Exmo. Senhor Presidente do Instituto de Mobilidade e dos Transportes:
O signatário, José xxxxx xxxxxxxx xx Meireles Graça, portador do cartão de cidadão nº xxxxxxxx e residente na xxxxxxxx xx xxxx, nº xxx, xxxx-xxx Guimarães, vem expor e requerer a V. Exª o seguinte:
No dia 28 de Novembro último foi objecto do auto de contraordenação xxxxxxxx, EA xxxxxxxxxx, cuja cópia anexa, porquanto se alega que o veículo de sua propriedade, e que conduzia, teria instaladas nos vidros, além das películas constantes no certificado de matrícula, sem coloração, outras películas de cor escura.
Semelhante alegação é falsa por três razões: não só os vidros nunca tiveram películas sem coloração (que estariam lá a fazer?) como as películas instaladas não eram de cor escura (se fossem realmente não se poderia ver para o interior, o que não era o caso) como o concessionário da marca informa que as películas coloridas estão homologadas. O signatário não sabe, nem lhe é exigível que saiba, interpretar os algarismos e letras gravados nos vidros, o que significam exactamente as observações que a este propósito constam presumivelmente no documento único automóvel (aliás apreendido) nem apurar se este último documento está ou não conforme com as homologações de que o veículo tenha sido objecto.
Na altura, significou ao agente da GNR que o autuou, xxxxx xxxxx, a sua perplexidade por um veículo recentemente inspecionado ter sido dado apto para circular pelo organismo que faz inspecções periódicas obrigatórias; que a falta do selo que atesta aquela inspecção, e que ele diligentemente tinha apurado se estava colado no para-brisas – estava - implica uma coima de 250 euros; e que não se compreendia que um serviço concessionado pelo Estado certificasse, sob ameaça de multa, algo que outro serviço, aplicando multa, nega.
Mas não ficou por aqui a desastrada intervenção do agente, porquanto na mesma ocasião lavrou um auto de apreensão de veículo, e uma guia de substituição de documentos, esta válida por vinte e quatro horas, cujas cópias também se anexam.
Estamos já no domínio da prepotência e do abuso de autoridade, porquanto deveria ser óbvio que a existência de uma leve coloração dos vidros de modo nenhum constitui perigo para a circulação automóvel, senão nunca seria homologável – e é. E deveria ser evidente que a correcção da falha lesiva da segurança deveria ser, se a falha não fosse imaginária, a prioridade, e não a sôfrega aplicação de multas e interditos, sendo que a correcção não era compaginável com as meras 24 horas fixadas.
Apesar disto, o signatário promoveu no mesmo dia a remoção das películas em questão, trabalho descrito na nota de serviço de oficina em anexo. Para o fazer dentro daquele apertado prazo teve aliás que recorrer à sua influência pessoal, visto que as oficinas não costumam estar disponíveis para, de imediato, satisfazer exigências inopinadas.
No dia seguinte promoveu diligências para apurar junto da delegação desse Instituto em Braga a forma como desenlaçar o imbróglio.
A primeira reacção foi que o documento apreendido, e cópias dos autos, só chegariam na terça-feira seguinte, e que portanto até lá não estariam em condições de prestar quaisquer esclarecimentos.
Seguiram-se algumas trocas de informações que desembocaram na extraordinária notificação recebida em 7 do corrente mês, cuja cópia se anexa, para no dia 20, pelas 9H00, o veículo ser submetido a inspecção em Braga, numa localidade denominada “Celeirós”, sem indicação de rua nem número de porta (o funcionário que a subscreve suporá porventura que é da obrigação de todos os habitantes do distrito saber onde fica um “CIMA”) e na informação de que deverá ainda pagar aquele “serviço” e os custos de emissão de nova documentação.
A multa de 250 euros foi paga no mesmo dia 7, não por achar que fosse devida mas por ter concluído que a reclamação implicaria o risco de ver o automóvel apreendido não apenas quase um mês, como será o caso, mas possivelmente muito mais tempo, que seria o de recorrer aos tribunais e obter satisfação.
Crê que este assunto merece aprofundamento, além do mais para evitar que agentes da autoridade desprestigiem o Estado por adoptarem, por ignorância ou instruções deficientes, comportamentos lesivos dos direitos do cidadão.
