O "pensador" português é, por tradição, um tipo ágil. Assistir às suas surpreendentes evoluções é um espectáculo privilegiado que suspeito não estar ao alcance do espectador de outra nacionalidade. Nesse capítulo, tivemos sorte e devemos estar agradecidos.
Fátima Bonifácio
Anteontem no Expresso da Meia-Noite a professora Fátima Bonifácio, "especialista em séc. XIX", confirmava com segurança que nunca tinha havido liberalismo em Portugal. Estranhei. Peguei no comando da televisão e carreguei no botão de "parar". À minha frente ficou uma imagem da senhora, ufana, com a boca aberta, os beiços tensos, sobrancelhas subidas e os olhos semi-cerrados - o que não sei interpretar. Talvez fosse a expressão da sua superior capacidade académica. Ou apenas o efeito da coincidência: interrompi-lhe o processo de lubrificação daqueles irrequietos globos oculares. Mas com ela assim, calada e paradinha, fiz as contas: de 1834 até 1910. Usei os dedos, para me certificar. Sim, estava certo, eram 76 anos. Carreguei noutro botão, e aquilo andou outra vez.
Já estava fidelizada: o Expresso da Meia-Noite, a par com a Quadratura do Círculo, destaca-se entre os programas de humor e entretenimento mais competentes da televisão portuguesa. E aquela comediante prometia. Os melhores "pensadores" fazem-no sempre em directo. Energicamente. Em movimentos mentais flexíveis, rápidos, contentes. Parecem carpas. Olham para uma premissa inesperada e atiram-se a ela com convicção. Por exemplo: "Eu, como liberal que sou, no sentido clássico do termo, dou muito valor à responsabilidade individual". Depois correm para outro ponto do lago e abocanham outra ideia: "Os portugueses têm de perceber que realmente se excederam. E que estão a pagar por isso". Dão ao rabo, como quem dá uma gargalhada, o que lhes altera a trajectória. Parece um percalço, mas não é (já me apercebi).
Dirigem-se com uma precisão milimétrica para a figura seguinte. Tomam balanço e arrancam o primeiro salto. Sem medo: "Em relação às privatizações tenho mixed feelings, devo dizer". E o salto evolui, roda sobre um eixo, continua a subir: "Pelo lado do serviço público, se for só público e propriedade do Estado, tende a burocratizar-se". E a descida para o mergulho, num ponto que a plateia raramente consegue prever, vem com a conclusão: "Porque não há, de facto, o acicate do lucro que obriga os patrões a andar em cima dos empregados e a fazê-los funcionar mais produtivamente". Lá está: aquela voltinha do "acicate do lucro" é que concentra toda a subtileza do movimento. Quem assiste não tem tempo para temer o embate. Mesmo sabendo que nem sempre corre bem, e que lhe pode atirar um jacto de água verde para cima das calças: "Infelizmente, a natureza humana não é perfeita e às vezes precisa de uns encontrõezinhos, de uns electrochoquezinhos, para a coisa andar melhor".
Foi lindo. As roupas do espectador ficaram todas molhadas, mas compensa largamente a elegância e a alegria do bailado. Não acaba aqui. As carpas, se lhes dá para dançar, só param quando exaustas ou lesionadas. Ainda não era o caso. Mais umas voltinhas e, sem dar tempo para a merecida salva de palmas, o entusiasmo da brincadeira depressa endireitou a balística rumo à premissa seguinte: "Por outro lado, se há um serviço público servido por uma empresa privada, o lucro sobrepõe-se a tudo". E largam por ali acima, para mais uma pirueta de grande domínio técnico e superior capacidade artística. Opondo-se, com muito treino, às leis da atracção da matéria, sobem a alturas sempre surpreendentes: "O lucro sobrepõe-se à qualidade do serviço". No ponto mais alto da evolução, rodam sobre si mesmas: "Dito isto, só sou capaz de responder casuisticamente".
