Domingo, 16 de Abril de 2017

Infernos fiscais

Podemos portanto ficar descansados: Uma vez por ano teremos direito a saber quanto dinheiro foi transferido para as Ilhas Caimão, e as do Canal, e poderemos sonhar com esses lugares inacessíveis aonde os famosos e os poderosos se deslocam nos seus aviões privados, ou no mínimo nas suas viagens em primeira classe, para se encontrarem com outros plutocratas em festas babilónicas onde mulheres esculturais com menos roupa ainda que princípios se cruzam com jovens atléticos, igualmente proficientes no court de ténis e nos tálamos vagos momentaneamente de maridos.

 

Jornalistas agudos explicarão porém que a maior parte do dinheiro se destinou a transacções comerciais, sendo os paraísos fiscais locais onde os credores chineses, ou sauditas, ou de outras nacionalidades, exigem, decerto por razões suspeitas, ser pagos; e, para quem for além dos cabeçalhos, explicarão que na realidade os paraísos em questão são em geral lugares pouco aprazíveis e as empresas lá sedeadas meras caixas de correio.

 

Resta que o propósito da lei não é, como não era o do despacho anterior de Sérgio Vasques, uma das sinistras figuras que ocupou o lugar de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, exercer qualquer espécie de fiscalização: dizer aos cidadãos todos os anos quanto dinheiro saiu do país para destinos onde os seus donos não são esbulhados demencialmente contribui zero para a fiscalização da evasão fiscal; mas ajuda muito à ideia de que os paraísos fiscais não deveriam sequer existir, como pensa o PCP e se esganiça a dizer o BE; e predispõe o público para a ideia de que o contribuinte é dono apenas do que a autoridade democrática entende que pode conservar do que é seu, sendo tudo o mais um roubo.

 

É isto que explica que pouco importa que os secretários de Estado deem aulas na Católica ou sejam até do CDS: todos acham que a medida do seu sucesso é o aumento do esbulho; que a riqueza cresce pelo efeito de a transferir para o Estado; que, a despeito das evidências, se todos pagarem o que "devem" todos pagarão menos; e que a diminuição dos direitos dos contribuintes é um mal necessário, em nome do bem maior que é o combate à evasão fiscal. Combate tão importante que já hoje se dá como pacificamente aceite que a inversão do ónus da prova, inadmissível em processo penal para o crime de furto, ou outro qualquer, é rotineira para o mesmo crime se praticado por qualquer funcionário por excesso de zelo, deficiente interpretação da lei ou enquadramento dos factos tributários.

 

Não é o mesmo crime, dirá por aí algum jurista, porque não foi praticado para benefício próprio, mas sim o da comunidade. E isto se aceita com naturalidade, sem perceber que os maiores crimes do século passado foram cometidos em nome de um bem maior. Ontem a igualdade material dos cidadãos ou a pureza racial, hoje a justiça fiscal. Um progresso, sem dúvida, porque ninguém morre, a não ser talvez de fome, porque as mesmas regras que permitem perseguir ricos, que se podem defender, não o permitem aos pobres, porque a defesa é cara.

 

Daí que a autoridade fiscal possa impunemente, se estiver para aí virada, enviar cartas a exigir o pagamento de impostos já pagos a milhares de contribuintes, e estes se vejam coagidos a pagar de novo se não tiverem o papelinho que prove que pagaram; ou que existam duas fiscalidades para empresas, as que têm e as que não podem ter aconselhamento fiscal.

 

Abençoado mundo novo: perseguem-se os ricos porque o são, com a legislação que os pobres sancionaram por inveja e ressentimento; e os segundos com os mesmos instrumentos porque o Estado é insaciável ainda que não imprudente ao ponto de atacar todos, ou sequer a maioria, da mesma forma, nem ao mesmo tempo. Para isso usa outras formas, que são as taxas e os impostos indirectos embutidos nos preços.

 

A Assembleia aprovou e Marcelo promulgou sem reservas e sem surpresa: seria decerto muito pouco afectuoso da parte dele ter uma opinião diferente da da maioria da opinião pública, que lidera em estima na exacta medida em que a serve com abjecto seguidismo; daqui a um ano haverá uma listinha no Expresso, que terá tanta utilidade como a que tiveram os Panama papers; e o inquérito rigoroso que se ia fazer aos 20 maraus que tiveram o arrojo de pôr dinheiro ao fresco sem serem fiscalizados entre 2011 e 2014 terá o mesmo destino que tiveram todos os outros inquéritos rigorosos que o Estado manda fazer a si próprio. De resto, o papel do incidente já está cumprido: confortou as pessoas na ideia de que os paraísos fiscais são cavernas de Ali-Babá, quem para lá transfere dinheiro ladrões, e quem supervisiona o processo corruptos.

 

Provas não são precisas porque a acusação está feita. E, no caso de Paulo Núncio, com uma certa justiça poética: o homem é sério mas burro. Só um burro prossegue políticas socialistas com a esperança de que os seus, que não são socialistas, o aprovem porque são seus, e os socialistas porque são socialistas; só um patarata suspende a publicação de umas listas inócuas na prática, salvo na sua carga ideológica, que provavelmente não percebe, sob pretexto de não alertar os infractores; e só um ignorante julga que o aumento da receita fiscal pela via da diminuição dos direitos dos contribuintes (e pela transformação do cidadão comum em fiscal com o engodo de prémios sorteados) seria, mesmo no contexto da troica, alguma obra que ajudasse seriamente, a prazo, na recuperação do país.

publicado por José Meireles Graça às 22:03
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Segunda-feira, 17 de Outubro de 2016

Coimbragrado

Não incumbe ao Estado assegurar a igualdade no acesso a produtos nocivos à saúde, diz o professor doutor de Coimbra meu Deus, e a gente pasma.

 

Mas o Estado garante, a quem não tenha recursos para se atochar de pilhas de bolos e litros de refrigerante, pontos de distribuição gratuita daqueles maléficos produtos?

 

Não, não garante, nunca garantiu, e só o viria algum dia a fazer se os consumidores diabéticos, obesos e desdentados fossem a maioria e prometessem trocar o seu voto por tíbias, bolas de Berlim, éclairs, natas, e coca-colas de litro oferecidos pelo partido que estivesse no Poder, caso em que os magros, sadios e portadores de reluzentes teclados em perfeito estado de conservação se veriam acabrunhados de impostos.

 

Portanto, o Estado não garante, e nunca ocorreu a ninguém que o devesse fazer. Mas garante a saúde para todos, quer a possam quer não possam pagar, e para todos gratuita. E como não há simplesmente recursos para suportar um tal monstro que outra luminária de Coimbra pariu ao som das trombetas da igualdade, e perante os aplausos das multidões rendidas, segue-se que, para manter o falido Serviço Nacional de Saúde, é essencial que os cidadãos a ele não recorram. Semelhante premissa estava já implícita até no nome: é um serviço de saúde, não de doença.

 

O cidadão novo deve então ser saudável, e no limite o Serviço Nacional de Saúde ficará adstrito idealmente às gravidezes, às doenças de origem genética, às epidemias, às doenças geriátricas, aos acidentes e às unhas encravadas.

 

Doenças que possam ter origem em comportamentos pouco saudáveis - não. Para já, os transgressores são tratados a golpes de impostos especiais. Seguem-se as proibições, as multas e outras sanções, como já sucede com o tabaco, e, em devido tempo, além de não incorrer em certos comportamentos, ao cidadão exigir-se-á que adopte outros que o beneficiem - como andar a pé, por exemplo.

 

Entretanto, os pobres não têm direito nem a vícios nem a prazeres que as autoridades não aprovem. E, a prazo, a gritante injustiça desta discriminação haverá de ser corrigida: Incumbe ao Estado assegurar a igualdade na proibição do acesso a produtos nocivos à saúde, dirá a seu tempo o preclaro constitucionalista.

 

Se perguntado, dirá que é a favor da igualdade (mas não a de comer croissants em excesso), da economia de mercado (mercados regulados, entenda-se, de modo a que se produza não o que o consumidor quer mas o que o Estado entende que deve querer) e da liberdade (foi por causa dela que deixou de ser comunista).

 

A liberdade acima de tudo, ai. Liberdade de ser igual ao vizinho, fazer o que o vizinho faz, e de agir do modo que se possa e queira desde que não prejudiquemos terceiros nem a nós mesmos. Porque quem se prejudicar a si mesmo está a prejudicar terceiros, que é o que sucede quando o indivíduo não se pertence mas ao Estado.

publicado por José Meireles Graça às 01:35
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Sábado, 15 de Outubro de 2016

Argumento obsceno

Anda por aí um vídeo que tem feito algum sucesso e que se refere às 78 medidas com impacto negativo para o contribuinte que o defunto governo PàF tomou.

 

É uma animação de propaganda feita por gente obviamente de esquerda, e portanto conviria conferir: talvez as medidas não tenham sido exactamente 78, talvez algumas não tivessem bem o perfil descrito e por certo alguns cortes eram mais do que razoáveis. De resto e desde logo, cortes não são assimiláveis a impostos, mesmo que o efeito seja o mesmo para quem os sofre.

 

O grotesco PM actual ainda há dias admitia em tese que as pensões que não se fundem em carreiras contributivas deveriam ser pagas apenas sob condição de recursos, um princípio que era até há pouco anátema. Sem surpresa: o PS sempre se distinguiu, nas grandes (revisões constitucionais, por exemplo) como nas pequenas coisas por só aceitar o óbvio quando este passa de comum a ululante, para usar uma palavra tão apreciada pela camarada Ana Gomes. E portanto os pensionistas cujo voto foi comprado há que tempos com a atribuição de um "direito" que não o era que se preparem: é apenas uma questão de oportunidade até se comprar a anuência do PCP e a do BE para a medida, em troca de outra coisa qualquer que permita a estas beneméritas instituições salvar a face, encaixando de passagem alguns clientes no aparelho sindical ou do Estado.

 

Mas lá que o aumento de impostos foi colossal, como lhe chamou o lerdo Gaspar - foi. Tanto que aquelas pessoas que são de direita por acharem que após quase quarenta anos de governos de esquerda (incluindo o PSD na sua declinação social-democrata, que só se distingue do PS pelo pessoal dirigente conhecer a tabuada, e o CDS, cuja costela democrata-cristã o leva por vezes a julgar que a economia se rege com encíclicas papais) já era tempo de reformar o Estado para que a economia cresça, foram dizendo que a oportunidade era de ouro para cortar na despesa e não aumentar a receita.

 

A oportunidade passou. E agora, salvo no contexto de um quarto resgate, não haverá reforma alguma. E como aos credores tanto monta que o Estado se emagreça ou esmague os cidadãos com impostos demenciais, desde que não tenha défices, resulta que a actual solução governativa tem as mãos livres para fazer metade do que lhe está nos genes - dar rendimentos ao maior número de pessoas. A outra metade, que é a bolsa aberta dos emprestadores, existe ainda para rolar a dívida, mas não para a contrair nova. Donde os impostos têm que subir, ficando a discussão, que entusiasma a comunicação social, para o quando e quanto.

 

Seja, até que o eleitorado de esquerda perceba que também lhe estão a ir ao bolso, ou o BCE feche a torneira, ou a DBRS se zangue, ou apareça uma importante jazida de bauxite no Alentejo, ou a UE se esfarele, ou Hillary comece a III Guerra Mundial - alguma coisa haverá, menos crescimento económico.

 

Somente me aborrece que se use o argumento obsceno de que qualquer aumento de taxas, ou criação de impostos novos, fica sempre enormemente aquém do que Gaspar fez. É ao contrário: precisamente porque Gaspar foi longe de mais é que a única discussão séria que poderíamos ter seria a de quais os aumentos que vão ser revertidos, a par das despesas que se vão cortar para o permitir.