Razões por que requer:
A restituição do montante indevidamente pago, e a anulação do que ainda lhe virá presumivelmente a ser exigido para a inútil, e abusiva, inspeccão, e para a desnecessária emissão de novo documento de circulação;
Proposta razoável de um valor justo de indemnização pelas despesas incorridas, perdas de tempo de trabalho, imobilização abusiva do veículo e danos morais;
Informação sobre as diligências feitas ou a fazer junto dos agentes da autoridade que tão mal a exercem, para prevenir o risco de outros abusos junto de condutores;
Informação sobre as diligências feitas ou a fazer junto da vossa delegação em Braga para a sensibilizar, porventura, para o facto de que o papel dos funcionários públicos não consiste em utilizar interpretações capciosas da lei e dos factos para agravar prepotências, nem dar cobertura corporativa a desmandos, juntando o ridículo ao abuso.
Informação sobre as diligências feitas ou a fazer junto da entidade que efectuou a última inspecção periódica, no caso de os serviços teimarem, e demonstrarem, que o veículo não estava em condições de circulação, sobre as razões pelas quais não detectou a alegada falha.
Está o signatário certo de que V. Exª convirá em que, de longe em longe, é salutar lembrar aos agentes de autoridade, e aos outros funcionários, que o poder que o Estado lhes confere é para servir os cidadãos e não para lhes infernizar a vida em nome da angariação de receitas e da satisfação das suas rotinas cegas de imposição arbitrária de conformismos.
Esclarece finalmente que esta exposição é também dirigida às entidades abaixo mencionadas e que dela fará uso público quando entender apropriado, não pela relevância do seu caso, que é diminuta, mas porque acredita ser crescentemente numeroso o grupo dos que, sob um pretexto ou outro, são vítimas dos pequenos incidentes com que se constrói um Estado arrogante e, com perdão do exagero, totalitário.
CC: Comando-Geral da GNR; ministério da Administração Interna; ministério do Planeamento e das Infraestruturas; Provedor de Justiça.
Pois é, apreenderam-me o carro. E está ali, na garagem, sereno e grave, como convém a quem aguarda pacientemente regressar ao serviço do dono e esquecer o convívio do Estado pulha.
Talvez pudesse ter sido ontem, mas não, não houve notícias.
Porém o dono teve, na sexta-feira passada, uma ideia luminosa: que tal mandar pôr em ordem de marcha o carro anterior, que nunca chegou a vender?
Meu dito meu feito. E na verdade com uma bateria nova, umas abraçadeiras e substituição de um tubo de gasolina, o velho Audi, pimpão no seu quase meio milhão de quilómetros, estava ontem ali para as curvas – é o caso de dizer.
Haveria que fazer o seguro e a inspecção periódica – desta provação estava o pobre automóvel livre há mais de dois anos.
Portanto, telefonema para o corrector, para reavivar a antiga apólice, entretanto cancelada. E resposta compungida: Senhor Fulano, tudo bem mas tem que fazer a inspecção antes do seguro, sem inspecção o seguro não pode fazer-se.
Hãa? E como levo o carro à inspecção – sem seguro?
Ora bem, talvez arranjando alguém que tenha um seguro de carta, diz o corrector.
Feito, já arranjei, para ontem, pagando, que isto ninguém trabalha de graça. Foi pena não ter havido aprovação, por falta daquele colete com que as pessoas se disfarçam de bombeiros, em caso de avaria ou acidente. Os malditos coletes estão no carro apreendido.
Estou aqui a pensar que o Estado Socialista talvez ainda tenha conserto – à bomba.
Se eu fosse uma personagem de banda desenhada o autor desenhava-me com ar de guarda-livros, de óculos, careca, um pouco sobre o gordo e de meia-idade.
Se a acção se iniciasse de manhã com a personagem, chamemos-lhe Segismundo, a sair de casa, aparecia com os olhos inchados e meio fechados, em particular o esquerdo; e sobre a cabeça uma nuvem escurenta pairava, cheia de raios e coriscos.
Segismundo guiava, sem pôr o cinto de segurança, até à bomba de gasolina distante aí uns 500 metros, parava à porta da casinha, por onde irrompia resmungando um bom dia! pouco convincente, para ouvir a funcionária dizer, como diz sempre: Bom dia sr. Segismundo. Dois e um?
