O serão vai longo e já passaram mais de 24 horas sobre o anúncio da morte de Nelson Mandela, momento a partir do qual toda a gente começou a dizer coisas. Para escrever este texto, estou a perder uma entrevista a Frederik de Klerk e a Desmond Tutu, personagens importantes que ouvirei mais tarde. Interessa-me o que disseram, até agora, os portugueses. Antes de mais, interessa-me o que não disseram.
Ninguém, que eu tenha dado conta, se lembrou de relacionar a libertação de Mandela com o fim da guerra fria. O ANC, que Mandela chefiava, estava infestado de comunistas e era directamente patrocinado pela União Soviética. Foi por essa razão que Portugal votou, em 1987, contra uma resolução das Nações Unidas que legitimava a luta armada e, mais do que isso, instava a que os países "contribuissem" para ela "generosamente" (ponto A, parágrafos 2 e 8). No mesmo dia, Portugal votou a favor de outra resolução que exigia expressamente (como a primeira) a libertação "imediata e incondicional" de Mandela (ponto G, parágrafo 4).
Era preciso esperar que o bloco comunista se esboroasse definitivamente. O muro de Berlim caiu em Novembro de 1989, e não é uma coincidência que Mandela tenha sido libertado em Fevereiro de 1990. Teve a serenidade e a inteligência de perceber que o mundo não era o mesmo. Que aquela seria a melhor oportunidade para conseguir um acordo com Frederik de Klerk, enfraquecido que estava o ANC pelo lado do financiamento, da logística "militar", e do vigor ideológico comunista. E que, se não encontrasse uma maneira de conciliar os interesses do seu partido com a parte do país que lhe sustentava a economia, a África do Sul entrava na balbúrida mais selvagem. Hoje não se distinguiria da Somália, do Zimbábue, ou do Ruanda.
No barulho do comentário português ouvem-se lamentos por entre as banalidades que dão aos autores, com o seu arzinho solene de pesadões previsíveis, algum tempo para se admirarem de si mesmos. Pacheco Pereira, sozinho, tomou para seu deleite pessoal metade da última Quadratura do Círculo. Ana Gomes, diplomata de todos os salões, serviu-se da morte de Mandela para atirar contra Cavaco, o governo português, e a direita em geral. Segundo esta perita, o episódio da ONU resume-se a "uma frasezinha ridícula". Pergunto-me se a senhora algum dia leu o documento, ou se considera que "os princípios" e "os direitos humanos" dispensam a minudência. No entender de Ana Gomes, a defesa dos direitos humanos é indiferente à substância dos pactos que os países assinam entre si. Não aprendeu, nas várias décadas de "experiência" em "relações internacionais", que dos Estados se espera que defendam os interesses dos seus cidadãos: naquela altura viviam na África do Sul cerca de 1 milhão de portugueses. Para Ana Gomes, o exercício dos "princípios" não depende da ponderação das circunstâncias e do peso das oportunidades políticas: os estadistas "sérios" sempre serão confirmados pela história, desde que dotados de "visão" (como ela) e aliviados de escrúpulos (como ninguém).
No mesmo programa, os portugueses que se prestaram (estou nesse grupo) foram agraciados com as perspectivas de outro "humanista" muito curioso. Pelo aspecto cheguei a convencer-me que, talvez por um milagre atribuível à santidade do tema, estávamos na presença de António Vilar. Mas não. Fui informada que o cavalheiro é "romancista" e chama-se (quase de certeza) José Eduardo Agualusa. Para ele, o problema começou mais cedo. Quando em pleno regime de apartheid os dirigentes da África do Sul classificavam as pessoas segundo parâmetros de raça, Salazar "cometeu o erro" de lutar e conseguir incluir os portugueses na categoria de "brancos". Um erro imperdoável, segundo o artista, porque "no seu próprio interesse" deviam ter sido classificados como "mulatos". Assim é que estaria "certo", porque eles eram "efectivamente mulatos", e assim é que, no momento em que a história veio ao encontro dos inevitáveis "princípios", os portugueses que viviam na África do Sul seriam imediatamente acolhidos na nova ordem "democrática".
Para este género, os exemplos abundam. Por estes lados, a morte de Nelson Mandela também serviu para ilustrar de que maneira o ódio, as frustrações pessoais, a má fé, a preguiça, e a ignorância dos comentadores portugueses escurecem o país.
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