 

É que, se todos os governos aumentassem impostos a taxas inferiores às do último aumento verificado, e não parassem de o fazer, não é difícil perceber que, um dia, chegaríamos à taxa de 99,9%.

 

Estranho? Nem por isso. Por muito pequeno que seja o aumento da taxa, esta cresce sempre, se se aceitar o princípio absurdo de que um aumento é legítimo porque anteriormente foi muito maior. E é também por isso que é tão perigoso criar impostos novos, como o da pilhagem que se prepara sobre os proprietários de imóveis acima de um determinado valor. Uma vez no terreno, é apenas uma questão de tempo até que as taxas sejam estratosféricas, mesmo que no princípio fossem relativamente indolores.

 

Pobre Gaspar, que teve uma oportunidade e a deixou fugir sem sequer tentar. Não deve ser coisa pouca a pesar-lhe na consciência; e nem era preciso que o que conseguiu esteja agora a ser liquidado sob a regência de um coveiro anafado, acolitado por serventuários tachistas, comunistas fósseis e esganiçadas venezuelanas, perante uma opinião pública acéfala. Que sobre esse drama que se desenrola debaixo dos nossos olhos dispensávamos a comédia.

publicado por José Meireles Graça às 14:33
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Quarta-feira, 12 de Outubro de 2016

Nova Eŭropa Viro

Os impostos podem tornar os portugueses mais saudáveis?, pergunta o título e o texto responde dando a entender que sim.

 

Eu também acho. E nem preciso de exercitar a imaginação: quando comecei a trabalhar muitos empregados fumavam e hoje a esmagadora maioria não fuma nem tosse, a ponto de, quando vou do meu gabinete à secretaria, onde ninguém tem esse hábito demonstradamente nocivo, e calha ir fumaçando, haver com frequência alguém que lembra a proibição legal de fumar em espaços públicos, menos com a esperança de me ver apagar o cigarro e mais para me ouvir dizer, pela milésima vez, o que realmente penso das proibições fascistas e o que se entende por espaços públicos, que não são certamente os da fábrica que fundei e onde trabalho. Sou um patrão moderno: qualquer trabalhador tem a liberdade de me dizer o que entende depois do meio-dia, e eu a de ouvir apenas o que me agrada, convém ou acho útil.

 

Não fuma porquê? A maioria porque não pode: um operário que ganhe o salário mínimo e fume um maço de tabaco por dia gasta quase um terço do vencimento em tabaco. E portanto faz das tripas coração para deixar de fumar, tendo como recompensa a satisfação de pertencer à virtuosa maioria, e como vingança o direito de atazanar a paciência aos escravos do vício, ameaçando-os com os rigores da lei umas vezes e dando consultas antitabágicas grátis, outras.

 

Com isso, abdicou do direito a, depois do café da manhã, fumar o saborosíssimo primeiro cigarro do dia; depois do almoço, que trouxe de casa, a não regressar ao trabalho sem dedicar algum tempo ao prazer; e aumentar a concentração, se ela for necessária, aliviar o stress, se existir, distrair quando a tarefa é chata - tudo o que o tabaco faz e que explica o sucesso que teve e ainda vai tendo junto de alguns diehards.

 

Abdicou do prazer, numa vida que é escassa deles. E isto em nome dos senhores médicos, que consolam a sua incapacidade para curar os males que o tabaco provoca com o expediente de proibir os comportamentos que evidenciem a sua impotência, demonstrando ao mesmo tempo o poder e importância que têm; dos senhores políticos, de cujas motivações abaixo se dá nota; e da maioria dos cidadãos que, no tabaco e no resto, nunca precisaram senão de boas desculpas para reprimir os comportamentos das minorias, em particular se estes caírem na categoria de vícios.

 

O Poder, em particular nas sociedades democráticas, não quer desagradar à opinião pública, porque quem o detém quer lá manter-se e quem não o detém quer lá chegar. Para agradar à maioria é preciso distribuir benefícios - as campanhas eleitorais são hoje leilões de promessas onde ganha quem as faça credíveis. E como, mesmo descontando a aldrabice, com a qual aliás o eleitor já conta, é preciso entregar, a receita fiscal tem que crescer, coisa que sucedia naturalmente no saudoso tempo em que a economia crescia.

 

Agora não e é portanto necessário usar expedientes: um bom é aumentar os impostos indirectos - toda a gente se queixa do preço do combustível (que nunca esteve na origem tão barato), sem se dar conta que o imposto embutido no preço pesa mais do que o produto refinado; e se uma categoria de produtos tem muita procura, mas infelizmente uma taxa normal de imposto (o "normal" é quase um quarto do preço) a solução é dependurar-lhe um labéu de nefasto para a saúde, e zás, logo a opinião pública fica receptiva a pagar taxas delirantes. À força porém de tirar dinheiro dos bolsos de uns para enfiar nos bolsos de outros estamos já na situação em que, com frequência, são os mesmos: o tipo a quem aumentaram a pensão vai dar um passeio no carrito e descobre que o aumento que lhe deram não cobre o aumento do custo do passeio; o funcionário cuja dignidade estava ofendida mas deixou de estar porque o novo governo respeita as pessoas constata que não consegue pagar as despesas escolares dos filhos sem passar fome; e assim por diante.

 

Dos impostos directos nem é bom falar, que ricos já não há faz tempo, pelo que mesmo com o exercício semântico de chamar "rico" a quem é apenas remediado nem a receita é muita nem a operação segura: os antigos remediados, agora reclassificados para efeitos fiscais, são com frequência socialistas, e não estão portanto disponíveis para redistribuir senão o que não lhes pertence.

 

Entretanto, o Serviço Nacional de Saúde tornou-se, por boas e más razões, uma vaca sagrada do regime. E como a evolução das contas nacionais mostra que os cortes não foram nunca suficientes; a receita não cresce para alimentar as insaciáveis necessidades daquele serviço; e a população cada vez mais envelhecida requer cada vez mais do SNS, quando ele pode cada vez menos: há que fazer um homem novo são, atlético, que não adoeça, não tenha vícios, não se alimente mal, faça exercício - tudo a golpes do Fisco, da polícia de costumes, de regras, regulamentos e propaganda.

