A decisão dos juízes do tribunal constitucional, guardiões ideológicos de uma constituição virtual, não é mais que a simples continuação da mistificação nacional. Desta vez, os juízes “decidem”, ainda, que podemos ser ricos sem instalar em ambos sub-sistemas, público e privado, uma cultura de verdade, exigência, responsabilidade, eficiência e eficácia com um enquadramento conceptual do trabalho que privilegie a competência, o rigor e o mérito.
Não foi feita uma sondagem, fora do universo dos funcionários públicos, mas se o fosse, penso que a maior parte das respostas, seriam contrárias à decisão dos juízes, pois é de senso comum que a igualdade de despedimento no sector público e privado é um valor reconhecido, como positivo, para a organização do trabalho e eficácia da administração pública da qual todos beneficiamos e para a qual somos contribuintes.
Considero que os dois momentos introdutores de desequilíbrio mais profundo da nossa história recente foram: a revolução de 1974 e a entrada no sistema Euro.
Qualquer desequilíbrio de um sistema aumenta a resistência à mudança, e o ajustamento gradual a novas condições de equilíbrio é natural.
Estamos nesse processo que não nos é imposto pela troika como alguns nos querem fazer crer, mas sim, imposto por nós próprios, a vontade mais forte dos que querem evoluir como sociedade e aumentar a abundância de recursos próprios para melhor viver. E já decidimos internamente e estamos a fazer a reconversão. Apenas parece imposta de fora, mas a sua necessidade é interna e tem raízes sociais profundas. Porque o decidimos? Simplesmente, porque queremos viver melhor, numa sociedade mais justa, equilibrada e satisfatória.
O desequilíbrio de 1974 transformou-nos, por vontade popular, numa sociedade muito mais inclusiva. O analfabetismo funcional e absoluto foi reduzido, a sociedade em geral enriqueceu, os níveis de consumo aumentaram e a felicidade material instalou-se como regra e objetivo ao alcance da maior parte da população. Esta ruptura com o passado trouxe à órbita do poder democrático muita gente antes excluída, cujos ancestrais, há tão pouco tempo como em 1940, andavam descalços. Naturalmente, quando os descalços alcançam o poder, a sua primeira preocupação não é salvar outros sem sapatos, mas calçar os próprios pés. E estamos nisto há 39 anos. São poucos, para calçar pés com 870 anos de calos provocados pelo chão duro e frio.
Nos ombros dos juízes, como em todos nós, pesa esse lastro da história, e a sua acção agora em causa, parece-me pura e simplesmente determinada por critérios materialistas fundamentados em medos herdados, esquecendo o ideal de sociedade subjacente ao inevitável ajustamento, pretendido pela população. Se queremos ser uma sociedade democrática rica, e assim o decidimos, poucos quererão voltar atrás.
Os juízes fazem parte dos componentes do sistema que faz a resistência que devemos considerar natural. A sua decisão é apenas um contratempo contornável e faz parte da inevitável desordem e desorientação dos sectores que pensam conservar eventuais conquistas, que não o são.
Os trabalhadores a recibos verdes na função pública, durante cinco ou dez anos, estão aí para demonstrar como o sistema se ajusta naturalmente para contornar as condicionantes ideológicas.
O desequilíbrio da entrada no Euro, colocou-nos por opção própria (recordo que impulsionada também por um dos actuais guardiões 1), numa camisa-de-forças que agora devemos continuar a usar se queremos evoluir economicamente, ou abandonar para voltarmos ao ciclo de défice, dívida, desvalorização, re-estruturação e manutenção numa pobreza terceiro-mundista que permita um estado caro, ineficiente e demagógico. Se nem mesmo os gregos aceitam sair do euro e estão em pior situação que nós, porque aceitaremos nós?
A manutenção no Euro parece-me consensual e os motivos óbvios: queremos impor aos nossos governantes, empresários e trabalhadores, uma disciplina e critérios de organização e produção, que no outro modo não teríamos, se estivéssemos isolados e fora da moeda única. Temos consciência disso? No fundo, penso que sim.
A resistência à mudança é inevitável, natural e aceitável. Há modos alternativos de reformar a função pública e a sociedade2 encarregar-se-á de os implementar com ou sem guardiões do passado.
Preste-se atenção às recentes notícias de crescimento do PIB e evolução positiva do emprego que resultam de uma vontade civil e não estatal. Não dependem do estado ou do governo (quanto muito, o estado pode estar menos ou mais no caminho, o que é o caso agora) e resultam do ajustamento que as empresas e trabalhadores estão a fazer por uma inevitável necessidade de sobrevivência3 e por isso também, o próximo governo, seja ele do PS ou do PSD, continuará a facilitar o ajustamento.
1Será que ele tinha consciência? Provavelmente, não.
2 Não acredito numa “consciência colectiva” mas sim na agregação impulsionadora de vontades individuais.
3 Não pega a “historieta” da decadência civilizacional. Sou, por inerência do que sei da evolução da história do Homem, um notável optimista que ainda não morreu de lepra, tuberculose ou sífilis.
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