Depois desta elevação, fica a curiosidade sobre o estilo da descida e a localização da aterragem. Precipitam-se por ali abaixo, rodando desaustinadas, já sem controlo aparente: "Por exemplo, sou totalmente contra a privatização dos correios. Ofende a minha consciência histórica". Nem sempre acertam no lago; frequentemente, falham a pontaria e caem duras em cima do lioz: "Os correios foram uma forma de apropriação territorial por parte do Estado português. Acho um ultraje, uma coisa outrageous, não suporto". Por vezes, ficam a contorcer-se na pedra e quando são socorridas já não há nada a fazer. É quando aterram de focinho: "Os correios são qualquer coisa cuja privatização me desencadeia uma crise identitária".
Ricardo Arroja
Parecendo que não, na blogosfera também se encontram alguns artistas promissores. Mas precisam, regra geral, de mais treino. Vamos por partes:
“O Estado Novo foi um período de enorme convergência para os padrões de vida de uma Europa mais rica, tendo o PIB per capita português passado de 30% da Europa rica em 1930 para mais de 50% imediatamente antes do 25 de Abril. Desde então, no espaço de outros 40 anos, a convergência não foi além de 10 pontos percentuais, de 50% para 60% do norte da Europa. E desde 2000 tem sido até uma história de divergência económica, ao ponto de hoje estarmos pouco melhor que em 1974” (p. 150).
Esta parte é um bocado aborrecida. O espectador não absorve, segundo Pirandello, mais do que uma linha de algarismos. Perdoemos-lhe o zelo: Ricardo Arroja é um artista jovem, e cuida que a apresentação de números credíveis, e até "politicamente incorrectos", lhe garante a afluência de uma plateia cujo nome, mesmo pertencendo a uma família de reputados profissionais do ramo circence, ainda não seduz. É uma questão de tempo, tenho a certeza. Porque exibe o talento que manifestamente lhe corre no sangue.
Lá vai praticando as suas piruetas: "Juntamente com o período do Marquês de Pombal, o Estado novo foi dos períodos onde as contas nacionais estiveram em ordem e a economia teve boas prestações". E depois inflecte, já dominando alguns conceitos cénicos: "Períodos não-democráticos com certeza." E a seguir avança para um salto, que considero ainda meio tosco: "O que nos leva a considerar que as pressões democráticas das massas contribuíram consideravelmente para o actual descalabro". Enfim: não estaria mal. Mas falta-lhe requinte e o elemento "surpresa".
Não basta ao aprendiz de comediante a originalidade de ignorar olimpicamente os motivos do comportamento das contas portuguesas nos anos do Estado Novo, passando por um período em que se compara com uma Europa quase toda destruída pela II Guerra. Admiro a coragem dramática com que remove do guião o facto do dr. Salazar ter de arranjar dinheiro para pagar a guerra de África. Não cede à tentação de explicar que Portugal foi um dos países fundadores da EFTA, em Maio de 1960, o que deu a sua ajuda. Nem que a EFTA, ao contrário do que veio a acontecer com a CEE, não estabelecia limites à liberdade de cada país decidir sobre os impostos a cobrar pelas suas importações. Nem sequer passa perto do facto das leis do "condicionamento industrial" terem sido levantadas por Marcelo Caetano, bastante mais tarde, porque o dr. Salazar não via com bons olhos a livre concorrência entre as empresas.
O domínio da história económica é um ponto a favor de Ricardo Arroja. Dá-lhe uma elasticidade plástica muito favorável ao espectáculo sempre refrescante do livre "pensamento" português. Aguardemos as próximas exibições. Acredito que o caminho do estrelato não lhe será penoso, e não teremos que esperar muito até que seja convidado para fazer parte de um "elenco de luxo" no palco do prestigiado Casino de Carnaxide.