 

No limite, e como escreveu um leitor indignado do artigo, "a melhor solução era mesmo retirar do SNS o tratamento a doenças resultantes de maus hábitos de saúde como alcoolismo e tabagismo crónicos".

 

Santas caixas de comentários, nelas se encontram sempre os reformadores sociais, os ferrabrases de aldeia, os justiceiros, e os imbecis. Que este santo homem não se apercebeu que o que os fumadores pagam em impostos, e poupam em pensões por morrerem mais cedo, cobre largamente o seu custo acrescido; para não lembrar que não poucos cidadãos se excluiriam eles próprios do SNS se se pudessem também livrar de o sustentar.

 

Enfim, caminhemos alegremente para o mundo novo que a preclara Comissão Europeia aponta: de todos o que puderem, a todos o que não lhes podemos dar; e todos morreremos em instituições de terceira idade, sãos como peros salvo as doenças da senectude, de todos esquecidos e esquecidos de nós próprios.

publicado por José Meireles Graça às 12:16
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Quinta-feira, 6 de Outubro de 2016

Impostos, desigualdades e justiça fiscal: um Bê-á-Bá

 

É motivo de discussão acalorada e apaixonante entre lentes de Coimbra e académicos de Lisboa e de outras universidades do país se é mais justo devolver os rendimentos aos portugueses através dos impostos directos ou através dos impostos indirectos. Discussão de natureza fortemente moral, que se pode resumir a determinar quem é Robin Wood, e tira aos ricos para dar aos pobres, e quem é xerife de Nottingham, e tira aos pobres para dar aos ricos?

Abstraiamos, para continuar a conversa sem nos perdermos em discussões acessórias, o facto de que, se é preciso escolher entre impostos directos e indirectos para ir buscar o dinheiro para devolver, os rendimentos não estão de facto a ser devolvidos, estão meramente a ser tirados a uns para entregar aos outros. Adiante.

Eu não me meto nessa discussão erudita, que não sou lente, nem de Coimbra, apesar de ser de Lisboa. E ter até a impressão que alguns lentes e académicos se terão doutorado em idiotia, tamanha a efabulação a que recorrem para descrever o mundo real, como ele podia ser, e devia, dada a componente moral da fábula, e o que se deve, às vezes sem granda preocupação com o facto de se poder ou não, fazer para o aproximar do que ele devia ser.

Eu ainda estou convencido que uma dona de casa regular, que sabe que para esticar o dinheiro até ao fim do mês tem que o gerir com parcimónia, que dever ao banco lhe leva o coiro e o cabelo em juros, e que para ir levando a vida menos mal é obrigada a fazer escolhas entre o necessário e o acessório, e quando condescende com o acessório paga com faltas do necessário, seria o melhor ministro das finanças de qualquer país, e se tivessemos tido ao longo da história donas de casa regulares em vez de lentes e académicos não estaríamos a esta hora a discutir o peso da dívida que deixamos aos nossos filhos para pagarem, ou se é melhor pagar juros ou tratar doentes nos hospitais. Ilusão que me dá a esperança de ser possível recrutar bons ministros das finanças, porque pessoas normais com um mínimo de bom senso há aos milhões, mas que os eruditos afastam com o argumento demolidor que as finanças de um país são muito mais complexas que as finanças de um lar, pelo que não vale a pena recorrer ao bom senso para contrariar a erudição, que prefere pagar a despesa com dívida e mais tarde dar o calote na dívida declarando-a odiosa.

Também há quem lhe chame chico-espertice mas, como contra argumentos não há factos, eu não ambiciono mais do que ajudar as pessoas ainda mais simples do que eu a perceberem um pouco melhor este mundo complexo da economia, das finanças e da fiscalidade, com bê-á-bás ao meu alcance e ao alcance delas. Esta publicação não é, pois, para os leitores regulares, mais informados e lúcidos, do Gremlin Literário. Que, no entanto, se tiverem curiosidade podem ficar para ler até ao fim.

E venho aqui hoje porque ontem se deu um importante avanço na ciência económica em Portugal. Um dos conceitos-chave nas discussões, intra-académicos ou intra-leigos ou entre académicos e leigos, é o de classe média. Reza a evidência empírica, e algum anedotário que se vai construindo a partir da evidência acumulada, que a fiscalidade é sempre calibrada para atingir os ricos, e acerta sempre na classe média. Evidência que até já passou para o domínio público com o célebre ditado popular "quem se lixa é o mexilhão". Mas nunca até ontem se tinha conseguido definir com a precisão que a ciência exige, até a económica, o que é a classe média. São as pessoas que têm uma casa de habitação de um milhão de euros? As que vivem num quarto alugado? Os reformados com pensões acima dos 4.611,22 euros a quem ainda falta devolver rendimentos? Os beneficiários de pensões mínimas que não correspondem a baixos rendimentos? Não se sabe ao certo e vai-se usando a definição que dá mais jeito para argumentar em cada discussão específica.

Ontem foi finalmente formulada a definição tributária de classe média.

  • "...o universo de contribuintes tributado seja suficiente para que haja uma receita considerável...", ou "...evitar que o imposto se aplique a um universo tão reduzido de contribuintes que deixe de fazer sentido...".

Está definida e não vale a pena perder mais tempo com discussões.

Assente que está quem faz parte da classe média, podemos então passar para uma análise de que tipo de impostos, directos ou indirectos, e, dentro destes, os de incidência universal ou os que incidem sobre o vício, contribui mais para aumentar a igualdade, o critério mais regularmente usado para identificar justiça fiscal, e que tipo contribui mais para aumentar a desigualdade, sem qualquer pretensão de entrar na discussão erudita deste tema, mas apenas ao nível do bê-á-bá, através de um exemplo muito simples, de dois velhos conhecidos da sociedade portuguesa:

sr_feliz_sr_contente.jpg

  • O Senhor Contente, que é rico, ganha 5 mil euros por mês, gasta 4 mil e consegue poupar mil, e fuma um maço de tabaco por dia.
  • O Senhor Feliz, que é pobre, ganha 500 euros por mês e gasta-os todos, e fuma outro maço de tabaco por dia.

