Em minha casa, éramos 8 à mesa. Não se falava alto, não se discutia, e quaisquer conversas dos adultos implicavam automaticamente o silêncio respeitoso da filharada, a menos que fosse directamente interpelada. Insistências para comer eram desconhecidas, cada um dos seis rebentos tinha a sua ração tácita, as ocasionais e raras faltas de apetite (mais frequentemente repulsa idiossincrática por certos pratos) eram ignoradas.
Quando comecei a frequentar outras casas, estranhei a barulheira e os dramas: se o menino comia ou não comia a sopa, se era bem alimentado, e olha que a cenoura faz bem aos olhos, só comes sobremesa se acabares o que tens no prato - toda uma parafernália de regras, regrinhas e invencionices, um tédio.
Ainda hoje, fico pasmado com a quantidade de treta que envolve as refeições: as minhas categorias são salgado e insosso, doce e azedo, fresco e passado, canónico ou criativo (a designação simpática para a modernice culinária incompetente e internacionalista), e apetite ou falta dele. E tudo isto justifica pouca conversa: está bom, óptimo, assim-assim ou uma merda - eis tudo. Que alguns dos meus amigos mastiguem a alcachofra porque "faz bem ao fígado" ou ingurgitem quantidades inconfessáveis de fígado de cebolada porque "tem muito ferro", em vez de simplesmente porque lhes apeteça, releva para mim de impenetrável mistério.
Uma vez antes de muitas, ouvi em casa alheia um argumento que me deixou meditabundo, atirado à cara consternada de uma criança indefesa: o menino tem que comer porque há muitas crianças em África que morrem de fome. Levei algum tempo (demasiado porventura, alguns de nós são de raciocínio lento) a concluir que a fome dos meninos em África não fica saciada pelo efeito de as crianças mimadas comerem ou deixarem de comer o que quer que seja na Europa. E encalhei nessa conclusão de irrepreensível lógica.
Lembrei-me desta história por causa do que li aqui hoje: um maduro fretou um avião para transportar de costa a costa, a fim de lhes evitar a morte prematura, 1150 galinhas velhotas para um santuário onde os nobres bichos se vão poder espolinhar à vontade. Isto num país onde, nas grandes cidades, se tropeça frequentemente nos sem-abrigo a dormir nos umbrais das portas. Não me passa pela cabeça negar o direito ao benemérito de fazer com o que lhe pertence o que bem entenda, e menos ainda defender, com o que não é meu, generosidade pública - não sou de esquerda.
Mas lá que este menino grande americano era um daqueles aos quais, para comer o bifinho, se tinham que contar historinhas - era, de certeza.
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