A mim, o Orçamento não surpreendeu: é a tradução de uma impotência e uma inevitabilidade, como já havia sido o corrente e o anterior, embora com a diferença de, desta vez, se atingir seriamente a maioria dos eleitores e não apenas, como habitual, aquela parte da classe média que ainda podia jantar fora aos sábados, passar férias fora de casa e ter pelo menos dois automóveis por casal - tal é a medida do desespero.
Tem algumas coisas cómicas, como a redução da taxa de IRC em dois pontos, a par da criação de novo imposto sobre o gasóleo, algumas coisas ridículas, como o aumento do imposto sobre o tabaco, e algumas coisas positivas na área do ensino, através da criação de mestrados e doutoramentos para cálculo das pensões de reforma e aposentação.
Fosse eu economista e haveria de contratar um matemático (para evitar o asneirol) com vista a fazer uma folha de cálculo, com as seguintes variáveis: i) efeito depressivo resultante do aumento de impostos (xis por cento do aumento previsto da receita, após correcção deste com um desconto à taxa de optimismo da previsão orçamental); ii) efeito depressivo resultante do corte de despesas (xis por cento do montante do corte, a percentagem sendo obrigatoriamente inferior à do ponto i); iii) taxa de crescimento da economia, resultante da aplicação daquelas correcções à média das previsões oficiais. Com estes dados, seria possível corrigir os cálculos do défice e da percentagem da dívida pública no PIB. E como o défice acrescenta à dívida, e o esforço de consolidação orçamental terá que continuar porque senão não há financiamento, pode repetir-se o exercício para os anos seguintes, em páginas diferentes da mesma folha - não há nenhuma razão para não ter estilo em folhas de cálculo. Convirá ter presente, para os anos subsequentes, que a economia é muito mais resistente e flexível do que imaginam os alquimistas da Academia, e que, portanto, em cada ano, os efeitos depressivos referidos em i) e ii) tendem a diminuir.
Falta associar tudo isto a um calendário, para ver quando é que se atinge o défice de 3% (na realidade este défice implica, para não ser comprometedor, uma taxa de crescimento de não sei quanto, mas isso agora não interessa nada - o médico já fica todo satisfeito com umas corezinhas no doente, mesmo que a infecção não esteja vencida), e qual será o PIB então - não ouso imaginar.
Não vale a pena complicar com factores de política interna, porque o PS no Governo fará, no essencial e ainda que com bastante mais inépcia e melhor propaganda, a mesmíssima coisa, e ninguém sabe dizer se a populaça aguenta - o meu palpite é que sim; não vale a pena complicar com factores de política externa porque já se percebeu que, para defender o Euro, a burocracia europeia fará o que for preciso do ponto de vista deles; não vale a pena meter mais variáveis, de geopolítica ou outras, porque abundam as opiniões, e até certezas, na matéria, mas ninguém sabe, de ciência certa, nada do assunto.
Foi pena que, naqueles primeiros seis meses da Situação, esta não tivesse folheado as Páginas Amarelas: porque a reforma do Estado era pelas Páginas Amarelas que deveria ter sido feita, desde que, sobre as entradas "Ministério", "Direcção-Geral", "Serviço", "Alta Autoridade", "Observatório", "Direcção Regional", "Câmara Municipal", e as outras quinhentas nas quais se declina o Estado, se tivesse feito a pergunta certa: precisamos mesmo disto? Ou então, se a lista telefónica não estivesse à mão, um desses assessores (pertencente, de preferência, à minoria que não iria ser despachada) que abundam poderia espiolhar o Diário da República, desde 1974, com o propósito de descobrir o que foi criado - duas vezes em cada três poderia tranquilamente ser extinto.
Agora é tarde, o momentum passou. E o que o Governo pode invocar, na reforma do Estado que ainda queira e possa fazer, é a troica: Foram eles que mandaram! Nós até nem queríamos.
Como ficou amplamente demonstrado.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais