Uma das consequências da consolidação do Tempo Novo e dos seus calores progressistas é o despertar gradual dos dinossauros do PREC jurássico que se julgavam extintos mas apenas tinham recolhido às suas tocas para hibernar ao longo destas últimas décadas para conseguir sobreviver à obscura democracia do tipo das que existem na Europa ocidental a que Portugal tem sido brutalmente submetido desde o fim desse glorioso período da nossa história em que pudemos ter a ambição de virar socialistas.
Uma das tocas onde a espécie encontrou abrigo para hibernar protegida das agressões e desilusões ideológicas externas ao longo destas décadas de democracia burguesa é justamento o jornal Público, e é de lá que vão chegando notícias dos despertares.
Tal como em tempos Arnaldo, o Pós-Cataléptico, militante maoista que foi despertado do coma a que tinha recolhido vinte anos antes por ter sido lançado ao Tejo numa escaramuça com militantes comunistas pelas manifestações de entusiasmo da família com a chegada do novo PC a casa, que o desassossegaram mesmo no coma a que se tinha remetido, às vezes estes despertares fazem-se acompanhar de dissonâncias cognitivas resultantes de demasiado tempo de hibernação.
Este que despertou hoje no Público ao despertar trazia nos lábios a célebre palavra de ordem "O 25 de Abril não chegou às casernas" que tratou de aplicar à notícia da actualidade que o ocupava no momento de despertar, o roubo de armas do paiol de Tancos e os esforços do governo e da hierarquia militar para manter sobre os acontecimentos a obscuridade suficiente para não ser possível extrair deles conclusões nem responsabilidades.
Mas não faz mal, como diz um dirigente político da actualidade a gente está aqui para resolver, e eu próprio me prontifico para esclarecer em regime de voluntariado o jornalista confundido pela hibernação.
As casernas encheram-se de soldados barbudos que primeiro faziam plenários e depois não cumpriam ordens, que andaram pelo país, mais pelo Sul do que pelo Norte porque nalguns locais do Norte não eram assim muito bem-vindos e eles também não queriam andar à porrada por isso, a evangelizar o povo sobre as virtudes do socialismo em campanhas de alfabetização, que se dedicaram a prender e a torturar reaccionários em quartéis mais progressistas, e quem prendia e torturava reaccionários também podia prender e torturar maoistas que faziam o jogo da reacção, até a assassiná-los em barragens nas ruas e nas estradas. Não houve falta de 25 de Abril nas casernas.
Explicar o 25 de Novembro a dinossauros a sair da hibernação a que se submeteram no PREC jurássico é que já sai do domínio das minhas capacidades, nomeadamente a parte de o partido político que foi mais determinante para a construção da relação de forças populares, políticas, militares e até diplomáticas que tornaram possível a erradicação da ameaça comunista, o PS de Soares ou Salgado Zenha, ter sido o partido que hoje eles vêem do seu lado e está mesmo do lado deles, nomeadamente no boicote às celebrações do 25 de Novembro em todas as assembleias onde tem expressão numérica suficiente para as conseguir boicotar, desde a Assembleia da República às Assembleias Municipais às Assembleias de Freguesia. O melhor que eu lhes consigo explicar é que foi mandado para casa pelos comandos do Jaime Neves, e que obedeceu à sugestão. Esta parte, alguém que lhes explique melhor do que eu.
Em 16 anos, nunca nenhum jornal foi tão encomiástico com um governo como o Público é com o actual.
Para dizer a verdade, em muitos mais. Se calhar, só recuando ao Diário de Notícias dirigido pelo José Saramago se consegue encontrar um jornal tão militantemente encomiástico de um governo. E, para conseguir o que se conseguiu do Diário de Notícias de 1975, foi preciso recorrer à força bruta, aos despedimentos decididos em plenário, sem processo disciplinar, nem indemnização, nem fundo de desemprego, que a praxis laboral quando o PCP governa é de uma têmpera mais rija do que a dos moles dos capitalistas. E se não resultasse mandavam-se-lhe umas Chaimites para mostrar quem mandava. E o governo da altura até era dirigido por um brilhante primeiro-ministro, o companheiro Vasco da muralha de aço. Agora, basta ao primeiro ministro existir e fazer olhinhos às bloquistas, por quem os jornalistas se perdem de ternura, para ter jornais que o carregam num andor, sem necessidade de violência nem ameaças. Enfim, com só algumas ameaças. Uma época que fez escola.
