Dirigi uma empresa, durante mais de duas décadas, na qual periodicamente inquiria os numerosos proprietários sobre as escolhas estratégicas que era necessário fazer. Os ditos cujos ficavam em geral pasmados, aguardando com respeito a opinião daquele de entre eles que detinha uma magistratura de influência. Este, invariavelmente, falava muito, mas infelizmente quase nunca foi capaz de formular uma proposta de decisão, porque para tanto carecia sempre de alguma informação que não estava disponível, alguma opinião terceira que era preciso ouvir, alguma variável que merecia adequada consideração, algum risco que uma escolha implicava, algum outro em alternativa, uma sensibilidade que a decisão num sentido iria ofender, e outra se o sentido fosse outro, concluindo gravemente: Temos que ver, temos que falar! — posição que recolhia geral assentimento, até porque a esse passo já eram normalmente horas de jantar. Esta simpática não-decisão constituía-me na obrigação e no embaraço de escolher por todos, mas o sócio em questão veio a redimir-se propondo a certa altura, para um problema grave em concreto, escolhas que, por serem diametralmente opostas às minhas, e para que a empresa pudesse dar um passo em frente, implicavam a minha saída, que de imediato teve lugar. E deu, de facto, em direcção ao abismo, vindo a falir cinco anos mais tarde.
Lembrei-me deste passado distante e desta figura egrégia a propósito de Jorge Sampaio, que estampou no Público um texto palavroso e repleto de banalidades, que nem por isso deixou de beneficiar de um agradecimento amanteigado do director do jornal. Nele, "debruça-se" sobre a "questão europeia" para "tentar desbravar um caminho de interrogações e perplexidades".
Sampaio tem uma história de interrogações e perplexidades: num tempo em que o problema de Portugal era a probabilidade de à ditadura salazarista suceder uma ditadura comunista, pertenceu a um movimento (o MES) de idiotas úteis ao PCP, que abandonou em 1978 para ir adornar a ala esquerda do PS. Veio a ser presidente da Câmara Municipal de Lisboa, de 1989 a 1995, onde se distinguiu por a deixar exactamente como a encontrou, e chegou a presidente da República, em 1996, funções que exerceu até fins de 2005. Como presidente da República, proferiu inúmeros discursos, cujos volumes não se sabe se já engordam os tombos invendáveis dos alfarrabistas; e é sobretudo lembrado por ter dito, quando o país estava de tanga, que havia "mais vida para além do défice", e por ter nomeado de má-fé como primeiro-ministro um político ao qual tirou o tapete logo que, quatro meses mais tarde, outro da sua preferência ficou disponível. Antes e depois de ser presidente falou, falou muito, inclusive no desempenho de funções na Comissão Europeia e na ONU, e chegou a fundar um think-tank internacional em Arraiolos, que todavia não se ocupava da confecção de tapetes.
Pois este homem, que se confessa "militante europeu", está aflito, por causa do Brexit, que "constituiu um ponto de não retorno no projecto europeu", e porque "a eleição de Donald Trump para Presidente dos EUA traz consigo um lote acrescido de imprevisibilidade e de incertezas". Porque a evolução da CEE para a UE foi um passo precipitado, feito à revelia dos povos, do senso e dos prognósticos razoáveis que estadistas razoáveis devem fazer? Porque a criação do Euro, sem orçamento europeu comum, que não era possível na altura, e ainda é menos possível agora, foi um passo precipitado? Porque a manutenção da NATO terá talvez de custar mais aos orçamentos europeus, para custar menos ao americano, e portanto isso trará dificuldades acrescidas ao celebrado estado social, que Sampaio tem, juntamente com outros santinhos, no altar da sua casa?
Nada disso. É verdade que "a confiança hoje está abalada de forma sistémica e sistemática - e, no fundo, a questão que se coloca é se esta desconfiança está já demasiado cimentada para ser reversível e evitar o alastramento dos populismos de toda a sorte". E é inegável, continua Sampaio com argúcia, que "é impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo". Mas, apesar destas evidências, o articulista o que quer não é exactamente assustar-nos. Não, isso nunca, pelo contrário: "Não quero com isto vaticinar um destino trágico para a União Europeia — o que é dizer para todos nós —, mas sim, ao invés, lançar um apelo veemente para que se faça algo para inverter esta corrida para o abismo em que parecemos lançados".
O homem apela a "que Portugal inicie um processo de reflexão interno — dentro das mais variadas sedes e foros, designadamente no plano das instituições de segurança e defesa — sobre como assegurar uma participação de qualidade na União Europeia. Temos de ser contribuintes líquidos para o debate europeu."
