O Parlamento de faz-de-conta teve o seu dia; e o seu dia teve Juncker, que pode prosseguir a sua gloriosa carreira de alto-sacerdote do ideal europeu.
Arrisca-se a ser o último de uma longa linhagem de engenheiros de pátrias. Porque até há poucos anos lidava-se com países que, como certos da Europa Central e de Leste, queriam uma casa comum para se defenderem do urso russo; pequenos países que, como o Luxemburgo natal e a Bélgica, são pais fundadores e beneficiam largamente da sua centralidade no Império; países saídos de longas ditaduras, como nós e a Espanha, que pretendiam um seguro de vida da democracia contra golpes militares; e todos, todos quantos foram atraídos pelo mercado comum, a livre circulação de pessoas e bens, uma longa história de sucesso, e os fundos de coesão, um sucesso de propaganda.
Mas em 1992 havia chegado Maastricht, o Euro e o início, durante anos imperceptível, da ascensão imparável de uma burocracia paga a peso de ouro, recrutada nos países membros e que, como todas as burocracias, foi alargando pacientemente o seu poder.
Desde Maastricht houve 16 adesões de novos países a uma agora designada União, que todavia, com a reunificação da Alemanha em 1990 e o fim da Guerra Fria, perdera ao mesmo tempo o equilíbrio entre os seus principais membros e um inimigo comum, passando a Alemanha a ter, demográfica e sobretudo economicamente, um peso que lhe confere um papel de liderança, que aliás, crescentemente, não se dá ao trabalho de sequer disfarçar.
Os países que, entretanto, se deixaram prender na armadilha do Euro, endividando-se até aos cabelos, não estão em condições de recusar a fuga integracionista para a frente que o Euro, para sobreviver, implica.
Era assim que estávamos. Não é assim que estamos. Porque a pérfida Albion nem está no Euro, nem arruinada, nem tem uma parte substancial da sua população emigrada, nem tem uma classe dirigente e uma opinião pública e publicada quase sem excepção de cócoras perante as maravilhas da construção europeia.
Britain's days in the EU are numbered, diz Daniel Hannan.
Os da UE também, tal como a conhecemos - espero eu.
A campanha eleitoral já ferve, Rangel fez dieta, Assis não, que excitação, já a 25 de Maio ficamos a saber quem vai para Estrasburgo nuns dias, e para Bruxelas noutros, fazer o pé-de-meia lá naquela coisa da Europa.
Eu não sou desses de fazer um tabu: votarei na lista do Governo, diz que é da direita. Não é que goste muito da lista (nem do Governo, já agora) mas socialistas não, palavra de honra, é malta que não percebeu o que fez ao País e continua disposta, na medida, que é pouca, em que os credores deixem, a fazer o mesmo.
E seja porque se acredita que esta coisa vai voltar ao antigamente pela mão de um émulo do edil Costa, o das mudanças de paradigma e apostas na competividade, formação e tretas sortidas, seja porque - vota comuna, pá - se deseja uma lição nestes fachos egoístas e corruptos, seja porque se acredita que os Pachecos, Manuelas, Bagões e os 73 do Manifesto (eram 74 mas um arrependeu-se) desta vida têm no alforge soluções muito diferentes para um problema muito igual, sempre o que se vai discutir é o nosso rincão.
Em alguns dos 28 países discute-se a Europa, para o efeito de saber, antes de mais, se convém estar dentro ou fora; e, estando dentro, estar dentro como.
Gente indecisa e pouco firme nos propósitos. Que nós não temos dúvidas: a nossa posição é dentro - e de mão estendida, variando apenas o grau de persuasão na pedinchice do qual uns e outros dizem ser capazes.
E ainda bem que é assim. Porque, se a eleição tivesse realmente alguma coisa a ver com assuntos europeus, ia ser o carago para escolher. Das nove afirmações seguintes três são do socialista Schulz, três do centro-direitista Juncker e três do liberal Verhofstadt:
- O Estado-Nação atingiu o seu limite.
- Devemos ousar dar um salto ainda mais radical: para uma nacionalidade europeia completa.
- Populismo, nacionalismo e eurocepticismo são incompatíveis com uma União Europeia forte e eficiente, capaz de enfrentar os desafios do futuro.
- É patético que a França e o Reino Unido não encarem a hipótese de fundir os respectivos assentos no Conselho de Segurança da ONU num único, em representação da UE.
- A criação do Euro beneficiou certamente as economias dos países aderentes e é por isso irreversível.
- Um mundo global requer um governo global.
- Não podemos permitir que o princípio de uma Europa a várias velocidades se enraíze.
- Uma União Europeia ambiciosa requer um orçamento ambicioso.
