Vi num blogue uma receita de um amigo, ilustrada com fotografia, e ocorreu-me que nunca inteirei os leitores das minhas preferências culinárias, uma falha que jamais me foi assacada, seja porque, prudentemente, conhecendo as minhas inclinações políticas, lhes escasseia o desejo de conhecer as gastronómicas, seja porque acreditem que não há cozinha de esquerda e direita, ou ainda por serem tímidos.
Mas há cozinha de esquerda e direita. E a minha, lamento informar, é reaccionária, monárquica, comunista, conservadora e nacionalista. Isto ela é. Não é fast, internacional, elitista, francesa, ou castelhana ou italiana, de autor, exótica, nem de ou para parvalhões com a mania que são finos.
Explico: Reaccionária porque desconfia da novidade, que em geral despreza; monárquica porque as receitas vêm na sua maior parte do tempo em que o país não era presidido; comunista porque os pratos são daquela parte do povo que os podia pagar, que eram os lavradores ricos, e não do povo propriamente dito, que esse comia caldo de unto ou de couves e meia sardinha num bocado de pão de milho, reservando as ementas de luxo para dias santos - ou seja, sendo todo o povo igual, uma parte dele era mais igual, que é uma definição tão boa como outra de comunismo; conservadora porque ao produto moderno e processado prefere o natural e tradicional; e nacionalista porque guarda para o gosto estrangeiro incompreensão e descaso, e para o nacional familiaridade e estima.
Seja assim. E porque a pressão da vida moderna, a macaqueação da abominação estrangeira e o desprezo pelo mos maiorum vai soterrando preciosidades, deixo consignada nesta tribuna obscura a receita do bacalhau fritado.
Bacalhau frito toda a gente sabe o que é: umas postas bem demolhadas (o que levanta aliás problemas - postas de espessuras diferentes não devem ter o mesmo tempo de demolha, e a adição de sal necessária por excessiva demolha é coisa de maçaricos) são envolvidas num polme de farinha e ovo e fritas em óleo. Vão para a mesa com uns raminhos de salsa e azeitonas, em geral daquelas de frasco, inchadas da solução de lixívia em que foram previamente banhadas, a fim de serem perfeitamente higiénicas e insipidas.
Isto não é nada. Porque o bacalhau fritado só pode fazer-se com bacalhau de cura amarela, seco ao vento como já quase não há (o bacalhau, não o vento - desse há sacos, sobretudo na opinião publicada). E o preço deste bacalhau é superior ao da lagosta. Isto é aborrecido, e mais ainda porque, mesmo que se esteja disposto a pagar, não é fácil de encontrar. Eu sei onde comprar, mas só divulgaria se corrompido com convites de valor muito superior ao da informação.
Temos então o bacalhau xpto, embrulhado em jornais e guardado sem frio artificial meses a fio. Cortado em postas sobre o pequeno, vai a fritar em azeite, depois de envolvido em ovo de quinta batido mas sem farinha triga, ao contrário do outro.
O azeite pode ser, mas não precisa ser, novo - usado de frituras anteriores de bacalhau serve perfeitamente. A sertã não precisa de estar irrepreensivelmente limpa: se tiver sido lavada às três pancadas não vem daí mal ao mundo, desde que não haja resíduos de detergentes. Durante a fritura há que virar as postas, mas a operação deve ser feita com um gancho de cabelo, e convém que este esteja embebido de algum leve resquício de gordura natural. Hoje tal operação é praticamente impossível, por não se encontrarem cozinheiras de puxo enrolado no cocuruto da cabeça, de onde um gancho providencial possa ser retirado para este fim imprescindível.
Após a fritura, o bacalhau vai repousar, disposto numa travessa de cerâmica, eventualmente craquelée pelo uso e esbotenada, para um armarinho em lugar fresco (frigorífico nunca), protegido de excesso de luz, e dos insectos por uma rede, a fim de o ar circular. Pode consumir-se logo, mas o estágio no armário melhora-o para os dias seguintes.
As azeitonas, curtidas em casa e conservadas no respectivo cântaro (atenção: usar apenas colher de pau) ou em frasco com azeite, acrescentam-se na hora. O raminho de salsa fresca pode também acrescentar-se, por haver sempre quem aprecie paneleirices.
Simples, não é? Quem não gostar - do bacalhau ou do texto - pode pôr na beirinha do prato.
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