Terça-feira, 13 de Fevereiro de 2018

Um retrato desfocado

No último domingo a revista do Expresso trazia um extenso ensaio de Henrique Raposo, informando que “o autor está a preparar uma biografia política e intelectual de Vasco Pulido Valente”. O ensaio era, portanto, uma antevisão das linhas gerais de interpretação da vida e obra a que a biografia vai obedecer.

 

Estranhei. Porque VPV ainda não acabou, que se saiba, a carreira e a vida, e, não sendo deslocada a tentativa de o biografar, ficaria certamente enriquecida se tivéssemos tido direito a uma interpretação autêntica, isto é, se o objecto do trabalho tivesse sido inquirido sobre o que de si pensa, mormente naqueles passos que lhe definem o carácter, no seu envolvimento directo na acção política nas décadas a seguir ao 25 de Abril, no que acrescentou à historiografia nacional, e na importância que atribui à influência que terá exercido nos actores principais da nossa vida política e em pelo menos duas gerações de leitores de jornais.

 

Não há qualquer referência a uma tentativa de entrevista, que portanto presumo não tenha existido. Ter o objecto de estudo vivo e não o aproveitar é a meu ver um desperdício. E do que conheço de VPV acho pouco provável que se dê ao trabalho de vir a terreiro inteirar a mole dos seus admiradores do seu ponto de vista, dizendo e provando com a sua verve corrosiva e inimitável que Henrique Raposo tresleu, exagerou, omitiu, e sobretudo não percebeu.

 

Num certo sentido, ainda bem que não haverá qualquer reacção; que, se VPV voltar a escrever, os seus leitores querem uns, e temem outros, sobretudo ouvi-lo sobre a originalidade da geringonça (crisma dele, aliás, que Paulo Portas divulgou), o que vê de paralelo com outras alianças espúrias do nosso passado, o que há de ilusório no actual clima de optimismo acéfalo, e o retrato ácido da gente que nos pastoreia.

 

Vamos ao texto:

 

Henrique Raposo começa por fazer um retrato impressionista do Portugal salazarista em que o biografado nasceu. Pessoalmente, poria algum vinho no vinagre da descrição, que me parece demasiado tributário de uma experiência de vida alentejana que suponho enferma de algum ressentimento, mas estou certo não confere necessariamente com a contemporânea de outras regiões. Este pano de fundo, seja ou não rigoroso, serve para concluir que “criado nesta gaiola dourada, Vasco nunca se demarcaria da patine snobe e cínica em relação a Portugal. Não era por acaso que “os indígenas” era a sua expressão de eleição para descrever os portugueses”.

 

Snobismo é uma atitude de superioridade afectada, e nunca VPV se comportou, ou escreveu, com a pretensão de ser um português típico fosse em que sentido fosse, como nunca se distinguiu por poupar nas suas objurgatórias alguma classe social ou personalidade em particular. Preenche portanto a primeira condição da definição que escolhi; mas não a segunda. Porque a superioridade, por ser natural (e advinda não, como crê Raposo, da origem social mas de uma vasta cultura adquirida com esforço) para não ser evidente precisava de ser hipócrita. Quanto ao epíteto de “indígenas”, cujo uso recorrente tenho visto ser-lhe assacado como prova de uma irrefragável arrogância, se não desprezo, ofereço a minha interpretação: há uma tradição portuguesa de patrioteirismo, que se traduz na permanente manifestação de crenças sobre a nossa quase sempre imaginária superioridade, que quem quer que detenha algum púlpito da opinião ou da influência pública impinge ao ouvinte. Convém zurzir o lombo dos portugueses lembrando as nossas insuficiências, para as corrigir; e de pouco adianta passar a mão pelo pêlo do nosso optimismo infundado, porque disso há, e sempre houve, muito. Chamar aos portugueses indígenas é isto: não estou aqui para vos lisonjear os preconceitos nem para vos afagar o amor-próprio.