- Não deveremos pensar no imediato em instalar um governo mundial, ainda que isso deva ser o nosso objectivo final.
Pois é, não se consegue saber, sem pesquisa, quem disse o quê, porque eles dizem todos a mesma coisa, ainda que a terceira pérola pudesse ser nacional, por ter um aroma cavaquista - "desafios do futuro" é uma expressão que faz parte do dialecto de Belém.
Tratemos então da nossa casa, que da casa europeia já há quem trate. Mas não é nenhum dos três estarolas acima - é a gente que aparece no vídeo, no final deste post.
Sei que não sou o único seguidor português de Daniel Hannan. Pelo contrário, somos uma legião.
Mas o homem é inglês, e a condição de filho da Ilha tem efeitos deletérios numerosos: nas papilas gustativas, por exemplo, denunciam-se pelo gosto generalizado por peixe congelado mal frito, embrulhado numa couraça impenetrável, acompanhado por batatas fritas congeladas (o conjunto a saber a comida de prisão do Mississípi) e pelo sucesso dos programas de Jamie Oliver, onde se ensinam multidões a estragar géneros alimentícios perfeitamente inocentes; e no famoso fair play por uma História onde o play abunda, como na de outros países, mas o fair rareia ainda mais do que noutras paragens.
Mas aquela boa gente tem abundância de coisas excelentes, que não vou referir porque anglófilos já há avonde, e um lado ingénuo e cómico que lhes escapa mas a nós faz sorrir. Pois não é que o bom do Daniel rejubila porque a taxa que a BBC recebe vai acabar, acabando do mesmo passo os 180.000 processos criminais por ano contra faltosos, incorrendo o cliente apenas no risco, quando não pague, de lhe cortarem o sinal?
Ah ah ah, que totós: bastava incluir a taxa na conta da energia eléctrica e zás, para não pagar a BBC o espectador zangado tinha que não ver nada, tiritando de frio, depois do Sol-posto.
Ou então arranjava-se uma manigância qualquer daquelas da fidelização, para poder fingir que há concorrência ao mesmo tempo que ela foi anulada, com a vantagem ainda de o serviço poder ser um desastre que nem assim o assinante deixava de ter que o pagar, mesmo que o não usasse.
A tua BBC tem prestígio em todo o Mundo, Daniel; a nossa RTP nem sequer em Freamunde; e, pagando compulsivamente a taxa, ainda vamos, ano a ano, cobrindo os prejuízos porque o Governo nos garante que já já aquele trambolho vai equilibrar as contas. Este Governo; os anteriores; os futuros.
Sigo este tipo há anos e quase sempre concordo com ele. Isto é preocupante: que eu tenho partido, ao qual pago quotas e tudo, mas ouço aos responsáveis, com frequência, uma quantidade prodigiosa de asneiras; tenho clube, mas acho que joga amiúde mal, apesar de ganhar; e tenho amigos, mas a maior prova da amizade que lhes dedico é, precisamente, ouvir-lhes as opiniões. Concordância não é o meu nome do meio - é Meireles, que numa indigna corruptela resulta em mais reles.
Mas hoje vingo-me, Daniel. Com que então, achas que, em nome do direito elementar de cada um se vestir como entende, a proibição do hijab é um abuso do Estado? E dás como exemplo, ilustrado com fotografia, um grupo de freiras com a cara, apenas a cara, a descoberto?
A mim me parece que qualquer daquelas freirinhas, se quiser sacudir o hábito, pode passar a ser mal vista no convento mas não será rejeitada pela sociedade, nem esta lhe negará o respeito devido a quem, por ter perdido as crenças e a pertença que o trajo diferente implicava, optou por se vestir de outra forma.
Tal liberdade não a têm as mulheres muçulmanas: não apenas a sua comunidade as ostraciza, mas também, se as autoridades tiverem simpatia pelo multiculturalismo, se sujeitam às maiores violências.
Falar de liberdade neste contexto não faz qualquer sentido: se for permitido nas nossas cidades que as muçulmanas se passeiem de burqa, a reboque do marido ou familiar macho, o direito que têm aquelas que isso, por razões de identidade cultural, querem fazer, inibe o direito das outras que queiram dar o grito do Ipiranga, quer sejam quer não sejam a maioria.
E, nisto como no mais, a ingenuidade é má conselheira: em nome das nossas liberdades os muçulmanos querem ser diferentes; e, logo que tenham a maioria, nos países, cidades ou até bairros, passamos nós a ter que ser iguais a eles, para não ofendermos os valores do Islão, na versão do barbudo local que pontifica na madrassa.
Questão de traje, Daniel, apenas? Come on, nisto os jacobinos franceses estão com a razão. Em alguma coisa haveriam de estar, aquela raça de frogs.
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