O Conselho Científico do Gremlin Literário torna pública a tese de doutoramento do seu colaborador José Sezinando, que tive o prazer de orientar pessoalmente, e que foi aceite esta semana pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Clássica de Lisboa onde obteve a classificação de "summa cum laude".
"VESTIR
PARECERES & NÓTULAS A UM EXEMPLAR ENSAIO VERSANDO A MODA E DECORRENTES MALEFÍCIOS, COMUNICADAS POR JOSÉ SEZINANDO, HOMEM DE CULTURA VASTA, PORÉM CONFUSA.
Seja como for - e é-o, sem dúvida - Thoreau recomendava prudência perante "todos os empreendimentos que exijam o envergar de roupas novas". Não é, porém, menos exacto que, quando Sócrates, agonizante, lembrava: "Cryto, devemos oferecer um galo a Asclepius; não te esqueças de tratar disso", o filósofo grego se ocupava dum assunto que não vem a propósito (1).
Oferecerá dúvidas o interesse da questão?
Almeida Garret, sempre dandy, vestia calções à inglesa - e a inglesa ria-se muito enquanto ele lhos vestia. Os 12 Pares de França usavam doze pares de meias (2). Ninon, provavelmente, foi de Lenços, e só uma corruptela a crismou. As onze mil virgens trajavam vestidos até ao chão e sem decote (3). Os bordados da Madeira estão sujeitos simultaneamente à traça e ao caruncho. Tentar evitar a hipofilia duma senhora de redingote é inútil: do riding-coat à redingote veio um passo. Ao declararmos que reprovaríamos uma mulher escassamente vestida, queremos subconscientemente confessar que a re-provaríamos - que a provaríamos duas vezes.
Verifica-se, assim, que a elegância está inextricavelmente associada aos sucessos históricos, artísticos, económicos, políticos, éticos (4). A moda faz o homem da sua época. Como se depreende do apelido alemão e do sobriquet francês, Beau Brummell foi o mais célebre janota da Inglaterra. Mas foi-o apenas porque usava água-de-colónia "Beau Brummell". E uma mulher é mais mulher se usar o perfume "Femme" (5). Henrique IV de França terá realmente mandado chacinar os huguenotes? Ou terá apenas resmungado, entre dentes - e daí esse comentário ter sido mal interpretado - que queria abolir os capotes? Se Richelieu era tão pouco espirituoso, porque razão se falará tanto no "ponto" Richelieu? Sabê-lo-iam os três mosqueteiros (6)?
Terá certamente o leitor notado que grande parte da exemplificação expendida se reporta a figuras da história francesa. Não foi por acaso. A afirmação de que a França é a pátria da moda não pode ser rebatida (7).
Atente-se em que são de origem francesa os vocábulos toilette, bâton, bathyscaphe, rouge, madame, banlieue, décapotable, dior, rigolo, camembert. Tomando estas 10 palavras como uma amostragem típica da língua francesa, verifica-se que 4 dizem respeito à coquetterie. O rigor da análise estatística revela-nos, pois, que 40% dos vocábulos do idioma de Madame de Sévigné se relacionam com os atavios e o embelezamento.
Em contraste, este exame mostra-nos que nenhuma destas palavras é dinamarquesa: na Dinamarca é portanto 0% - ou seja, inferior àquela em 40% - a percentagem que investigamos. Noutros países europeus, a percentagem não chega a atingir uma média. Resultados diferentes se obtiveram, é certo, na Austrália, mas isso é levar as coisas longe demais: a estatística não pode abstrair da Estadística ou ciência do Estado, como já entre nós preconizava Sebastião José de Carvalho (8). Isto para não aludirmos ao nível atingido por este índice no País de Gales, demasiadamente significativo para ter qualquer significado (9). E, se remontássemos à antiguidade clássica, aperceber-nos-íamos de que na Grécia, ao contrário do que sucedia em Roma, se empregava correntemente a expressão "em Roma sê Romano" - observação esta que nos leva a abandonar prontamente a antiguidade clássica a que havíamos remontado (10). Esta pesquisa, aliás, bem poderia recuar até à Lei das 12 Tábuas (11).