Isto é um código, e destina-se a confirmar um laço de cumplicidade criativo de uma barreira contra outros clientes que porventura estejam no estabelecimento, carentes do privilégio de a empregada saber antecipadamente o que querem, no caso dois maços de tabaco e um café.
Na televisão, ligada todo o santo dia demasiado alto, Gouxa àquela hora grasnava e Cristina não-sei-quê gania; e Segismundo sabia de ciência certa que no outro café, na vilória de destino, onde dentro de meia hora emalaria mais três cafés de enfiada, veria ao cabo deles as mesmas duas personagens numa televisão igual, mas com olhos de respeito por quem tanto trabalha, espanto pelo novo fato de Manuel Luís, que o muda todos os dias, distraída admiração pelas coxas de Cristina, que graças a Deus as conserva sempre iguais, e compreensão pelos milhares de donas-de-casa a quem aqueles chilreios inanes aliviam a maçada das tarefas matutinas.
O dia de anteontem foi porém diferente para Segismundo. Porque na rotunda 200 metros acima estavam dois cobradores de impostos na versão guardas nacionais republicanos, e um deles mandou-o encostar, evidenciando alguma suspeita excitação. Segismundo preparou a carta de condução e o cartão de cidadão e abriu o porta-luvas e o vidro para ouvir um simpático jovem dizer, ao mesmo tempo que pegava nos documentos já disponíveis: Bom dia sr. condutor, posso ver os documentos da viatura?
Aberta a pasta onde se encontravam, quis apenas o documento único, que era aliás o primeiro. E com ele foi conferir os selos que estão no para-brisas, após o que regressou para dizer com bons modos e usando o sobrenome de Segismundo, ao contrário do que os seus colegas costumam fazer, que havia um problema.
Havia, ai. E após demorado exame dos vidros e dos números que lá se encontram gravados, Segismundo foi confrontado com a informação de que aqueles estavam recobertos por uma película escurecedora que não estava homologada, coisa que aliás o senhor condutor podia confirmar na viatura da GNR onde um ominoso PC atestava com uma série de números incompreensíveis que, de facto, aquela alteração não constava da ficha de não sei quê. Razão pela qual era devida uma multa de 250 euros.
Segismundo não conta nas suas numerosas qualidades a de um excessivo respeito pelas cominações das autoridades. E mansamente inteirou o agente da sua perplexidade: se as coisas eram assim, como se compreendia que ainda há poucas semanas a inspecção periódica obrigatória tivesse, a troco de uns modestos trinta e poucos euros, certificado o mais completo respeito do veículo pela legislação aplicável? Tanto mais que a própria GNR, na falta do selozinho que certificava aquela conformidade, aplicava uma multa de 250 euros? Não não, Segismundo não pagava, ia reclamar.
O agente declarou com desgosto que realmente aquelas entidades que fazem a inspecção deixavam a desejar, parecendo ignorar a legislação; e que ele, agente, discordava que fossem entidades privadas com aquela missão porque não tinham interesse em afugentar o inspecionado que, se incomodado, da próxima ia a outro centro. Isto não obstante, informou melancolicamente, também lhe parecer que, se fossem públicas, se calhar o resultado não seria muito melhor.
A Segismundo neste ponto começou a parecer que o agente, com o qual já estava favoravelmente impressionado, destoava bastante do ordinário dos seus colegas, que tendem a lembrar por demais a digna enxada que nunca deveriam ter largado. E por isso lançou-se numa amena troca de impressões, com o fito de apurar até onde ia a lucidez do moço.
Não ia muito longe: confrontado com a informação de que, em países como os Estados Unidos, os vidros fumados eram usados frequentemente e muito mais escurecidos sem que isso fosse considerado uma grave quebra de segurança, retorquiu que os polícias americanos tinham muito mais poder, num salto de raciocínio lógico que não pôde acompanhar. E como o senhor condutor tinha a declarada intenção de não pagar mas discutir, informou o diligente militar, teria que apreender a viatura.
Seguiu-se a emissão do auto de contraordenação, do auto de apreensão do veículo e da guia de substituição de documentos, esta válida por 24 horas.
Segismundo, com a manhã quase esgotada com estas actividades, foi trabalhar como de costume; e, a seguir ao almoço, levou o automóvel ao concessionário para efeitos de remover as películas em questão.