Façamos então uma simulação que nos permita determinar o aumento da carga fiscal sobre cada um quando é necessário aumentar a receita fiscal para manter o equilíbrio das contas públicas através do recurso a três alternativas diferentes:

  • Uma sobretaxa no IRS de 1%, ou seja, um imposto directo
  • Um aumento de 1% na taxa do IVA, ou seja, um imposto indirecto de incidência universal
  • Um aumento de 1€ no imposto do tabaco, ou seja, um imposto indirecto de incidência específica.

O IRS só incide sobre o Senhor Contente, já que o Senhor Feliz não atinge um nível de rendimento suficiente para o colocar no primeiro escalão, o IVA incide, não sobre os rendimentos, mas sobre as despesas que cada um deles faz, e o Imposto sobre o Tabaco incide sobre os dois na medida do que fumam.

2016-10-06 Sr. Contente, Sr. Feliz.jpg 

Para quem se tem perdido a tentar seguir e perceber as discussões entre os eruditos, a conclusão é surpreendentemente simples:

  • Os impostos directos aumentam a igualdade porque penalizam mais os ricos que os pobres.
  • Os impostos indirectos e, dentro deles, os que têm incidência específica, aumentam a desigualdade porque penalizam mais os pobres que os ricos.

Podem repetir sem receio de errar

  • Os impostos directos promovem a redistribuição de rendimentos e a justiça fiscal, os impostos indirectos são cegos.

Que uma análise tão humilde, um bê-á-bá destituído de qualquer ambição, mostre tão cristalinamente (not a private joke) um facto que os eruditos dedicam tanto tempo e esforço a discutir e a negar, é uma prova que a erudição deles, e eles são os socialistas mais vocais hoje em dia e as bloquistas, que os comunistas são tradicionalmente mais dados às contas do que à erudição, é em idiotia.

E qual é a opção do governo socialista e das bloquistas que o apoiam tão sonoramente, tolerada pelos comunistas que o apoiam mais discretamente? É aquilo que antigamente se poderia designar, e continua a poder, pela opção de classe: aumentar as desigualdades evitando os impostos directos que penalizam mais os ricos, porque os ricos chateiam-se, e carregando nos indirectos que incidem indistintamente sobre os ricos e os pobres e, portanto, penalizam mais os pobres em termos relativos, porque os pobres nem dão por ela, por serem indirectos. A fiscalidade Xerife de Nottingham vestido de Robin Wood.

Alguma surpresa? Nenhuma, mas, social-democracia, o tanas!

publicado por Manuel Vilarinho Pires às 09:22
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Quinta-feira, 15 de Setembro de 2016

Barco adornado

Deus me livre de tentar entender, e menos ainda explicar, o IRC americano: uma das características dos sistemas fiscais modernos é serem ininteligíveis para o comum dos mortais, razão pela qual existe uma multidão de consultoras especializadas em engenharia fiscal. Lá, como cá, o que se paga depende da qualidade técnica do aconselhamento e dos recursos que se tenham, ou não, para os pagar e recorrer, sendo caso disso, aos tribunais; e lá, como cá, a simples determinação do volume do lucro, que o cidadão comum julga ingenuamente ser a diferença entre proveitos e custos, é toda uma ciência apenas para determinar o lucro tributável  ̶ as despesas e os custos que gente precipitada e comum consideraria despesas e custos são ou não total ou parcialmente considerados segundo regras inteiramente arbitrárias, que têm como denominador comum, entre nós, a preocupação de maximizar a receita do Estado. Regras que vão evoluindo no tempo e que fazem com que se perca um tempo infinito a discutir a taxa do imposto sem se curar do regime, que todavia afecta com frequência a vida das empresas muito mais do que a taxa.

 

Por exemplo, o pagamento de impostos por conta é uma iniquidade: o Fisco presume que a empresa, porque ganhou no passado, está a ganhar no presente; e se afinal não estiver, ou estiver mas sem recursos disponíveis (situação banalíssima, basta haver significativas diferenças entre prazos de pagamento a fornecedores e recebimento de clientes, ou quebra de vendas, ou outro imponderável qualquer) espera que a empresa se endivide junto da banca  ̶  para pagar o que não deve.

 

O regime do IVA, um imposto que a doutrina acha neutro, só seria razoável se a empresa apenas tivesse que entregar a diferença entre o que cobrou a esse título e o que pagou. Mas não: o que o nosso legislador fiscal, um patife cheio de vícios, entende, é que se vendeu deve, quer tenha recebido ou não; e se por acaso o cliente paga IVA no destino, e não ao vendedor, como sucede normalmente nas operações de exportação, a aplicação das regras faz com que, para preços iguais e recebimentos com prazos curtos, seja mais vantajoso vender no mercado interno  ̶  supõe-se que seja destas coisas que os governos se gabam quando se felicitam pelo crescimento das exportações.

 

Saberá o leitor que se o patrão de uma PME for ao aeroporto buscar um estrangeiro e lhe oferecer um almoço todas as despesas inerentes a essa interesseira, e vulgar, deslocação e cortesia, são objecto de uma tributação autónoma, entre 10 e 30%?

 

De minas, armadilhas, alçapões, está o sistema fiscal repleto. E isso faz com que as comparações sejam perigosas. Mesmo assim, talvez a tentação da harmonização fiscal seja grande: a Administração Fiscal portuguesa tem todos os vícios da tradição do nosso funcionalismo (desperdício, burocracite aguda, irracionalidade), todos os das ditaduras (prepotência, inimputabilidade, descaso do indivíduo a benefício do Estado) e todos os das democracias (pilhagem acéfala dos recursos de poucos a benefício imediato da maioria que vota, com isso sapando a acumulação de riqueza e as disponibilidades e interesse no investimento, e logo o crescimento). E portanto a mesma gente voluntariosa que apostou na União Europeia porque pertencendo a um clube de ricos se ficaria, por osmose, igualmente rico, e que apostou no Euro porque se a moeda era forte a economia também fatalmente o seria, tende agora a defender que na União  ̶  o que resta, enfim, depois do Brexit  ̶  paguemos todos os mesmos impostos, decerto por imaginarem que vamos ter o IRC da Irlanda, funcionalismo sueco, repartições da Fazenda desenhadas por italianos, e cheirosas inspectoras do Fisco de ar afrancesado.