Ui que susto, contribuintes líquidos. Mas calma, contribuintes líquidos mas de paleio, matéria-prima da qual entre nós há uma muito maior abundância do que o volfrâmio com que se fizeram fortunas na II Guerra Mundial. E após doses abundantes de seminários, encontros, workshops, conferências e debates, a cujos encerramentos Sampaio presidirá com distinção e discurso, qual deverá ser a conclusão? Que "dever-se-ia começar por solidificar a União entre os 19 da zona euro por forma a relançar a construção europeia pela base — ou seja, através de um compromisso claramente político no sentido de reforçar os mecanismos económicos e financeiros da zona euro".
Ah bom, os alemães pagam — não está mal lembrado, não senhor, mesmo que não seja exactamente uma novidade, assim como não será uma novidade que os boches não estarão pelos ajustes.
E, afora estas piedades, Sampaio tem alguma outra proposta? Tem: "Em suma, atravessamos um momento especialmente crítico para o nosso futuro colectivo — no plano nacional, mas também europeu e até mundial. Mas, qualquer que seja o sentido futuro da integração europeia — e sabemos que há vários cenários —, o que me parece importante sublinhar aqui é a necessidade de se aprofundar a discussão sobre que Europa queremos, que modelo para a reformatação da zona euro e que actualizações pretendemos fazer dos nossos compromissos europeus".
É como aquele antigo sócio: Temos que ver, temos que falar!
Seria cómico se não fosse trágico ver a lamentar a ascensão dos populismos (de direita) o presidente da república que mais fez pela ascensão do populismo de direita em Portugal, ao ter aceitado nomear um primeiro-ministro não eleito para evitar a chegada ao poder de um primeiro-ministro socialista fraco, e depois de o PS o ter substituído por um candidato mais forte e mais populista, ter dissolvido o parlamento com uma maioria absoluta sólida e estável para vagar o lugar para fazer chegar a primeiro-ministro o segundo primeiro-ministro mais populista da história da democracia portuguesa, sendo que o primeiro, o actual, estagiou no escritório de advogados dele, provavelmente por mérito, ou então por ser amigo de família. Onde, diga-se de passagem, deve ter aprendido as noções sul-americanas de direito que usa na governação, em que publica leis abstractas para resolver casos concretos e legaliza ilegalidades através de leis retroactivas.
De este ter arrastado, aliás, com o encorajamento da vida para além do deficit, Portugal para a falência da economia e do Estado, a circunstância mais fértil para medrarem os populismos de direita com as suas soluções tão assertivas quanto inaptas, que só não tomaram o poder porque não estavam organizados para isso, em Portugal só os populismos de esquerda estão organizados, se bem que não ao ponto de serem capazes de receber o poder, e porque apareceu alguém com lucidez e determinação suficientes para ser capaz de fazer o que devia ser feito no campo da democracia para tirar o país da falência.
E quando, apesar de as forças democráticas que salvaram o país da falência terem ganho as eleições, o poder está de novo entregue ao populismo (de esquerda) que, na mesma linha das soluções tão assertivas quanto inaptas do populismo de direita, afirmou ter para a crise económica e financeira uma solução que demorou pouco a provar que não era solução, e na iminência de essa farsa cair e de abrir de novo o caminho para as soluções do populismo de direita que, por milagre, continua a não estar ainda organizado para fazer esse caminho.
Se temos alguma coisa a agradecer ao presidente Jorge Sampaio, para além de discursos impenetráveis e intermináveis e de artigos de opinião impenetráveis e intermináveis, é ter-nos ajudado a mergulhar nesta crise que não chegou a passar, tudo indica que se está de novo a aprofundar, e pode nunca vir a passar.
Algum dia vamos ter que pedir contas da tragédia socrática a quem nos conduziu a ela. E não foi só o José Sócrates.
PS: Podem ficar tranquilos relativamente à minha sanidade mental, não li o artigo todo.
OXFAM não é, a despeito das aparências, o nome de um medicamento para correcção de algumas afecções do trato intestinal, ou para regular o exsudato nasal. E menos ainda para combater a influência deletéria dos fungos nos espaços interdigitais. Nada disso: O que a OXFAM combate é a fome e a injustiça no Mundo. E para tanto tem delegações na Nova Zelândia ou em Espanha, nos Estados Unidos, Hong Kong e em muitos outros lugares. No seu corpus de embaixadores arrola gente como Baaba Maal, que não sei quem seja, mas também Scarlett Johansson, Colin Firth e outras luminárias do espectáculo, cujos méritos ninguém desconhece. Aparentemente, não tem Portugueses nos seus quadros dirigentes, uma grande injustiça em relação a Jorge Sampaio, que dava um presidente de comité ou embaixador de primeiríssima água.
Como não podia deixar de ser, as alterações climáticas são uma preocupação central, quer porque quando a água falta as pessoas morrem à sede, quer porque correm o risco de morrer afogadas na ocorrência de inundações. E os poderes públicos, entregues a si próprios, nem promovem a instalação de canalizações nem se certificam de que as fábricas de canos se abstêm de poluir, donde estas grandes desgraças.
