Considera-se um pensador, apesar de ter sido um estratega e um homem muito agradável sempre que a lisonja lhe servia os objectivos. Não está disposto a abdicar de um poder que já ninguém lhe reconhece, nem sequer dentro do partido. Rodeou-se de uma corte de intriguistas fracassados, porque os intriguistas com talento não precisam dele nem lhes sobra tempo para visitas de cortesia. Reune-se, pública e periodicamente, com um conjunto de aduladores que se penduram no seu passado político como se o prestígio fosse transmissível por contágio. O nome de Mário Soares atesta, julgam eles, uma virtude "humanista" no currículum de muitos cavalheiros. E assina artigos de opinião - numa prosa baixa, rude, desabrida e pesada, sem cor nem recursos linguísticos, com o garbo de um carroceiro e o estardalhaço de um sarilho na taberna.
Nunca suportou ser contrariado. Quando se candidatou à presidência do Parlamento Europeu (e perdeu para Nicole Fontaine), disse que os deputados tinham preferido votar numa "dona de casa". E há uns meses (não muitos), quando azulado de cólera apelou à violência contra o Governo e o Presidente da República, guardou uns insultos para os comentadores que não gostaram. Nunca admitiu que o fizessem para expressar uma discordância legítima, em resultado de uma inteligência própria e de uma diferente interpretação dos acontecimentos. Discordaram, escreveu Mário Soares, para "especular", "ao serviço do poder", e "para ganhar dinheiro".
Em 1986, quando se candidatou pela primeira vez à Presidência da República, Mário Soares chamou as "notabilidades" da época. Do mundo do futebol falou-se de muita gente, mas o mais "notável" (lembro-me bem, porque já me repugnava pelos projectos medonhos que desenhava) foi Tomás Taveira, que andava em namoro com a direcção do Benfica por motivos de um estádio, e encheu tempos de antena com aquele paleio aldrabão e cabelos soltos, pose marialva, frente ao ascoroso edifício das Amoreiras.
Eusébio não apareceu. Nem nessa altura nem noutra, porque Eusébio sempre fez - muito bem - o que lhe coube, e nunca falou de política. Competiu em partidas de futebol, porque era a sua profissão; e em protagonismo com o dr. Mário Soares, sem esforço e sem vontade, porque Soares não conseguiu associar-se ao seu nome nem conseguiu interpretar as coisas de outra maneira. O rancor foi ganhando volume naquela vaidade sem medida, e nenhuma oportunidade é melhor para aplicar um golpe no adversário do que apanhá-lo... morto.
Aconteceu hoje. O espectáculo repelente não desiludiu ninguém: foi baixo, como é marca do artista, vingativo como um filho mimado; vil como a sua prosa, confundindo (Soares sempre confundiu) coragem com desconsideração; ambíguo como julga que é próprio da alta política; cobarde como há muito não se via - mesmo em Portugal.
Soares disse que Eusébio era "modesto", "pouco instruído", "com pouca cultura", e "não se esperava dele que fosse um pensador". Fosse Eusébio comunista, ou lunático do PREC, e Soares (dominados os maus fígados) tê-lo-ia bajulado com encómios estremecidos, exigindo que o seu peito não descesse a enterrar sem uma dose apreciável de quinquilharia dourada - por serviços à Pátria. Mas Eusébio distinguiu-se no desporto, onde o mérito é possível de medir. Sabe-se (nenhum letrado contesta) que não está no mesmo plano das proezas intelectuais.
A Al Jazeera e a CNN dedicaram-lhe reportagens. O Governo decretou, pela morte de Eusébio, três dias de luto nacional. No facebook houve logo quem se mostrasse desagradado. Quem pensa que os "humanistas" se distribuem pelos partidos, pelas "plataformas", pela "academia" e pelos fiéis das "ciências" sociais - é porque nunca deu uma volta no facebook, onde o "humanismo" (solto das limitações e dos compromissos de quem tem responsabilidades políticas) mostra os contornos extravagantes que atingiu, em níveis estratosféricos de pureza e intensidade. Um "humanista", quando "sério", opõe-se ao "populismo" e não engole um herói do futebol. Herói que é para ser respeitado tem de vir do "pensamento", dos "valores", da "cultura", ou da "revolução". Naquela arrogância de beatos, na admiração analfabeta pela "academia", no orgulho da virtude que se atribuem para se sentir maiores, e nos feitos dos outros sempre encontrar insuficiências, gostam da "igualdade" teórica, conceptual. Amam a "igualdade" enquanto for abstrata, enquanto for "nobre", e por isso intangível, saco para todas as recusas. Detestam o fenómeno real, que os agarra pelos pés e os faz descer do paraíso seguro das "ideias", onde nada os compromete, à imundície banal das pessoas - esses animais que os esperam, matreiros, vulgares, e mal cheirosos, com toda a espécie de riscos. Um "humanista" casto não digere um herói popular, acima de tudo, porque um herói popular nunca precisou de um "humanista" - nem nunca deu conta que ele existisse.
O país vai unir-se numa homenagem a Eusébio - sentida, franca, e grata. Será comovente. Não é obrigatória.
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