Foi um trabalhão, e o solícito mecânico informou prescientemente que o veículo iria ficar a cheirar a diluente, por causa da remoção da cola. Ficou. E quando o cheiro desaparecesse haveria ainda que desmontar o vidro de trás, visto que o serviço não tinha ficado perfeito por causa da resistência eléctrica – fumado já o vidro não estava mas tinha uns teimosos restos de cola.
A operação custou a ninharia de 102,09 euros.
Restava portanto ir levantar os apreendidos documentos a Braga, ao IMTT, se aquele prestigiado departamento os entregasse sem o pagamento da multa, pormenor sobre o qual os extensos textos das notificações, redigidos em legalês de funcionário, deixavam pairar uma dúvida angustiante.
Entretanto o concessionário em pessoa, inteirado destes sucessos, achou toda a história obscura. E, inquiridos os serviços por causa da falha que de algum modo lhes era imputável, veio o esclarecimento de que não apenas os vidros em questão estavam perfeitamente legais como inclusive dispunham do respectivo certificado de homologação.
Como porém a viatura já não pudesse circular, sendo Segismundo fiel depositário e guardando-a em nome do Estado na sua residência, pessoa amiga prontificou-se a inquirir junto do organismo como proceder.
Bem, uma coisa ficou certa, e essa é a de que os documentos lá não estão, só talvez para a próxima terça-feira.
Neste ponto da história o autor não sabe bem que saída haverá de dar à embrulhada em que Segismundo se meteu e requer o concurso dos leitores pacientes. Pergunta-se:
Deve Segismundo pagar a multa?
Se sim, e se mesmo assim reclamar, pode ter alguma esperança de recuperar o que pagou?
Se o concessionário tiver, como parece, razão, a remoção das películas tornou o veículo desconforme com a homologação. Não implica isso que um outro zeloso agente autue e apreenda por os vidros terem ficado brancos?
Nestes dias em que Segismundo usa um veículo emprestado, quem o indemniza pelo favor que fica a dever e pelo transtorno de se deslocar num desportivo que lhe dá cabo das costas? E quem o vai ressarcir das despesas na oficina, das perdas de tempo e dos transtornos escusados?
Deve Segismundo, que tem o vício de escrever, fazer doravante textos acerbos sobre o estado a que o Estado chegou no seu afã de angariar receitas de qualquer maneira por processos desonestos e abusivos que o desprestigiam, apoucam os agentes da autoridade que têm que agir como esbirros de uma quadrilha de ladrões, e degradam a cidadania?
Estas as dúvidas excruciantes do autor.
O inquérito tem como objetivo “estimar o número de residentes e de não residentes que atravessam as principais fronteiras nacionais, conhecer o perfil dos viajantes e suas deslocações, bem como obter uma estrutura de repartição de gastos turísticos internacionais por principais rubricas de despesa”.
Das duas, uma: ou se criam filas intermináveis nas fronteiras ou perto delas enquanto o "entrevistador credenciado pelo INE" incomoda os viajantes com as suas perguntas abusivas ou então a amostragem pouco vale.
Mas o caso nem sequer é o de mais uma "estatística" para encher chouriços, justificar o lugar de quem se ocupa com inutilidades e fundamentar uma catadupa de "medidas" políticas para promover isto e aquilo: deveria ser óbvio que a GNR mandar parar condutores e retê-los enquanto são submetidos a um interrogatório para saber coisas tão indiscretas como "o dinheiro gasto no destino" e a "escolaridade dos passageiros" é, pura e simplesmente, um abuso.
E que um funcionário do INE venha dizer, com a lata inconsciente dos burocratas inimputáveis e com o português deficiente típico da espécie, que se trata de uma “operação estatística oficial desenvolvida de acordo com a lei do sistema estatístico nacional, sendo obrigatória a sua resposta“, e o jornalista nem se incomode a identificá-lo, para execração pública, mostra bem o que é que a nossa comunicação social acha do direito à livre circulação e à reserva da vida privada, e sobre o papel das polícias.
