Sábado, 28 de Maio de 2016

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'PEQUENA BURGUESIA DE FACHADA SOCIALISTA

 

Foi exactamente com este título que há uns 3 anos (em HERESIAS XIV) meti o bedelho no debate em torno da “escola pública” - já então a discussão fervia.

Hoje regresso ao assunto começando pela afirmação de um jornalista (J. M. Fernandes/Observador) que, curiosamente, é dos que mais têm criticado a decisão do Governo a propósito dos contratos de associação. Escreveu ele: “(o ensino privado) é a possibilidade de gozar a liberdade sem a tutela do Estado”.

“Tutela do Estado”? Salta a vista que, de um lado e do outro da barricada (sim, porque a discussão não passa de uma guerra de trincheiras) o que mais abunda são quadros mentais viciados e as trapalhadas semânticas do costume.

Todos (numa tradição que, entre nós, remonta aos primórdios do Liberalismo) parecem confundir despreocupadamente “Estado” com “Governo” (o Órgão Executivo do Estado) e/ou com “Administração Pública” (o aparelho administrativo do Estado). Para uns, é pura ignorância; para outros, rematada premeditação. Em suma: uma trapalhada semântica de que alguns tentam tirar bom proveito.

Acontece que o “Estado” é uma organização. Mais precisamente, uma comunidade que se organiza para perpetuar a sua individualidade na interacção com outras comunidades. E uma organização que tem por objectivos últimos: (i) no plano interno, a convivência pacífica e o seu reverso, a punição; (ii) para o exterior, a capacidade de formular e afirmar os seus próprios interesses.

Objectivos últimos que podem ser, ou não, prosseguidos em ambiente de liberdade, de igualdade e de segurança (de pessoas e bens). Mas, tal como a liberdade, também a igualdade e a segurança (de pessoas e bens) só são concebíveis em determinados modelos de Estado – a saber: os Estados de Direito.

Não é necessário, creio, desenvolver uma Teoria do Estado para concluir que não faz qualquer sentido pretender que a liberdade individual possa ser vivida “à margem” do Estado de Direito - muito menos “contra” o Estado de Direito – como J. M. Fernandes dá a entender.

Pelo contrário, é o Estado de Direito que vem criar as condições para que a liberdade possa ser desfrutada pacificamente. E Estado que não proteja (da acção do Governo, da Administração Pública ou de quem quer que seja) o exercício da liberdade, não será, por certo, um Estado de Direito.

Faço notar que um Estado de Direito não é um “Estado de Leis” como muitos por cá pretendem, mais ou menos sorrateiramente. É, sim, um Estado de Princípios: (i) o princípio da liberdade (individual e colectiva); (ii) o princípio da igualdade (de todos e cada um perante as normas que dão forma, substância e finalidade à organização que é o Estado); (iii) o princípio da segurança (de pessoas e bens), sem o qual nenhum dos outros dois princípios poderá ser pacificamente fruído.

Sob este ângulo, “ensino público” e “ensino privado” são duas realidades que coexistem, ou podem coexistir, no seio de um dado modelo de Estado de Direito. Por outa parte, nada impede que o Estado de Direito consagre uma única modalidade de ensino – desde que salvaguarde a liberdade, a igualdade e a segurança também nesse ponto.

Mas, o que entender por “ensino público”? E por “ensino privado”? Será que “ensino público” e “escola pública” são uma e a mesma coisa?

Na realidade, “ensino público” pode ter 3 sentidos bem diferentes.

No mais elementar - o ensino é “público” se tiver de respeitar regras de funcionamento e curricula (quiçá, curricula mínimos obrigatórios) fixadas pelo Governo e supervisionadas pela Administração Pública.

No intermédio - o ensino é “público” se, além disso, for inteiramente financiado por dinheiros públicos (melhor, pelo OGE), sem custos para os alunos.

No mais rebuscado - o ensino só é “público” se, para além de ser gratuito para os alunos, tiver lugar em locais que são património do Estado e for assegurado por pessoal (docente e discente) a cargo do OGE.

Em Portugal, o ensino na escolaridade obrigatória é “público” no sentido mais elementar – mas já não no sentido intermédio: os livros (e outro material de estudo) necessários têm de ser adquiridos pelos alunos. O mesmo acontece, aliás, com o ensino pré-primário e o ensino superior.

É, porém, o sentido rebuscado que mais se aproxima daquilo que, entre nós, se entende por “escola pública”. Aproxima-se, mas não coincide – longe disso.