Pois a OXFAM garante que "taxar paraísos fiscais daria para acabar com pobreza extrema no mundo". Com efeito, "contas desta organização não-governamental dizem que há 14 biliões de euros escondidos, que representariam uma receita fiscal de 120 mil milhões de euros".
A notícia não esclarece de que forma é que se podem taxar paraísos fiscais sem acabar com a soberania do Luxemburgo, Andorra ou Malta, só na Europa, por exemplo, e criar controlos de circulação de capitais em todo o mundo sem prejudicar o comércio e o investimento; como é que essas receitas fiscais chegariam aos pobres sem ficar mais de metade pelo caminho, em agências internacionais, e boa parte do resto na mão das oligarquias dos países pobres; como se evitaria a destruição de incipientes economias locais, obrigadas a concorrer com produtos a custo zero; e como é que 120 mil milhões resolvem de vez o problema da pobreza extrema, dado que, uma vez pilhados, os evasores fiscais não poderão continuar a produzir evasão, por diminuição de recursos e por não serem masoquistas.
Mas a ideia é bonita, o internacionalismo simpático, a companhia agradável e - vamos lá a ver, todos precisamos de viver - as gratificações decentes.
Agora falta passar à prática. E não referi Jorge Sampaio por acaso: é de uma pessoa assim, com rasgo, imaginação e discursos grandiloquentes em bom Inglês, que a organização precisa.
Com a Scarlett Johansson de um lado, e Colin Firth do outro, ouvintes não haveriam de faltar. E não é impossível imaginar que um mínimo de três toneladas de alimentos sempre haveriam de chegar aos pretinhos do Darfur, juntamente com uma revista da OXFAM a explicar em banda desenhada os malefícios das alterações climáticas e do capitalismo desregulado.
Ficou célebre a boutade de Jorge Sampaio: Há mais vida para além do défice! Não é de excluir que este desabafo tolo venha a ter direito a uma nota de rodapé numa monografia sobre a III Républica, a escrever por um historiador que, daqui a cem anos, queira compreender o estranho regime que, em menos de duas gerações, levou o País à falência por três vezes, a última das quais com dívidas, pública e externa, sem precedentes.
O próprio diz que nunca disse o que se diz que disse, tendo antes afirmado: Há mais vida para além do orçamento! - como se fosse muito diferente, valha-o Deus.
Para já, estamos ainda a fazer a história deste período, do qual ignoramos o desenlace.
Cada qual é livre de construir uma lista dos factores que conduziram ao descalabro a que chegámos. Na minha figuram em lugar proeminente o crescimento constante do peso dos direitos económicos que a nossa gloriosa Constituição consagra, a evolução demográfica, a condução geral da economia de modo desfavorável ao investimento privado, o aumento imparável da importância da Administração na vida das empresas e dos cidadãos, e a adesão ao Euro. Este último por ter sido aquele que reorientou a economia para actividades sem futuro e porque permitiu atingirem-se níveis de endividamento, público e privado, que com moeda própria não teriam sido possíveis.
Na parte em que estes factores dependeram de decisões políticas não se nota especialmente a influência de Sampaio, dada a sua condição de figura menor até ser eleito Presidente da Républica. Aliás, tirando a famosa tirada de 2003, mais o facto de ter demitido um Governo com maioria parlamentar porque não era do seu partido e tinha uma grande falta de popularidade, os mandatos como Presidente não desmereceram da sua singular vacuidade.
Nestas quase quatro décadas Sampaio esteve sempre do lado errado. E esteve sempre em modo soft, embrulhando as banalidades das sucessivas vulgatas de esquerda que foi adoptando num palavreado que, quando era mais novo, era o mesmo do seu clube partidário, mas traduzido para intelectualês, e, agora que é um senador do regime, para paternalês.
Exagero meu? Não me parece.
É possível fazer-se uma carreira política indo da extrema-esquerda até ao PS, sempre atrasado em relação ao tempo histórico, recomendando calma e serenidade a quem não está nervoso, debitando primeiro a vulgata da cartilha marxista, depois quanta ideia pateta de esquerda moderna anda no ar, tudo embrulhado num ar grave e ponderado?
E, chegando a lugares de relevo, é possível deles sair prestigiado sem ter corrigido um torto, reprimido um abuso, deixado uma marca de progresso da cidadania?
E, como marco assinalável de uma carreira distinta, é possível ter criado um precedente indesejável, favorecendo uma facção, não reconhecendo um problema sério e criando condições para o seu agravamento?
E, como saldo de uma vida pública, é possível não ter aprendido nada, não reconhecer um erro, e ainda assim encontrar quem, com respeito, preste um ouvido atento ao mesmo discurso inane e reservado da estabilidade e da esperança?
É.
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