Que não cabe nas funções da GNR coagir cidadãos a prestarem declarações fora do âmbito de processos criminais ou da realização dos fins de fiscalização do cumprimento de normas legais, ou de segurança e protecção de pessoas e bens, não carece de demonstração. E por isso o graduado que anuiu à requisição e que instruiu os seus homens para a cumprirem não entende a sua função nem os seus deveres: a ordens ilegais, se o seu cumprimento puder dar origem à prática de crimes, não é devida obediência. E mandar parar pessoas para as submeter a interrogatórios grotescos para defesa de um vago, e abstracto, interesse público, é, claramente, um abuso de poder.
Resta a lei que o patarata funcionário invocou. Fui ver, mesmo que seja desde logo evidente que, ainda que fosse obrigatória a resposta às perguntas, nunca o poderia ser no âmbito de uma paragem obrigatória: estar imobilizado numa estrada, por ordem da polícia (portanto sob ameaça de desobediência no caso de o cidadão decidir, por não querer responder às perguntas, abandonar o local) é o equivalente a uma detenção; e as sanções previstas para a falta de resposta são coimas, apenas coimas - não têm a gravidade do crime de desobediência. Isto para além do facto, cuja razoabilidade é evidente, de que para responder a inquéritos há prazos, e estes não podem ser agora, já, porque sim.
A Lei (nº 22/2008, de 13 de Maio) é escandalosa, por atribuir ao INE extensíssimos, e desnecessários, poderes - os nossos deputados e os nossos governantes esgotam-se, nas datas comemorativas apropriadas, em tropos arrebatados dando loas à Liberdade, que todavia atiram tradicionalmente às malvas sempre que a Administração lhes põe debaixo do nariz diplomas que lhe reforçam os poderes, encolhendo os dos cidadãos. A Lei, portanto, é prolixa quanto aos direitos da Administração, e exaustiva quanto à organização do Sistema Estatístico Nacional (que inclui aliás também o Banco de Portugal, além de outras entidades menores), mas, mesmo assim, diz no número 3 do artº 4º:
Exceptuam-se do disposto no nº 1 os dados objecto de classificação de segurança, de segredo de Estado, de segredo de justiça, dados conservados nos centros de dados dos serviços do Sistema de Informações da República Portuguesa, dados genéticos ou dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada (sublinhado meu) e origem étnica e dados pessoais relativos à saúde e à vida sexual.
Há coisa mais privada do que ir ou regressar de férias em paz, sem que Administração Pública, na sua encarnação com botas de cano alto e metralhadora, nos meta a hedionda cabeça cheia de caspa no vidro da frente para saber de onde vimos, para onde vamos, quanto gastamos, que habilitações literárias têm exactamente os passageiros, e mais quanta pergunta indiscreta um inútil sentado num gabinete em Lisboa com ar condicionado congeminou para nos lixar a existência, e justificar a dele?
As mulheres, hoje, quase nunca sabem cozinhar, digo-o como quem enuncia um facto, não como quem quereria que o tempo voltasse para trás, senão nem precisava de sair do meu grupo de amigas para ter que pôr caneleiras e capacete.
A razão é simples: a Grande Guerra provou que, no mundo do trabalho, elas, que ficaram a substituir a carne para canhão que foi para as trincheiras, se desenrascavam igualmente bem, o que a II Guerra confirmou. E faltava assim apenas a pílula, que as libertou de um rancho de filhos, para, no início da década de 60, estarem reunidas as condições para darem um pontapé na dependência económica dos maridos, na escravatura das tarefas domésticas e na sociedade patriarcal.
Houve as sufragettes, a luta pelo voto, outras coisas muitas ainda, hoje há quem queira discriminações positivas a favor da igualdade entre os sexos no que toca a salários e postos de trabalho (uma reivindicação tola porque assenta no pressuposto de que os patrões são idiotas que, podendo contratar mulheres baratas, preferem contratar homens caros), no que toca a lugares no aparelho político, no comando das empresas, nos outros lugares de chefia, na educação das crianças e em todas as situações e estatutos em que estejam, ou pareçam estar, sub-representadas, condicionadas na sua liberdade ou menoscabadas nos seus direitos.
É natural que o pêndulo da história, que tanto tempo esteve inclinado para um lado, se incline agora para o outro, e não será decerto nos meus dias que se encontrará um ponto de equilíbrio; e, de resto, os exageros reivindicativos a que se assiste pela malta das causas, predominantemente de esquerda, soam com frequência ridículos, quer por confundirem igualdade de direitos com negação de diferenças (que, graças à divina Providência ou às leis da Biologia, existem), quer por, na maior parte do mundo, e desde logo nas sociedades muçulmanas, nem sequer a igualdade dos direitos dos dois sexos perante a Lei estar assegurada.