Para teóricos e práticos destas coisas do ensino, “escola pública” é unicamente aquela em que os professores, não só são pagos por dotações do OGE, mas gozam do estatuto de funcionários públicos - estando, por isso, sujeitos à disciplina hierárquica da Administração Pública e a uma relação laboral que os favorece relativamente à generalidade dos empregados por conta de outrém.

Tudo o resto pode ser o que seja: o pessoal discente pode estar em contrato individual de trabalho, ser simples prestador de serviços ou ser fornecido por uma empresa privada; as instalações escolares podem ser arrendadas ou até cedidas em comodato; livros e outro material de estudo, já sabemos, correm por conta dos alunos. Agora, os professores, esses, têm de ser funcionários públicos.

E a isto se resume esta discussão, acesa e interminável: os professores do “ensino público” têm de ser funcionários públicos. É isso a “escola pública”, sem que ninguém explique porquê.

E ninguém explica porquê por uma simples razão: todos têm por óbvio que, se é “bem público” (e o ensino é um “bem público”), terá de ser assegurado, forçosamente, por funcionários públicos.

Todos, afinal, comungam no mesmo quadro mental viciado da dicotomia “Estado/Sociedade Civil”, parecendo não ver que é “bem público” tudo aquilo que contribua para que a comunidade organizada em Estado se perpetue, mantendo intactas a sua identidade e a capacidade para afirmar os seus interesses perante o exterior. E que a distinção fundamental na organização do Estado é entre funções de soberania e tudo o resto – não a que opõe Governo (e, por arrastamento, Administração Pública) ao cidadão comum.

Há, de facto, razões outras, que não só a imoderada ignorância de tantos, como veremos adiante. Assim como há razões objectivas para que aquele quadro mental viciado venha acompanhado, invariavelmente, por um preconceito puramente ideológico: na “escola pública”, os alunos não têm liberdade de escolha. Ou, de modo sucinto: universalidade e gratuidade (na “escola pública”) não rimam com liberdade de escolha (dos alunos).

[NOTA: Não abordarei aqui as soluções sobejamente conhecidas para conciliar “ensino público”, mesmo no sentido rebuscado, até mesmo no sentido de “escola pública”, com a liberdade de escolha da escola. Mas não posso deixar de sublinhar que, se a organização do Estado não é de molde a consagrar a liberdade de escolha da escola, esse não é, certamente, um Estado de Direito].

Aqui chegado, retomo a actual discussão. O que primeiro ressalta é que o Governo: (i) não sabe quanto custa, na realidade, a “escola pública” – naquela linha de pensamento, tão nossa, de que, se é do interesse público, custará o que tiver de custar; (ii) não faz a menor ideia dos custos no “ensino privado”.

Dito de outra maneira: (i) o Governo (este e todos os que o precederam) não está em condições de prestar contas, nem sobre a “escola pública”, nem sobre os contratos de associação; (ii) a Oposição (esta e todas as que a precederam), não está em melhor posição; (iii) quem tem por missão auditar as Contas Públicas (o Tribunal de Contas) nunca exigiu de nenhum Governo um rudimento que fosse de contabilidade analítica (pelo menos, no capítulo do “ensino público”) que lance luz sobre o debate. Nisto estamos.

Que esta luta encarniçada pela imposição da “escola pública” obedece a uma estratégia política, parece-me ser ponto assente. Mas não, como por vezes leio, com o objectivo de “endoutrinar os alunos”. Essa endoutrinação não se faz nas salas de aula. Faz-se nos curricula – e, para tal, até o “ensino público” no sentido mais elementar servirá.

Aliás, a endroutinação pressuporia a colaboração cúmplice da grande maioria do corpo docente - o que nem os mentores desta estratégia crêem possível. E se tivessem a ingenuidade de crer, o êxito das redes sociais entre os alunos encarregar-se-ia de os desenganar rapidamente.

O objectivo é, sim, manter instrumentalizável (leia-se: em prontidão) um dos sectores que maior potencial tem para causar perturbação social (o da escolaridade obrigatória) - e, desse modo, exercer uma pressão permanente sobre Governos de outra cor política que venham com pretensões de “ideias próprias e pulso firme”.

Outros sectores terão potencial idêntico, se não mesmo superior, para desarticular o dia-a-dia do cidadão comum, instilando subliminarmente a ideia de um Governo fraco, logo incompetente. Tenho em mente os transportes urbanos/suburbanos e o SNS.