Esta pérola que o Público, à falta dos saquinhos com brindes dos jornais do tio Balsemão, que também dispensam um amor incondicional ao António Costa, não devemos cometer a injustiça de o esquecer, nos oferece para embelezar o nosso fim-de-semana informa o povo num dos seus típicos quadrinhos com uma notícia principal e uma série de títulos que dirigem os leitores mais lentos de compreensão para a interpretação correcta da notícia, que uma figura vale mais do que mil palavras de ordem, que em Portugal nunca se chumbou tão pouco, não cuidando de explicar se é por aumento da qualidade do ensino ou por redução da exigência, o que não interessa para nada porque o objectivo do ensino no Tempo Novo socialista não é que os meninos fiquem a saber alguma coisa, até já criaram uma Matemática pós-Moderna que substitui com vantagem as Matemáticas Moderna e Clássica por dispensar os parêntesis nas expressões algébricas, nem se distingam uns dos outros pelo mérito que pode desarranjar a estratificação social que levam à partida, mas que sejam devolvidos às famílias felizes e sem retenções ao fim dos seus percursos escolares, e da relação entre chumbos e pobreza, sem explicar qual é a causa e qual a consequência, mas identificando uma vantagem importante em não haver chumbos: os meninos estão menos tempo no sistema de ensino, custam menos, e torna-se mais fácil atingir deficits ambiciosos que deleitam os socialistas e as bloquistas quando são elogiados pelo austero professor Wolfgang Schäuble. Também pouco importa.
No mundo côr-de-rosa "Acção Socialista" do Público, ou os portugueses estão a chumbar menos por serem menos pobres, ou vão enriquecer por terem menos chumbos.
* mas teve vergonha de perguntar.
Mais um complemento ao MBA rápido para jovens socialistas que pretendam vir a assumir a pasta da Finanças em governos socialistas. Nunca deixamos os nossos alumni ao Deus dará.
Do Mário Soares ao Francisco Louçã, da Catarina Martins e das manas Mortágua ao João Galamba, à Ana Catarina Mendes, ao Pedro Nuno Santos, os socialistas do Tempo Novo, até os comunistas da velha guarda tão resistentes a aderir ao folclore da moda, toda a gente que conta fala de economia especulativa de casino.
Mas afinal o que é economia especulativa de casino? Sabe? Não sabe e passa pela vergonha de não perceber bem o que é que eles lhe dizem com tanta convicção ou vê-se mesmo forçado a evitar meter-se em discussões para disfarçar a sua ignorância? Tenho a resposta para si!
Economia especulativa de casino é vender títulos de dívida de alto risco de não virem a ser remunerados e reembolsados nos termos contratualizados, e compensar esse risco com a promessa de juros altos para aliciar os investidores com maior preferência pelo risco ou os mais aversos ao risco mas incautos.
Por exemplo? As obrigações subordinadas que o governo socialista vai mandar a CGD emitir para vender a investidores privados no âmbito do seu processo de recapitalização.
Depois de comparar o papel da TAP, desde que com gestão pública e à mercê dos sindicatos, no século XXI com o das caravelas que no século XIV fizeram os descobrimentos que se iniciaram no século XV, porque "...é isso que nos permite inserir nas rotas da globalização...", e de comparar a inauguração do túnel do Marão por ele próprio com a da ponte Salazar pelo Salazar, porque "...há 50 anos o Tejo, hoje o Marão...", o António Costa volta a insinuar o seu magnífico esplendor anunciando que vai colocar Portugal "...na primeira linha de uma revolução industrial, onde aquilo que é essencial é a qualificação...".
E como é que ele vai conseguir colocar Portugal nessa primeira linha ao mesmo tempo que lançou um sólido conjunto de desincentivos estruturais ao investimento, como a reversão, por proposta do BE, da redução gradual da taxa de IRC até aos 17% acordada entre a maioria e o PS do Seguro na legislatura anterior, o aumento imediato do salário mínimo com promessa de continuar a aumentar até chegar aos 19% durante a legislatura, a redução do horário de trabalho na função pública que incentiva os sindicatos a lutarem por igual redução no sector privado, ou a reposição dos feriados e o aumento das férias, que estão a ter os resultados esperados no investimento, no emprego e no crescimento?
É canja: vai lançar dois programas, o Programa Nacional Start-Up e o Indústria 4.0, programas com nomes fashion e aiteque que, além de fazerem tremer as pernas ao governante irlandês que se vai ver ultrapassado na capacidade de captação de investimento com base em receitas noliberais como taxas de IRC de 12,5%, que martirizam o povo irlandês e o condenam e uma economia anémica e injusta, nos vão permitir liderar a tal revolução industrial do tempo novo. Ou, mesmo que não permitam, apoiarão pelo menos a criação de umas dezenas de empregos a quadros altamente qualificados com salários acima da média que, enquanto permanecerem em laboração, proporcionarão boas reportagens televisivas de visitas de governantes a casos de sucesso da nova economia do tempo novo planeada pelo estado. Para essas dezenas, e enquanto as novas indústrias não falirem e os despedirem, será uma boa alternativa às oportunidades de emprego com salários baixos.