 

Prossegue Raposo: “Vasco nunca se confrontou a fundo com o trauma clássico desta geração: a descoberta indignada da pobreza e o voraz sentimento de culpa que se segue, raiz da mente revolucionária”.

 

Ignoro se este confronto teve ou não lugar, o próprio é que saberia dizer. Mas há que dar graças por não se ter transformado em mais um comunista, como sucedeu à maioria dos intelectuais da sua geração. Porque em 1975 não estivemos demasiado longe de inscrever no rol das nossas desgraças colectivas a já então obsoleta evolução para uma sociedade comunista, e de um intelectual de peso a remar para essas águas é que não precisávamos. A interpretação segundo a qual esta recusa em aderir aos ares do tempo se filiava numa origem de classe colide com o facto, que o ensaio relata, de “os pais serem comunistas”, donde resulta que a explicação porventura mais justa é a de aceitar que VPV já então tinha considerável indiferença às modas de pensamento dos seus pares, e a particular lucidez que à maior parte deles escasseava.

 

“Em segundo lugar, o desejo de fugir à guerra do ultramar. António Barreto e Medeiros Ferreira, por exemplo, exilaram-se para escapar à guerra. A solução de Vasco foi diferente: a cunha, um favor em forma de atestado médico que surgiu de forma natural e sem qualquer pedido expresso por parte da família.

A lógica snobe da sociedade funcionou”.

 

Não sei nada sobre as origens sociais de Medeiros Ferreira ou António Barreto, não conheci um nem conheço o outro, e portanto não estou em condições de afirmar que, se tivessem tido a mesma oportunidade, escolheriam ainda assim o exílio. Igualmente desconheço como funcionavam as coisas na upper class lisboeta. Sei porém que, na minha região, a influência social contava para quase nada; corrupção e moeda sonante é que eram o livre passe, para quem pudesse. Sem querer fazer a injúria a Henrique Raposo de pôr a história, cuja fonte imagino venha a aparecer na biografia, em dúvida, confesso-me surpreendido.

 

Prosseguindo: “Nestes anos 60 e 70, V.P.V. foi assim o nosso Orwell ou Camus, ou seja, foi aquele intelectual que tentou quase sozinho restabelecer a ligação entre a esquerda e a liberdade, entre a esquerda e um módico de tolerância e de honestidade. Não é possível sublinhar em demasia esta coragem de V.P.V., porque também não é possível sublinhar em demasia a esmagadora hegemonia que a vulgata marxista tinha sobre as cabeças desta geração”.

 

Este parágrafo inicia uma digressão, digamos assim, substantiva pelo papel de VPV na nossa história contemporânea. E se fosse este o fecho do ensaio bem poderíamos dizer para os nossos botões: ah, o grande homem tem defeitos, que novidade.

 

Porém, a digressão é bruscamente interrompida assim: “Contudo, a luta contra o neorrealismo também lhe deixou um vício intelectual que está ligado ao meio social daquela Lisboa minúscula e oitocentista: o snobismo”. E: “Ao falar de Sttau Monteiro, V.P.V. falou de si mesmo. Até se pode dizer que este é o seu epitáfio, o resumo da sua persona. Está ali tudo. Está ali a recusa dos mitos da esquerda marxista — facto que acabou por defini-lo enquanto rebelde da esquerda durante décadas e décadas. Está ali a figura de um homem antissalazarista com raízes na esquerda, sem dúvida, mas que tinha uma pose snobe, nunca escondendo uma certa repulsa pelo povo e pelo igualitarismo democrático; uma espécie de Gore Vidal das Avenidas Novas…”

 

Mesmo que esta análise tivesse qualquer sombra de consistência, seria incongruente com a descrição que o próprio Raposo faz da importância intelectual de VPV porque considera como epitáfio características de feitio e comportamento que são naturalmente adjectivas. Mesmo aqui, porém, e dando de barato a repulsa, há uma confusão de planos: não há qualquer contradição entre a defesa do regime democrático enquanto sistema que reconhece o consentimento dos governados, expresso periodicamente num processo aberto de liberdades garantidas, como sendo a principal fonte do exercício do poder, e a constatação de que a maioria não tem gosto, nem discernimento, nem formação, que imponham que se lhes siga os ditames. Se não fosse assim, aliás, ver-nos-íamos obrigados a preferir o último sucesso no hit-parade dos drogados da moda ao Requiem de Mozart; a pendurar religiosamente na parede uma litografia do menino da lágrima; e a conciliar o sono lendo a última obra-prima de um qualquer contemporâneo albardado de prémios em vez dos clássicos.