 

Nunca seria, é claro, assim: a mesma burocracia europeia que defende a harmonização defende igualmente o aumento de fundos para o Orçamento comunitário, ou seja, defende o aumento dos seus poderes e o aumento de impostos. E a ideia de que qualquer harmonização se traduzirá em benefícios palpáveis é tão ilusória como imaginar, por exemplo, que a supervisão do BCE implicará alguma poupança no Banco de Portugal  ̶ as burocracias não se auto-reformam nem se cerceiam, apenas acrescentam novas camadas.

 

(Ou, já agora, é igualmente ilusório supor que a supervisão europeia será mais lúcida que a doméstica: Vítor Constâncio, demonstradamente inepto, não destoa lá no assento etéreo a que subiu porque os mecanismos normais de selecção de gestores na economia não se aplicam a bancos, e menos ainda a reguladores  ̶ mas isso são outros lavores).

 

Depois, em embarcando pela rasoira da equalização, dos impostos directos rapidamente se passaria aos indirectos. E nesta como em outras matérias nem sequer se pararia para pensar que na federação por antonomásia, isto é, os E.U.A, são enormes as diferenças fiscais entre os estados: se pudesse livremente trocar o meu carro até mesmo nessa agora tão abominada Hungria, no caso de esta ter para o efeito o mesmo regime fiscal do Montana, lá iria eu com gosto estadear em Budapeste.

 

A harmonização não vai acontecer. Não por nós, que aceitamos há muito toda a imposição, toda a exigência, toda a caridade, toda a norma, todo o acerto e toda a patetice, como convém a quem trocou a independência possível de um país pequeno e pobre pela miragem do bem-estar a crédito; e porque, na natureza crua das coisas, a autonomia de uma região ligada à máquina do BCE para não falir não é muito maior do que a de um doente nos cuidados intensivos. Mas porque àqueles nossos pastores que, como Durão Barroso, têm uma pensão milionária garantida até aos 65 anos, não convém acelerar um barco que não pára de meter água.

publicado por José Meireles Graça às 12:38
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Quarta-feira, 3 de Agosto de 2016

Associação dos Humildes com Representação Significativamente de Pacotilha (AHRESP)

Fui ver quantas empresas existem em Portugal (supunha que seriam aí umas 300 mil) e a Pordata diz que são mais de um milhão e cem mil.

 

Ora, desempregados são mais de 600 mil, há à volta de 2 milhões de cidadãos que têm menos de 20 anos, reformados e pensionistas são à volta de três milhões e 700 mil e funcionários públicos serão mais de 600 mil. Admitindo que a quase totalidade dos reformados e pensionistas não trabalha em empresas, e tendo em conta que os funcionários também não, por definição, ficam três efectivos, em média, por empresa, de onde não espanta que 99,9% das empresas sejam micro ou PMEs, cabendo a parte de leão às micro (menos de 10 trabalhadores e menos de 2 milhões de Euros de volume de negócios anual).

 

Estes números incluem os empresários em nome individual, que são mais do dobro do número das sociedades.

 

Empresas em actividade diz este Observatório que existem aí umas 640 mil. E destas as que tiverem um volume de negócios anual superior a 100 mil Euros (ou seja, incluindo nano empresas, uma classificação que é urgente criar para definir aquelas micro que o Fisco trata desesperadamente de estrangular à nascença) têm que ter um software certificado, que corre não, como se esperaria, num livro de deve e haver, mas num hardware caríssimo, que vai fatalmente avariar em devido tempo e ficar obsoleto ao cabo de meia dúzia de anos.

 

E quem certifica os programas informáticos, sem os quais as empresas que os concebem não os podem vender e as cativas que os compram não podem operar? O Fisco, com certeza.

 

Seria de esperar que ao olho arguto do Estado não escapassem os bugs, senão as manhas, dos programas; e que o empresário, que é evidentemente um ladrão, salvo prova em contrário, e mesmo assim nunca fiando, exploraria fatalmente tais falhas, com grandes danos para o erário público, a credibilidade do Grande Irmão e a solidariedade socialista.

 

Mas não: pimba, o CR Mais (a notícia não esclarece se há alguma ligação com Cristiano, mas se não houver a marca é evidentemente abusiva) e o WinPlus (o "Plus" já era fortemente suspeito, por indiciar a hipótese de ser algo mais do que um programa meramente ganhador) tinham um "conjunto de funcionalidades concebidas para permitir ao utilizador a eliminação dos registos de vendas e prestações de serviços”.

 

Vai daí, foram instaurados processos disciplinares aos funcionários que conduziram os processos de certificação, apresentadas desculpas aos empresários por o Estado certificar um produto marado que foram forçados a adquirir, e garantida a substituição gratuita do software por outro que cumpra os requisitos que o Estado, no seu interesse e para prossecução do que entende serem os seus fins, exige?

 

Não, que ideia: As cerca de dez mil entidades que utilizam estes programas têm até 15 de setembro de 2016 para “adotar outros programas informáticos e, quando aplicável, declarar junto da Autoridade Tributária a intenção de regularizar voluntariamente a sua situação tributária em relação às faturas cuja emissão ou comunicação tenha sido omitida”.

 

Os novos programas custarão várias centenas de Euros (milhares, a prazo, com a manutenção e as actualizações), e sobre os respectivos preços incidirá o IVA fatal. Por outras palavras, o Fisco factura as suas asneiras, não se corrige, faz vista grossa à inépcia dos seus funcionários, e acha oportuno vir com ameaças inquisitoriais - acusa-te porque deves bem conhecer os pecados que cometeste.