Mas adiante, que este post não é sobre o movimento de libertação das mulheres, nem sobre sexismo, nem sobre o uso ou não de soutiens e outras matérias controversas e apaixonantes.
Do que eu quero falar é de bacalhau.
Dantes, cada região tinha a sua tradição culinária, e o depositário principal dessa tradição era a dona de casa, que passava o segredo da confecção às filhas, que o perpetuavam. Os homens da casa serviam de provadores, confirmando, pela voracidade do apetite, o apuro do prato, ou pelo desabafo irritado - este bacalhau está uma pilha! - a dificuldade da demolha. Com senhoras da alta, de fino trato, e que por isso não faziam a ponta de um corno, a tradição passava pela cozinheira, mulher do povo, e o resultado era igual - alguém aprendia.
A tradição caseira está moribunda, e a única possibilidade de sobreviver passou para o restaurante. E lá poderá talvez, se as crianças aprenderem a gostar (a parte principal do gosto, e a mais duradoura, fixa-se nos verdes anos), perdurar se a cozinha de autor, a internacional, a estrangeira, a fast e a do empreendedor que quer enriquecer com uma cadeia de lixo alimentar moderno não a sufocar.
Isso é uma das condições, e das incógnitas. Mas há outra, que é a da qualidade do bicho propriamente dito. Fosse eu adepto da intervenção do Estado e recomendaria a preservação das formas tradicionais da preparação, antes da comercialização, através de gorda despesa pública, como se faz com o lince da serra da Malcata, neste caso propinando subsídios através de um qualquer Instituto para a Preservação da Seca do Gadídeo.
Mas não sou. E nisto como noutras coisas ao Estado peço que não estrague, que já faz muito.
É por isso que não se pode ler esta notícia sem indignação: O pescado em causa encontrava-se exposto ao meio ambiente, sobre passadeiras de redes para seca, não cumprindo assim, os requisitos legais de armazenamento e transformação, conforme estipulado em regulamento próprio.
Ó deuses, já não nos bastava essa organização terrorista que dá pelo nome de ASAE, agora a GNR compete no ramo do fascismo higiénico? Há um regulamento próprio para a seca do bacalhau, é? E o crime consistia em "estar exposto ao meio ambiente"?
VV. Ex.ªs puseram este escarro na tradição, no senso e no gosto na vossa página na Internet, sob a epígrafe "UMA FORÇA HUMANA, PRÓXIMA E DE CONFIANÇA".
Humana sê-lo-á, na medida em que a estupidez o é; próxima também, porque, por causa do trânsito automóvel, está por toda a parte; agora, de confiança? Da confiança dos louros legisladores que, em Bruxelas, vão sufocando toda a diferença, sem dúvida; da legião de cobardes, indiferentes, oportunistas, ignorantes e inconscientes que transpõem acriticamente a legislação, também; mas, dos apreciadores de bacalhau - não.
Como é geralmente sabido, os crimes violentos têm vindo a diminuir consistentemente, e a criminalidade mais banalzinha está em vias de se extinguir. Ainda se fazem assaltos, mas trata-se no geral de uns moços com acne, oriundos de famílias desestruturadas, e que se deixam facilmente intimidar pelas potenciais vítimas.
A continuarmos assim, não virá longe o dia em que se poderá estacionar numa qualquer avenida, deixar uma bolsa à vista e as portas destrancadas, havendo fortes probabilidades de, no regresso, encontrar tudo imaculado.
As polícias, todavia, nem por isso têm menos que fazer. É que a criminalidade reveste novas formas, não menos daninhas para o bem comum, que andavam um pouco ignoradas, mas vão agora sofrer o peso da lei e a mão vigorosa e justiceira da GNR.
O melro é uma espécie protegida, justificadamente: há uma população estimada em pouco mais de cinco milhões (número obtido por palpite, com uma margem de erro não superior a xis por cento), dos quais cerca de trinta no meu quintal. Pois, apesar destes números francamente exíguos, há quem, com grande insensibilidade, aprisione, sem culpa formada, a simpática ave - apenas um exemplar, graças a Deus.