Até aqui, tudo bem. O mínimo que se pode dizer é que ele se esforça por aquilo em que acredita, mesmo que seja ilusório, disparatado, e mesmo em completa contra-mão com a realidade. E proporciona-nos bons momentos de humor, o que, não sendo o principal objectivo de um primeiro ministro, a não ser em regimes populistas, o que ainda não é o caso, ainda não, são pelo menos de se aproveitar, que a vida não está para risotas. Mas o facto de conseguir dizer coisas destas sem se desatar a rir pode sugerir que esteja a ser vítima de uma patologia, a mitomania.
Na falta de um psiquiatra na plateia, vejo-me forçado a socorrer à Wikipedia, sempre falível, mas de alguma utilidade, desde que se tenha noção da possibilidade de conter erros. E o que diz a Wikipedia sobre os sintomas da mitomania que nos possa servir de ajuda para a diagnosticar ao primeiro-ministro? Isto:
A acreditar nos critérios enumerados pela Wikipedia, a presença de benefícios externos óbvios nas situações em que o António Costa exibe sintomas de mitomania permite afastar esse diagnóstico. Não é um mitómano. É apenas um aldrabão.
Perfeitos seis meses quase perfeitos de Tempo Novo, vejo-me impelido a, em nome do Gremlin Literário, oferecer aos leitores uma modesta colecção de cromos comemorativa das grandes realizações do socialismo nacional, subordinados ao tema "A Lição de Costa", com a esperança que os leitores os distribuam por todas as escolas oficiais do país, a começar pelas que vão receber os alunos oriundos dos colégios com contrato de associação que são apenas movidos pela ganância do lucro e com que a revolução nacional terá um dia, que se espera em breve, que extinguir.
Lição nº 1 - Dívida soberana
Graças à leitura inteligente dos tratados e a bater o pé a Bruxelas, os títulos do Estado português, fortes pela modelar administração que dispensa medidas adicionais e planos B, têm hoje taxas de juro das mais altas da Europa.
Lição nº 2 - Reconstrução e Reabilitação
Do abandono das funções do Estado, e das ruinas do estado social demolido para ser entregue aos privados, sinais de neoliberalismo e insensibilidade social, o Tempo Novo, ao mesmo tempo que edifica através do Parque Escolar, faz renascer o património da Nação pela reabilitação urbana para instalar hotéis de charme, um investimento magnífico para fazer crescer o dinheiro dos reformados.
Lição nº 3 - Soldados e Marinheiros
Em contraste com o zero da fôrça armada, a que as chefias militares retrógradas e homofóbicas a haviam reduzido através da proibição de afectos, o Tempo Novo assegura, em todos os campos, com os mais eficientes meios técnicos, a defesa da Nação e do Império por soldados felizes porque podem fazer o amor uns com os outros sem as chefias, prontamente obrigadas à autocrítica e submetidas ao vexame público em comissão parlamentar, e escorraçadas pela comandante suprema Mariana Mortágua, perturbarem o seu direito à manifestação dos afectos.
Lição nº 4 - Operários e Camponeses
Com o Tempo Novo, e sob a orientação do vice-primeiro ministro Arménio Carlos, inicia-se uma era de dignificação do trabalho com o combate à precariedade, só no privado, o horário de 35 horas, só na função pública e para quem pode, e a recuperação da contratação colectiva e um dia, quem sabe? oxalá, a sagração da unicidade sindical.
Lição nº 5 - A justa luta dos Estivadores
Não havia portos que satisfizessem as exigências dos estivadores nacionais ou que ao menos servissem de apoio à rude faina dos nossos sindicalistas. Está a construí-los o Tempo Novo, e já os maiores armadores desamparam a loja para haver espaço para atracarem os cruzeiros de charme. Isto, para quem está com atenção, anda tudo ligado.
Lição nº 6 - Energias Renováveis e Auto-estradas
Onde eram escalvados os montes, ressequidos os campos e intransitáveis os caminhos, já reverdecem graciosas centrais eólicas, brilham poderosas fotovoltaicas, e magníficas auto-estradas cortam Portugal em todas as direcções e sentidos, paralelas e ortogonais.
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