 

Perante isto, o  diretor-geral da Associação de Hotelaria e Restauração de Portugal (imagina-se que das dez mil empresas a maior parte seja do ramo de comes e bebes), José Manuel Esteves, lamuria-se: "A AHRESP irá sugerir aos seus associados 'que, perante esta situação de contratos assinados com os dois sistemas a quem foram retiradas as licenças, peçam indemnizações pelos prejuízos causados, nem que seja só pela interrupção do serviço'. Para o responsável da associação, “há situações em que é rápido mudando-se apenas de fornecedor”, mas há quem tenha de “mudar todo o hardware das próprias máquinas de faturação".

 

A sério, Zé Manel, é o que tens a dizer? Aconselhas portanto os teus associados a pedirem indemnizações, não ao Estado, que os enganou, abusa deles e os trata abaixo de cão, mas às duas empresas de software, que só por milagre agora não irão à falência, e que portanto nunca esportularão um cêntimo. E nem sequer tens o desabafo, que seria desculpável, de lhes recomendar que, quando tiverem o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais à mesa ou na cama, lhe salguem a comida ou lhe ponham percevejos nos lençóis.

 

És socialista, Zé Manel. Desconfio que a esmagadora maioria dos que te pagam para os representar - não é.

publicado por José Meireles Graça às 16:23
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Domingo, 20 de Dezembro de 2015

Certificados de desaforo

"Incentivar os contribuintes a pedir factura" foi uma das mais tristes iniciativas que o governo anterior tomou, num longo rosário delas em matéria fiscal.

 

A medida foi, à época, denunciada raramente por aquilo que é: um apelo ao baixo instinto policial do cidadão invejoso e controleiro, a consagração do espírito queixinhas e da mentalidade de dependente do Estado, e o reforço da ideia deletéria que todo o comportamento deve ser vigiado, sendo a função de polícia um dever que incumbe não apenas a categorias especiais de funcionários mas também aos contribuintes.

 

Este passo foi acompanhado por um crescimento demencial do controle electrónico da vida dos cidadãos, disponibilizando à Administração informações que a seu tempo, e sempre à boleia das mais sonoras boas intenções, serão utilizadas para abusos, prepotências e policiamentos - hoje do evasor fiscal, amanhã do desalinhado que não pensa nem faz o que o Estado do dia (quer dizer, quem o controla, porque o Estado não somos nós todos, é apenas quem decide em nome dele) acha bom para a comunidade.

 

Pode-se elaborar interminavelmente em torno deste assunto. Mas não adianta: as sociedades totalitárias encontram sempre quem as sirva e costumam nascer trombeteando intenções generosas, no seu dealbar gozando do apoio das populações; e já o amor da Liberdade, que por definição não inclui à esquerda a liberdade económica, costuma ser escasso em toda a parte. Que quem pariu este monstro corruptor e putrefacto fosse do partido dos contribuintes, que é por acaso o meu, também não é particular surpresa: estatistas não são raros à direita; e burros teimosos também.

 

Previsivelmente, num tempo em que o costismo tudo reverte e desfaz, a corrupção das consciências e dos comportamentos mantém-se. Mas o Audi, o Audi não - agora são certificados de aforro. Faz sentido: a merda do carro não agradaria a toda a gente, desde logo porque faz lembrar excessivamente a condição de rico, um estado de pecado. Já o aforro, se for no Estado, é uma coisa virtuosa, porque lhe dá meios para comprar votos com benesses e investir em elefantes brancos. E depois é sempre possível, quando convier, alterar unilateralmente o prazo de reembolso e a taxa de juro.

 

Isto se não der mais jeito ainda  inventar um truque qualquer para o sorteio não funcionar. É Costa que manda, lembremos, e o homem é especialista na área de minas e alçapões.

 

E depois a moeda de troca de o Estado nos fiscalizar a todos é que ninguém o fiscaliza a ele. Não faço a demonstração: quem dela precisar não está em condições de a entender.

publicado por José Meireles Graça às 16:23
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Quinta-feira, 2 de Abril de 2015

Sem freio nos dentes

Procurei no site da Comissão Nacional de Protecção de Dados mas não encontrei o Relatório de que toda a gente fala. Também só procurei por descargo de consciência - serviços públicos com sites que sirvam para mais alguma coisa do que para os dirigentes poderem falar com orgulho das novas tecnologias, da economia do conhecimento, da agilização de processos e da transparência da administração são mais difíceis de encontrar do que petróleo de xisto no Terreiro do Paço. Posteriormente, tropecei neste post e lá encontrei o link - há quem saiba  procurar melhor do que eu, benza-a Deus, mas não me venham cá dizer que era fácil.

 

A comunicação social, como de costume, não ajuda: os jornalistas chamam notícias às suas opiniões, que para o efeito travestem. E neste particular a opinião dominante, que a CNPD aparentemente subscreve, é que isto de certas pessoas, por ocuparem certos cargos, poderem ter uma protecção diferente, no que toca à confidencialidade dos dados sobre as suas situações fiscais, é um ilícito: "Não se compreende a adopção de um sistema exclusivo para controlo dos acessos a um grupo específico de contribuintes. Tal acção é geradora de discriminação ao nível das garantias oferecidas, sem que seja em si mesma impeditiva de eventuais acessos abusivos".

 

Ou seja, o que a CNPD sobretudo censura não é o abuso em que descaradamente e há muito tempo vive a Administração Fiscal, quando todo o cão e gato que conheça o paquete da repartição local da Fazenda, ou de uma empresa que para ela trabalhe, pode ter acesso aos dados do vizinho, cujo carro novo inveja; mas sim o facto de estar a ser rodado um sistema que põe ao abrigo desta curiosidade malsã certos políticos. Como se o riscos de estes verem os seus dados pessoais expostos na comunicação social fossem iguais aos do eleitor comum, e este tivesse o direito de os conhecer.