A celebrada batalha entre os sexos atinge particular violência no domínio do vestuário. Disputas e questões constantes não lograram, até hoje, apurar se á a mulher ou o homem quem mais se arranja, mais se trata, mais se lava (12). O problema coevamente tornou-se extensivo às próprias crianças (13): os anúncios de pasta dentífrica representam um sorridente casal com filhos, donde decorre por um lado a perfeita inocuidade do produto e por outro lado a sua ineficácia contraceptiva; os bazares de brinquedos vendem resmas de "Harper's Bazaar" à sua específica clientela; nos casamentos elegantes, a toilette da noiva é tão rigorosa quanto a de seus filhos que lhe pegam na cauda (14).
Os resultados deste precedente repercutir-se-iam validamente na circunstância determinante da causalidade condicional, com incidências colaterais no ambiente em que se processava, do mesmo passo, o estádio ecológico a que poria termo - ilusório, aliás - o alternado sobrelevar dos caracteres mágico-sociais que Schlimmel teorizou pertinentemente num escorço porreiríssimo (15).
Cabe, neste ponto, fazer um indispensável parênteses. Ei-lo: ( ). E prossigamos:
O axioma teutónico "Übung macht den Meister", se não significa "pelo andar da carruagem se vê quem vai lá dentro", significará pelo menos qualquer outra coisa (16). Na verdade, não desapareceu ainda a crença de que a cada grupo ou classe social corresponde necessariamente um tipo definido de vestuário, espécie de índice exterior de casta (17). Pelo traje se distinguiria um banqueiro de um contínuo, um cantor de ópera de um camponês, um oficial do Exército de uma freira.
Mas esta teoria não só tem vindo gradualmente a ser abalada pela evolução social, como o seu emprego concreto é frequentemente falível: como diferenciar, com base nela, as estirpes de duas mulheres em bikini? E quem se lembra de querer diferenciar as estirpes de duas mulheres em bikini (18)?
Resumindo: este critério, sobre ser regressivo, poderia quando muito ser aplicável com bom-senso, com imparcialidade, com auto-crítica (19). Ao leitor se recomenda o maior cuidado (20).
Afirmar o contrário não é mais do que patentear que se desconhece inteiramente o problema das relações entre moda e sociedade. O que é quase tão vexatório como confundir Henry James com James Joyce com Joyce Cary com Cary Grant com Grant Wood, ou "O 93" com "Os 45" de Victor Hugo von Hoffmannstahl ou Denys de La Valière com Louise de la Pâtelière ou Schiller com Max Scheller com Max Schmelling com Max Weber ou Jean Maurois com Maurice Barois com André Siegfried de Wagner ou Pierre Emmanuel do Nascimento ou John Dos Paços d'Arcos.
JOSÉ SEZINANDO
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(1). É esta, pelo menos, a opinião de Kraft-Groppell. Em sentido contrário, consulte-se a tese de Groppell-Kraft.
(2). Tudo leva a crer que os 12 Pares de França, quando visitaram Portugal, pernoitaram na Casa dos 24.
(3). A cada par de França competiam 916,6 virgens, ou seja 458,3 a cada meio par. Pode o leitor verificar:
P/2 x 11.000 V = 12 x ᶍ V
ᶍ = 458,3 V
(4). Não chegou a pronunciar-se concretamente sobre este assunto o italiano Luigino Marocutto (1903-1905).
(5). Algumas têm a "Femme" e o proveito.
(6). A cada virgem correspondia 0,00027 de mosqueteiro. Reconheça-se que não era muito. Em compensação, segundo Júlio Verne, cada uma tinha 1,8 léguas submarinas.
