Pendurados na bilheteira de Jean Reno, com base numa história de Peyo, e por razões certamente alheias ao preço da mão-de-obra, vieram para Lisboa fazer um filme francês. Era preciso conceber um pedaço de uma cidade imaginária, situada na década de 60, e para isso foi constituida uma equipa de portugueses seleccionada de acordo com os critérios mais exigentes. O cérebro foi importado de uma estrela francesa da "direcção de arte", com pergaminhos muito apregoados naquele escritório: dizia-se que era autor dos cenários de "Paris, Texas", e de "mais uma data de merdas do Wim Wenders e bué cenas em Hollywood". Procurei. Os registos mais conhecidos do cinema, estou convencida que por inveja, não mencionam o seu inestimável contributo a "Paris, Texas". E a fita "Chocolat", que consta efectivamente do seu currículo, não é a de Lasse Hallström mas sim uma irrelevância que, suponho, terá sido muito apreciada nos Camarões.
Para traduzir as ideias do artista francês, e estabelecer a ligação com o resto da equipa, foi contratado um perito português licenciado em "arquitectura de cena" (por uma universidade de Barcelona, que isto fique bem claro). Não sabia falar francês, estava convencido que sabia falar inglês, e na realidade engrolava uma espécie de língua muito parecida com o português. Por motivos que permanecem misteriosos escolhia sistematicamente o francês para comunicar com o artista, o que resultava em "diálogos" sempre festivos: quando "conversavam", as mensagens eram lançadas no éter como fogo de artifício, seguindo trajectórias imprevistas que explodiam em pontos aleatórios do open-space, e caindo em abundantes instruções de luz colorida sobre todos os membros da equipa.
O perito de cenas nunca era apanhado desprevenido e concordava em todas as subtilezas, particularmente quando o artista olhava para os desenhos com pânico e dizia do "trabalho" que estava "incroyable". Chamava-lhe Thierry quando se dirigia a ele, prontificando-se a proceder a todas as alterações necessárias para que os seus desejos fossem satisfeitos. Chamava-lhe "aquele cabrão" ou "a puta da francesa", quando se referia a ele na sua ausência. De resto, as ausências não eram um exclusivo do artista, mas sim uma circunstância que se aplicava com frequência à maioria dos colaboradores daquele grupo luminoso. Sempre com justificações tão esmagadoras como "dar um salto ao plateau", ou "ir buscar a menina ao infantário".
Subordinada a este perito, cabia-me receber uns desenhos rudimentares das fachadas que "criava", uma a uma, "orientado" pelo artista, na absoluta escuridão quanto ao que seria (e o que se pretendia que fosse) o efeito do conjunto. Esperava-se de mim que as interpretasse e, sobretudo, que as dimensionasse e transformasse em edifícios visualmente credíveis e materialmente praticáveis: entre outros objectivos, era suposto que os actores pudessem entrar e saír deles. Corrigidos alguns erros sem grande importância (ninguém está livre de os cometer, não é assim?), que raramente iam além de pisos com pé-direito de 1,20 m (quem os não faz?), ou vigas que atravessavam as portas das boutiques a 1,60 m de altura (caramba, não vamos ser caprichosos pois não?), os desenhos deveriam ser entregues aos carpinteiros para que os construíssem em MDF (uma espécie de aglomerado de madeira). Vários "edifícios" destes foram construídos e rejeitados, sujeitos a novos orçamentos e aprovados pelos próprios, para desespero da Produção cujas contas todas as semanas sofriam um novo estoiro.
Na verdade, estoirar as contas era a missão em que todos se aplicavam com mais zelo. A começar na atitude de optimismo e humildade com que aceitavam as críticas ao seu trabalho: "O paneleiro não gostou? Epá, tranquilo. Eu cá trabalho à hora". Com espírito de admirável responsabilidade, aproveitavam para trabalhar todas as horas em que não tinham mais nada que fazer. E se, por efeito de uma qualquer circunstância de excepção que não acontecia mais do que três vezes por semana, essas horas não fossem suficientes, eles mesmos se encarregavam de contratar novos elementos para a equipa. Estas contratações multiplicavam-se nas folhas da contabilidade, e todos os sábados apareciam nomes surpreendentes na coluna dos honorários. Quando a fúria da directora de produção a estimulava a descer as escadas e oferecer ao povo uma porção do seu pensamento, cerimónia acompanhada de adjectivos criteriosamente adequados e uma banda sonora de pastas batidas em cima da mesa, o povo reagia com a fleuma própria dos melhores cavalheiros. "Então, o que é que aconteceu?", perguntava um recém chegado do café, que só tinha assistido aos últimos acordes. "Nada, pá, esquece". E a manhã continuava imperturbada - portuguesa e absorta na sua pacatez habitual.