Mas a paralização dos transportes tem um impacto meramente local – e, para mais, a disponibilidade de viaturas particulares, não eliminando o incómodo, dilui-lhe os efeitos. As paralizações no SNS, por seu turno, são objecto de crescente censura pela generalidade da população (pelo que convém não abusar).

No ensino é que é: ninguém fica com a vida em risco (contrariamente ao que pode acontecer no SNS) e não há alternativa imediata (como acontece com os transportes urbanos/suburbanos).

[NOTA: É claro que há sectores que, paralizados, paralizam o país (ex: portos marítimos, indústria do cloro/soda cáustica, distribuição de água, de energia eléctrica e de gás natural, telecomunicações e Banca) – mas isso leva a luta política para um patamar pré-insurrecional que não está aqui em causa.]

A mobilização dos professores não é feita sob uma bandeira ideológico-partidária, mas com argumentos corporativos muito simples que as estruturas sindicais esgrimem habilmente: (i) manter à outrance o estatuto de funcionário público; (ii) ampliar as vantagens deste estatuto relativamente ao regime geral de trabalho.

[NOTA: Vantagens que, recordo, consistem em: (i) nunca correr o risco de despedimento (emprego para a vida); (ii) beneficiar, na carreira, de promoções automáticas; (iii) estar ao abrigo de processos de avaliação com consequências directas na progressão profissional; (iv) ter acesso a um seguro de saúde (ADSE) muitissimo mais favorável que as alternativas existentes no mercado; (v) e, acima de tudo, ter a remuneração mensal e respectivos complementos, mais a pensão de reforma, garantidos pelo contribuinte (neste ponto, os funcionários públicos são até os credores mais privilegiados do Estado).]

Isto significa que os professores assim mobilizados não sentem que estejam a levar aos ombros uma ideologia ou um partido. Estão, apenas, a fazer por uma vida pessoal mais cómoda, mais desafogada - e, acima de tudo, livre do espectro do desemprego. Creio até que ficam em paz com as suas consciências porque, também eles, comungam do quadro mental viciado que acima referi.

Para que a capacidade de mobilização (logo, de pressão política) não esmoreça, duas coisas são de fundamental importância: (i) impedir, na “escola pública”, a liberdade de escolha; (ii) evitar que o número de professores/funcionários públicos na “escola pública” diminua.

É claro que a liberdade de escolha pelos alunos será sempre um processo de avaliação da “escola pública” com resultados à vista de todos. Como o é nas escolas privadas pagas pelos alunos.

Mas quando a demografia gera cada vez menos de alunos, a possibilidade de os alunos escolherem que “escola pública” frequentar: (i) induz os professores a avaliarem-se uns aos outros (não mais: “Faça o colega do lado o que fizer, nada me afectará”); (ii) leva-os a exigir, também eles, liberdade para formarem equipas, que é a única maneira de assegurarem a continuidade do seu emprego; (iii) hélàs! começa a abrir fendas na solidariedade corporativa. Por isso, é combatida encarniçadamente pelas estruturas sindicais.

Como factor de pressão política, o importante não é o número de professores/funcionários públicos mobilizados, mas a dimensão da perturbação social que essa mobilização provoca – o que é dizer, a proporção das famílias que vêem o seu dia-a-dia por ela afectado.

Uma vez que o contingente de alunos é limitado, para que a estratégia que aqui estou a resumir resulte, a “rede de escolas públicas” tem de conseguir captar o grosso desse contingente – tendencialmente, todos os alunos que não tenham meios, ou não queiram, frequentar o “ensino privado” com propinas. Isto significa, eliminar todo o “ensino público” que não seja assegurado por professores/funcionários públicos (diz-se, em “economês”: um processo de saturação da oferta, de crowding out).

Com uma tripla vantagem: (i) aumenta o número de professores/funcionários públicos; (ii) aumenta o número de famílias que são afectadas por escaramuças de pressão política; (iii) reforça o prestígio das estruturas sindicais – que reinvindicam o mérito de criar os apetecidos postos de trabalho na função pública para professores desempregados.

Enquanto o debate estiver inquinado por quadros mentais viciados e confundido por trapalhadas semânticas nunca sairemos disto. Com prejuízo do ensino – seja ele público ou privado – está bem de ver.

Maio de 2016

 

Muitos parabéns ao autor, A. Palhinha Machado. A melhor síntese do que está em questão com os Contratos de Associação.

 

publicado por João Pereira da Silva às 09:36
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1 comentário:
De cristof a 31 de Maio de 2016 às 20:23
Reforço os parabens; até eu gostava de ter escrito isto.

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