 

Abstenho-me de comentar com detalhe o resto do ensaio porque duvido que alguém tenha a paciência de me seguir até ao fim. Mas por toda a parte se nota a mesma mistura de observações pertinentes (“V.P.V. ficou sempre ao lado daquela desconfiança liberal que parte do pressuposto de que o Leviatã não é pessoa de bem até prova em contrário”) com picardias escusadas (“Glória” é um pastiche queirosiano”, como se Eça alguma vez se tivesse dedicado ao género biográfico-histórico).

 

Todavia, o modo como o cavaquismo e o Independente são retratados merece ainda atenção porque aí se retomam as teses do snobismo e se descreve a tónica anti-cavaquista do jornal e as diatribes de VPV como “inaceitável desprezo pelo “homem de Boliqueime”.

 

Isto é extraordinário: a Henrique Raposo não ocorre que Cavaco Silva representasse, como de facto representou, uma oportunidade perdida para a modernização do país, que via como uma massa informe a moldar a golpes de fundos europeus e voluntarismos dos seus colegas economistas (nem todos – todas as semanas tanto os esquecidos Leonardo Ferraz de Carvalho como Alfredo de Sousa se entretinham a desmontar o edifício das ilusões cavaquistas), sem nenhuma consideração pela história do país e pela realidade. E que o ridículo a que todas as semanas eram expostas as personagens gradas daquela época, a começar por Cavaco, não decorria das suas meias brancas nem do estilo canhestro: este era o pretexto para salientar o abismo saloio entre a promessa (desta é que vai ser, Portugal está no pelotão da frente, como salientava  Cavaco no seu português de workshop foleiro que imaginava inspirado) e a realidade lúcida do enterro do PREC, alguma modernização da sociedade, e um módico de sanidade das contas – e já era muito.

 

Passo em claro a alegação de que os queirosianos, qualificação que o próprio VPV, suponho, não enjeita, se condenam e nos condenam à inevitabilidade do nosso atraso; e não digo nada, porque teria que dizer muito, sobre a alegação de que não podemos aprender com Eça nada que preste sobre o séc. XIX português, e sobre o carácter actual de alguns tipos que criou.

 

Nas palavras de Raposo: “Claro que isto impedia a criação de um discurso marcado pela esperança e pela redenção colectiva através do sucesso e da melhoria das condições de vida. Era e continua a ser uma narrativa que deixa o país num vórtice perpétuo, é como se Portugal fosse o James Belushi de “Groundhog Day”, um país preso no mesmo dia medíocre que se repete todos os dias, um Purgatório sem saída, um Purgatório onde a escadaria até ao Paraíso é uma impossibilidade”.

 

Por outras palavras:

 

Não digamos nunca, como VPV sempre disse quando ouvia cantar as sereias do optimismo acéfalo, “sei que não vou por aí”. Não sejamos negativos, nem hipercríticos, e de cada vez que nos acenarem com o milagre da convergência tenhamos fé.

 

Agora mais que nunca, que a maior dívida da nossa história, as grandes empresas que desapareceram, os bancos que já não são portugueses, a administração pública pletórica, a dependência abjecta de uma EU periclitante, e um eleitorado que não cessa de pedir mais ao Estado, isto é, a sociedade que temos ao cabo das últimas décadas, são o cimento que haverá de garantir o nosso renascimento, se não tivermos a desdita de ter outro VPV com a banca montada de derrotista.

publicado por José Meireles Graça às 02:56
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