A notícia não é inteiramente clara, pelo que não ficou assente se o criminoso fazia parte do grupo dos detidos. Mas se não fez trata-se de uma lamentável omissão, que aprisionar um melro numa gaiola ou não "ter licença para comercialização de espécies não-indígenas" são ofensas cuja gravidade seria ocioso realçar.
"O SEPNA e o ICNF estiveram no local entre as 06:00 e as 12:00, tendo sido mobilizados um oficial, quatro sargentos, 30 guardas da parte da GNR e cinco elementos do instituto". A representação do Instituto - apenas cinco pessoas - é a única nota menos boa, dado que o número de funcionários não ultrapassa o de detidos.
Os seis criminosos vão ser presentes a juízo, e aqui é justo assinalar uma outra, ainda que colateral, vantagem da operação: o Juiz, que deve ter sobras de tempo, poderá exercitar o seu múnus; e os oficiais de diligências, entediados pela falta de processos, poderão aproveitar para se dedicarem com afinco a elaborar os autos, os termos e restantes peças processuais, que desta feita têm um significado histórico, como se depreende das palavras do tenente-coronel-ornitologista Francisco Magalhães, que prestou a propósito declarações à comunicação social: "É a primeira vez que tais detenções ocorrem desde que a lei n.º 56/2011 foi modificada porque antes [a detenção e comercialização de espécies protegidas] era considerada contraordenação e agora é crime, prevendo sem margem para dúvidas a detenção".
Está de parabéns a GNR, que assim defende a comunidade de comportamentos aviltantes de cidadãos transviados; o legislador, que passou a cominar penas de prisão para os inimigos dos passarinhos e criou condições para o sistema de justiça melhorar a celeridade dos processos; e nós, que vemos com deleite o dinheiro público a ser investido nesta salutar repressão.
Por estes dias não tenho escrito nada, o que terá penalizado sobremaneira os meus leitores. Ainda que estes, num cuidado que me sensibiliza, se tenham em geral abstido de manifestar a sua carência, por certo no intuito de não me perturbar nos meus afazeres.
E afazeres tenho tido, com resultados magros perante o esforço, mas ainda assim bem reais: por exemplo, conquistei um cliente novo, na Bélgica, um homem que adquire equipamentos para aluguer e vai - espero - passar a alugar também dos meus.
E, para começo de conversa, comprou 36 vitrinas frigoríficas, das quais as primeiras 12, em dois tons de cinza do melhor gosto, lindas, saíram ontem, ao romper da alba, aconchegadas num TIR e numas gaiolas de madeira - a embalagem standard.
Mas as PMEs põem e o Estado dispõe: o viajante de há 200 anos tinha, ao atravessar desfiladeiros e montanhas, que se defender dos ladrões, armados de canhambulos; e o actual tem que se defender das brigadas da GNR, armadas de grossos tomos do Diário da República.
E paf, conforme melhor se vê pelo auto acima as tais gaiolas seriam de pinho, e pinho não pode ser, por causa, suponho, do nemátode. Isto é curioso: que Portugal importa uma quantidade prodigiosa de merda, que chega ao mercado sem abalos de maior; mas as autoridades preocupam-se com o que exportamos, não vá os destinatários, por burrice, correrem o risco de se lhes impingir pragas.
Sucede porém, ó agentes ceguetas da GNR, que não era pinho - a empresa não adquire pinho, apenas choupo e eucalipto.
Depois da produção de declarações escritas do fornecedor de madeiras, e-mails, inúmeros telefonemas e diligências, o problema resolveu-se e o camião-bomba seguiu caminho. Que o cliente, do lado de lá, já rosnava umas coisas pouco abonatórias sobre o novel fornecedor e as suas histórias à dormir debout.
Resolveu-se o problema é como quem diz. Que agora o assunto foi remetido à ASAE, e um destes dias vem por aí um auto e multas e ameaças - o ordinário daquela organização terrorista.
Santos, Santos, pá: mesmo descontando o exagero retórico, e acrescentando espaço para o disparate comicieiro, fica difícil levar-te a sério. Thatcher queria menos Estado. E não dizia querer um Estado menos grotesco porque não precisava. Mas tu precisas - e não sabes.
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