 

Esta confusão não é inocente; e traduz o desejo de que a real inexistência de sigilo fiscal, que é o regime em que vivemos, perdure, ou, se possível, tenha consagração legal, que é a intenção inconfessada de todo o ressentido e invejoso, todo o português que tem a mania que é nórdico, e todo o cidadão que, no café e na tasca, declara com o olho incendiado: Se alguém tem alguma coisa a esconder é porque não é sério! - a clássica desculpa de todos os estatistas, moralistas, bufos, e totalitários sortidos.

 

Mas o Governo merece este escarcéu. Porque, logo que descobriu (acredito, chamem-me ingénuo, que não sabia o que um director-geral andava a fazer) a existência da lista VIP deveria ter dito: não fazíamos ideia, mas a iniciativa é excelente, pelo que vamos acelerá-la, testar e, se os resultados forem positivos, tornar o sistema extensivo à generalidade dos contribuintes; e, desde já, louvamos aquele excelente funcionário -  precisamos de colaboradores que melhorem o desempenho da administração, ao serviço, no caso, de valores constitucionalmente protegidos.

 

Como se sabe, não fez nada disto. E, pelo contrário, adoptou uma ingénua toada defensiva, como se alguma vez demonstrar medo fosse uma maneira de acalmar um cão que arreganha os dentes. O cão, agora, agarrou a canela - e não larga, até conseguir abocanhar outro bocado suculento.

 

De hoje a oito dias haverá, espera-se, outra merda qualquer para incendiar os ânimos do país que se esganiça em declarações; os desaires da Selecção Nacional, as eructações do senhor Presidente do Sporting, ou outro notável da bola, e os vícios do sistema, que é assim que a corrupção no desporto é designada pelos que dela de momento não estão a beneficiar, continuarão a ocupar os corações clubistas, que são os de quase toda a gente lusa; e a lista VIP irá, com o relatório da CNPD, para a longa lista esquecida dos casos do dia da guerrilha partidária.

 

É pena. Porque ficará por discutir se o combate à evasão fiscal, bandeira deste e de todos os governos anteriores, vale a pena se feito com atropelo de direitos de cidadania; se a igualdade dos cidadãos perante a lei é a mesma coisa que igualdade na impotência deles perante os abusos da Administração; se a condição de político deve implicar mais ou menos direitos do que a de privatus, e, em ambos os casos, porquê e como se casa o direito à privacidade dos eleitos com o direito ao escrutínio dos eleitores.

 

Poderíamos talvez chegar à conclusão de que o melhor seria mesmo os candidatos a certos lugares, a começar pelos deputados, deverem abdicar por completo de qualquer sigilo fiscal; ou até, como decerto deseja o PCP e um ou outro alucinado que sonha com a social-democracia nórdica, essa abdicação ser obrigatória para todos os cidadãos.

 

Em qualquer caso, cada um saberia com o que contar. Actualmente o que toda a gente sabe é que o sigilo fiscal existe, e os direitos dos contribuintes também - na Lei geral, que as leis avulsas e o espírito inquisitorial da Fazenda anulam.

 

Na prática, o que existe é o abuso de quem pode - e o Estado pode quase sempre mais - e o esmagamento de quem não pode. Mas um sistema sem freios, e onde se acha bem que cada cidadão aja como fiscal da Fazenda, sob a promessa abjecta de receber, por sorteio, um Audi, acaba por, contraditoriamente, os tomar nos dentes.

 

Foi o que aconteceu. E é, de certo modo, justo.

publicado por José Meireles Graça às 11:48
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Sábado, 7 de Março de 2015

Comissão fabriqueira da Igreja da UE

Elisa Ferreira, Marisa Matias, Ana Gomes fazem um trio absolutamente temível - postas a integrar um "grupo de trabalho", ou "comissão especial", ou lá o que é, sobre práticas fiscais, o asneirol é garantido.

 

Podia estar lá uma tipa, ou um tipo, sensatos, para terem mão nelas. Mas não, o outro Português neste grupo airado é um comunista, Miguel Viegas de sua graça. Onde as duas disserem mata, e Ana Gomes gritar qualquer coisa, ele dirá esfola.

 

A tal comissão tem 45 elementos, que se reúnem já na próxima 2ª feira para "aprovar a agenda e calendarizar os próximos passos a tomar".

 

Este colégio de parasitas talvez pudesse, num mundo alternativo, produzir alguma coisa de útil, por exemplo inquirir sobre se haverá alguma relação entre a fiscalidade opressiva que a Europa tem, no seu conjunto, e o facto de ser um continente que cresce menos do que os outros; e daí recomendar medidas para o reforço da competitividade fiscal entre países, como casar isso com estados sociais cujas necessidades lesam gravemente a performance das economias, de que forma promover a natalidade, como facilitar a imigração sem criar guetos nem importar corpos sociais inassimiláveis, e um longo etc.

 

Nada disso. O objectivo, comunica solenemente Elisa, não é “fazer uma caça às bruxas [está a falar do caso swiss leaks], mas pressionar os Governos europeus a acabar com um dumping fiscal inaceitável entre países que partilham o mesmo mercado e a mesma moeda.”

 

Traduzindo: o objectivo é acabar com a taxa, escandalosa, de IRC na Irlanda; nivelar as taxas de impostos, por cima, de forma a que as empresas e os indivíduos que não queiram levar caneladas se sujeitem, mudando de país, a pontapés; retirar mais poderes aos governos e parlamentos, e dá-los a Estrasburgo, Bruxelas e quanto apparatchik e político supra-numerário anda por essas cidades abençoadas; e garantir que a Europa terá duas velocidades - uma para a zona Euro e outra para a zona menos oprimida da União das Repúblicas Socialistas Europeias - mas se manterá como um orgulhoso farol enquanto o resto do mundo adopta o GPS.

 

Resta a esperança de que as borras das centenas de litros de café, e dos milhares de páginas de europês, que o grupo consumirá, tenham o mesmo destino que o tratado de Maastricht, o de Lisboa, e as proclamações e discursos dos responsáveis pretéritos e actuais: a reciclagem.

publicado por José Meireles Graça às 14:25
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