-se nas medidas, cómicas na sua inconsciência estatista: redução de 30% dos prazos médios de licenciamento ambiental (sobre a redução das exigências do licenciamento nada); redução de tempo consumido pelas empresas na interação com a Autoridade Tributária e a Segurança Social (sobre os abusos e a inimputabilidade de uma e outra entidades, nada); número de Decretos-Leis aprovados sem a regulamentação neles prevista, a partir de 2016: objectivo zero (sobre a diminuição da diarreia de diplomas legais, nada); estabelecer 2 datas fixas por ano para a entrada em vigor de legislação que altere o quadro jurídico das empresas: 1 Janeiro e 1 de Julho (sobre a obrigação de as alterações não conterem mais obrigações burocráticas, mais encargos e mais despesa, nada); e redução de 20% do número de pendências na ação executiva cível até 2020 (mas este governo vai durar até 2020? E alguém se lembrará da promessa daqui a, digamos, dois meses?)
O capítulo "reforçar a coesão e igualdade social", na parte das "medidas" começa com o solene propósito do "aumento gradual dos rendimentos", que traduz uma deplorável falta de ambição: não se percebe por que razão não se declara para os rendimentos um aumento súbito. A menos que a razão tenha a ver com o facto de todas as outras medidas implicarem ou aumento de despesa, ou transferência de rendimentos de umas categorias de cidadãos para outras, ou crescimento da cobrança fiscal via crescimento do PIB.
Deve ser nisto que o governo que (não) escolhemos crê: que a riqueza vai aumentar mas devagar - daí o aumento gradual dos rendimentos.
Diz-se que a fé remove montanhas. E será a fé traída que removerá, mais cedo do que tarde, não a montanha da dívida, nem dos problemas entretanto agravados, mas os autores deste deplorável papelucho a que chamaram PNR.
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