Pedro Correia, pessoa que estimo por muitas e boas razões, insurge-se aqui contra a seguinte disposição do Estatuto dos Magistrados Judiciais (nº 1 do art.º 16º):
Os magistrados judiciais não podem ser presos ou detidos antes de ser proferido despacho que designe dia para julgamento relativamente a acusação contra si deduzida, salvo em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos.
E escreve: “Esta norma é obsoleta, colide com o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei e já devia ter sido revogada. Mas graças a ela dois desembargadores, entretanto constituídos arguidos evitaram a detenção e continuaram hoje a desenvolver a sua actividade normal, ao contrário do que sucedeu aos restantes indiciados na Operação Lex”.
Esta argumentação é ligeira, mas recolhe surpreendente unanimidade: no mesmo post cita-se Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça, e um deputado, ambos abundando no mesmo sentido. Nas redes sociais o sentimento (nas redes sente-se muito e pensa-se pouco) é também esse: quem é que eles se julgam, os juízes, para se eximirem a malhar com os ossos na cadeia como se fossem mais que os outros?
Sucede que os juízes não são a única categoria de cidadãos que goza de privilégios em material criminal – também os têm, por exemplo, o presidente da República e os deputados. E esses privilégios não apenas não são uma originalidade portuguesa como são vulgares em sociedades democráticas e Estados de Direito. Deverá portanto haver boas razões para a existência de derrogações ao princípio geral de igualdade dos cidadãos perante a lei.
Os juízes, como se sabe, são irresponsáveis e independentes – julgam segundo a lei e a sua consciência as pendências que lhes cabem em sorte, que não podem recusar, e das suas decisões não cabe recurso para a opinião pública, nem para o Facebook, nem para o senhor ministro da Justiça, nem sequer para o senhor presidente da República, menos ainda a ONU, por muito que as decisões ofendam algum valor que o comentariado ache digno de particular protecção, como sucedeu ainda recentemente num caso de violência doméstica, mas para outras instâncias também integradas exclusivamente por juízes.
Não é difícil perceber que para ser independente um juiz não deve ter medo das consequências para si das suas decisões e que por isso não deve hesitar em afrontar os poderes do dia, sejam os governantes, os magistrados do ministério público, as polícias, os comentadores com influência na opinião, e todos os outros poderes de facto que pululam por aí, quando entenda que no caso concreto a lei é mais correctamente aplicada se de um modo que ofenda algumas pessoas com poder, ou a própria opinião pública.
Não faltam exemplos históricos de direitos pessoais ofendidos por decisões judiciais que cederam ao clamor daquela opinião, uma rameira influenciável e volúvel. E mesmo que muitos juízes imaginem que a majestade da Justiça e a deles próprios é uma e a mesma coisa, e que por isso tratem os réus sem respeito, as testemunhas com arrogância e os advogados com displicência, nem por isso o bem público ficaria mais bem servido se o juiz fosse apenas mais outro funcionário, de quem nos podemos queixar ao chefe.
A defesa última que tem um cidadão contra os outros, a opinião pública ou o Estado é o tribunal. E é preciso que o juiz não esteja preocupado com as susceptibilidades do seu colega do ministério público, o que achará o agente de polícia, que está a depor, sobre o teor da sentença que irá proferir, o que vão escrever ou dizer os pensadores que pastoreiam a opinião, e o que vai pensar a malta anónima que, em maiúsculas e execrável português, se alivia das suas indignações nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais.
Os privilégios em matéria criminal dos juízes são instrumentais, isto é, protegem-nos a eles para nós estarmos protegidos, e portanto a derrogação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei serve para garantir que o cidadão que no tribunal acusa ou é acusado seja… igual perante a lei a qualquer outro.
Quer o meu amigo Pedro duas boas causas, e duas boas perguntas, que suscitam os casos recentes na Justiça? Uma é a da razão pela qual se encara com tanta displicência a necessidade da prisão preventiva para investigar crimes, para cidadãos que não sejam juízes; e outra por que motivo não sabemos exactamente quem foi o magistrado demente que resolveu assaltar os computadores do ministério das Finanças por causa de uma acusação ridícula que levou os cidadãos desprevenidos a pensarem que não podia ser só aquilo, tinha que haver coisas mais graves.
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