Domingo, 4 de Fevereiro de 2018

Uma má solução e duas boas perguntas

Pedro Correia, pessoa que estimo por muitas e boas razões, insurge-se aqui contra a seguinte disposição do Estatuto dos Magistrados Judiciais (nº 1 do art.º 16º):

 

Os magistrados judiciais não podem ser presos ou detidos antes de ser proferido despacho que designe dia para julgamento relativamente a acusação contra si deduzida, salvo em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos.

 

E escreve: “Esta norma é obsoleta, colide com o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei e já devia ter sido revogada. Mas graças a ela dois desembargadores, entretanto constituídos arguidos evitaram a detenção e continuaram hoje a desenvolver a sua actividade normal, ao contrário do que sucedeu aos restantes indiciados na Operação Lex”.

 

Esta argumentação é ligeira, mas recolhe surpreendente unanimidade: no mesmo post cita-se Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça, e um deputado, ambos abundando no mesmo sentido. Nas redes sociais o sentimento (nas redes sente-se muito e pensa-se pouco) é também esse: quem é que eles se julgam, os juízes, para se eximirem a malhar com os ossos na cadeia como se fossem mais que os outros?

 

Sucede que os juízes não são a única categoria de cidadãos que goza de privilégios em material criminal – também os têm, por exemplo, o presidente da República e os deputados. E esses privilégios não apenas não são uma originalidade portuguesa como são vulgares em sociedades democráticas e Estados de Direito. Deverá portanto haver boas razões para a existência de derrogações ao princípio geral de igualdade dos cidadãos perante a lei.

 

Os juízes, como se sabe, são irresponsáveis e independentes – julgam segundo a lei e a sua consciência as pendências que lhes cabem em sorte, que não podem recusar, e das suas decisões não cabe recurso para a opinião pública, nem para o Facebook, nem para o senhor ministro da Justiça, nem sequer para o senhor presidente da República, menos ainda a ONU, por muito que as decisões ofendam algum valor que o comentariado ache digno de particular protecção, como sucedeu ainda recentemente num caso de violência doméstica, mas para outras instâncias também integradas exclusivamente por juízes.

 

Não é difícil perceber que para ser independente um juiz não deve ter medo das consequências para si das suas decisões e que por isso não deve hesitar em afrontar os poderes do dia, sejam os governantes, os magistrados do ministério público, as polícias, os comentadores com influência na opinião, e todos os outros poderes de facto que pululam por aí, quando entenda que no caso concreto a lei é mais correctamente aplicada se de um modo que ofenda algumas pessoas com poder, ou a própria opinião pública.

 

Não faltam exemplos históricos de direitos pessoais ofendidos por decisões judiciais que cederam ao clamor daquela opinião, uma rameira influenciável e volúvel. E mesmo que muitos juízes imaginem que a majestade da Justiça e a deles próprios é uma e a mesma coisa, e que por isso tratem os réus sem respeito, as testemunhas com arrogância e os advogados com displicência, nem por isso o bem público ficaria mais bem servido se o juiz fosse apenas mais outro funcionário, de quem nos podemos queixar ao chefe.

 

A defesa última que tem um cidadão contra os outros, a opinião pública ou o Estado é o tribunal. E é preciso que o juiz não esteja preocupado com as susceptibilidades do seu colega do ministério público, o que achará o agente de polícia, que está a depor, sobre o teor da sentença que irá proferir, o que vão escrever ou dizer os pensadores que pastoreiam a opinião, e o que vai pensar a malta anónima que, em maiúsculas e execrável português, se alivia das suas indignações nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais.

 

Os privilégios em matéria criminal dos juízes são instrumentais, isto é, protegem-nos a eles para nós estarmos protegidos, e portanto a derrogação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei serve para garantir que o cidadão que no tribunal acusa ou é acusado seja… igual perante a lei a qualquer outro.

 

Quer o meu amigo Pedro duas boas causas, e duas boas perguntas, que suscitam os casos recentes na Justiça? Uma é a da razão pela qual se encara com tanta displicência a necessidade da prisão preventiva para investigar crimes, para cidadãos que não sejam juízes; e outra por que motivo não sabemos exactamente quem foi o magistrado demente que resolveu assaltar os computadores do ministério das Finanças por causa de uma acusação ridícula que levou os cidadãos desprevenidos a pensarem que não podia ser só aquilo, tinha que haver coisas mais graves.

publicado por José Meireles Graça às 23:49
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4 comentários:
De gato a 5 de Fevereiro de 2018 às 16:31
Bem, a independência dos juízes não deve ser um fim em si, apenas uma ferramenta. O fim é, obviamente, a justiça ou a decisão justa.

Uma ferramenta mal usada apenas cria estragos maiores. Como é aparente, a independência dada a juízes, acrescida de poder desmedido com ausência de consequências no seu mau uso, é uma ferramenta muito mal usada. Os estragos são notórios.
De Carlos Conde a 6 de Fevereiro de 2018 às 00:04
Como leitor assíduo do José Meireles Graça criei uma ideia de si, mesmo sem o conhecer pessoalmente.
Frequentemente aplaudo em silêncio as ideias que aqui expõe e comungo de muitas das suas preocupações sobre o que se passa actualmente na sociedade e sobre o que se perspectiva possa vir a acontecer no futuro.
Hoje, porém, a sua opinião está nos antípodas do que eu penso.
Já tentei ver se encontro uma óptica através da qual o conteúdo do seu texto faça sentido, mas sem sucesso.
Não vou esgrimir contra os argumentos legais ou jurídicos que impedem que um criminoso possa ser preso, por derrogação da lei.
Mas para um vulgar cidadão é incómodo constatar dia sim, dia não que afinal vive mesmo na real Animal Farm.
De José Meireles Graça a 6 de Fevereiro de 2018 às 00:46
Não há nenhum obstáculo, nem nenhuma derrogação da lei, que impeça um criminoso de ser preso, se por criminoso se entender quem tenha sido condenado por sentença transitada em julgado. O que há é obstáculos a que acusações fundamentem prisões preventivas, que mesmo assim têm uma incidência, e frequência, a meu ver excessivas. O Estado de Direito não resulta ofendido por haver criminosos prováveis à solta, mas fica diminuído se houver, como há e tem havido, presos que acabam absolvidos porque quem os prendeu não tinha um edifício acusatório consistente.
De aviso a 12 de Fevereiro de 2018 às 22:59
Senhor José Meireles Graça, poderá estimar «por muitas e boas razões» aquele Senhor. Não me oponho a tal, Deus me livre e guarde.
O meu ponto é que tal coisa não se passa no meu coração. Não o aprecio e acredito que será a principal «alma danada» daquele blog. E há quem julga que está nos top 10...
É hipersenssível, com algo de mentalidade de 'starlet', só ele é quem sabe, censura por omissão ou com má-educação, enfim, está a ver porque não o amo...
Já avisei o Senhor em causa que aquele blog andava a viver de muitas colaborações de terceiros; em geral melhores que as da 'prata da casa'; e que issso prenunciava o seu fim.

Assim, será muito fácil, para quem o conhece bem, gerir os seus escritos, sem o enterrar.

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