Aos almoços, o menu de conversas tinha três possibilidades: borracheiras, coca, e jogos electrónicos. Excepto um dia em que o perito de cenas verteu sobre o grupo uma teoria cósmica de elevada complexidade, segundo a qual "tudo no universo, desde o maior sistema à mais ínfima partícula, movimenta-se à velocidade da luz", especificando que "um gajo é feito de partículas, tanto um português como um chinês, e por isso hoje estás aqui e de repente - zás". A seguir concedeu à plateia uns segundos para absorver aquela extraordinária revelação, e o remate chegou depois de uns golos de vinho verde do jarro: "De maneira que isto é como a tolerância - as coisas são como são".
Satisfeitos de entremeada e de mundividências, o cortejo de meditabundos pensadores regressava ao escritório (nunca depois de duas horas e meia de intervalo) para seguir questionando os grandes paradoxos da humanidade: "E quando um gajo, no dia seguinte, ainda está cheio daquela merda?", e observava o careca: "Ui, até chamo pela minha mãezinha!", e o das calças descaídas: "O franciú ontem à noite até chiou!", e vai o das pulseiras: "Isso foi a levar no cu!" (gargalhadas). Durava até que o artista regressava do almoço dele (que nunca excedia as três horas e meia), e por vezes prolongava-se mesmo na sua presença (se bem que com alguma melancolia porque o senhor, não falando português, mostrava relutância em participar). Nunca cheguei a perceber porque é que, na sequência de um desabafo em surdina no qual identifiquei repetidamente a palavra "incroyable", o artista apresentou a sua demissão. Mas sei que o período de demissão, que deixou a equipa em estado de grande perplexidade e provocou muitas reuniões, não durou muito tempo: antes das 5 da tarde já estava outra vez na liderança daquela selecção de génios. Vozes maldosas sugeriram que o salário do artista tinha duplicado, o que não estou em condições de confirmar. Mas ouvi dizer que também ele estava contratado "à semana".
Certa vez foi superiormente decidido conceber um edifício "neo-clássico" para fazer o papel de Mairie. Decorridos os habituais rabiscos, tiradas as medidas ao espaço disponível, e ponderadas (digamos assim) as desejáveis proporções, o perito de cenas entregou-me o desenho da fachada para eu proceder à necessária interpretação. Posso garantir que nunca tinha visto nada mais espantoso. Tratava-se de um objecto com dois pisos, ambos com pé-direito generoso como convém a um edifício público. O piso superior era consideravelmente mais alto que o piso térreo, num rasgo de liberdade e ousadia que contrariava todas as regras da hierarquização de fachadas da arquitectura clássica. Simétrico, definia-se por uma superfície plana à qual tinha sido encostado um pórtico de quatro colunas. Ao nível da rua, três arcos de volta perfeita davam acesso a um plano recuado com três portas rectangulares. A marcar a divisão entre os pisos, e atravessando as colunas, estava prevista uma viga de dimensões triunfantes. O conjunto rematava num frontão que dava umas curvas e assentava noutra viga, mais estreita que a primeira. E, num gesto de insuperável segurança estética, o frontão não chegava a apoiar-se nas duas colunas das extremidades: estas colunas não sustentavam mais do que a ligeiríssima instrução do autor. Atarracado, pesadão, de pernas curtas e cabeça pequena, tronco espesso e barriga apertada por uma cinta de forças, o edifício "neo-clássico" da Mairie parecia um halterofilista búlgaro.
As semanas sucediam-se e os adiamentos compensavam os "imponderáveis" do processo "criativo". As instalações alugadas para filmar esperavam cenários que não apareciam. No dia em que "a Produção" se enervou com os preços que esta fita estava a atingir, a directora voltou a descer as escadas, mas desta vez falou francês. Nessa tarde o artista despediu a equipa inteira - excepto o perito de cenas.
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