(7). A não ser com a afirmação de que a França não é a pátria da moda. Mas, argumentando desse modo, nunca mais daqui sairíamos.
(8). Mais tarde Sebastião José de Carvalho e Melo.
(9). Lawrence e Santos, concordando nas premissas, divergiam nas conclusões e acabarm por ceder as quotas na sociedade.
(10). Cf. Heródoto, "A Retirada dos 10.000" - em ralação aos quais apenas 1.000 virgens sobejavam. Os tempos eram outros.
(11). Cada um defrança tinha meia tábua.
(12). Eruditamente, Ana Plácido dizia a Camilo: "O homo lava mais, Branco".
(13). Simone de Beauvoir, em "Le Troisième Sexe", não versou este problema. Teve toda a razão.
(14). Poder-se-á talvez dizer que este argumento é a posteriori.
(15). Sobre Schimmell poderão os interessados reler, com proveito, esta frase.
(16). "Por que é que vais com quem, quando, para onde?" - costumava perguntar Wagner ao Grão-Duque do Schleswig-Holstein. Nunca obteve resposta.
(17). Sobre Casta, consulte-se Suzana.
(18). A designação do próprio tecido pied de poule não pode ser tomada au pied de la lettre.
(19). Exemplo de auto-crítica: "O teu automóvel está pintado duma cor muito feia".
(20). Ou, como sustentam os penhoristas: todas as cautelas são poucas."
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(Publicado na revista "Almanaque", Dezembro 1960 - Janeiro 1961)
Na intensa e permanente propaganda pró-UE, as Quatro Liberdades (uma formulação com ressonâncias maoístas) são apresentadas como uma conquista - mais uma - no longo e glorioso caminho da "construção europeia".
São elas, relembrando, a de movimento de produtos e mercadorias, de serviços, de pessoas (incluindo trabalhadores) e de capital.
Não viessem estas liberdades acompanhadas de um super-estado com uma crescente burocracia centralizadora, interventiva e legislativa; e não fosse já evidente que a Europa não é a das Nações, mas, crescentemente, a de um Directório, e, tendencialmente, a de um país; e sendo patente que, nas relações entre Estados, tal como na relação entre as pessoas, quem parte e reparte escolhe a melhor parte:
Estas quatro liberdades valeriam a pena. Mas o preço que se paga e o que se adivinha é cada vez maior, desde logo porque a liberdade principal de um país pequeno e pobreta como o nosso, que é a de gerir as suas dependências, não apenas desapareceu por força da bancarrota, como não se lhe vê o regresso, mesmo para lá do momento em que o País atinja o fundo que incessantemente parece mais fundo.
Não é que estas cogitações interessem muito: a classe dirigente é pela sua maior parte europeísta, o que quer dizer nas nossas circunstâncias concretas Eurista; o acumular de problemas e impotências facilita o aprofundamento da integração - qualquer solução parece uma solução; e não será a mesma classe que criou o monstro que o há-de liquidar - nem os políticos nem os burocratas são adeptos do hara-kiri.
Mas isto é entre nós. Noutras paragens, a propósito de assuntos menores, o Estado arreganha os dentes aos seus cidadãos que querem ir pastar para mais verdes prados - circula à tua vontade mas deixa ficar o arame. Se a intimidação não resultar, a solução que já generalizadamente se defende é a harmonização fiscal. Por cima, já se vê.
Mas não é provável que quem quer e pode ter impostos relativamente mais baixos esteja disposto a abrir mão da vantagem competitiva; nem que, com mais ou menos barulheira mediática, os cidadãos se deixem alegremente espoliar.
Isto é uma grande maçada: Todos os impérios se fazem com grandes proclamações e o bruxelense não é, neste particular, diferente. Mas a Europa escolheu a democracia e a liberdade como pedras angulares. E alguns cidadãos e alguns países não as veem como a democracia dos escravos do Estado e a liberdade de obedecer e abdicar.
Pelo que o affaire Depardieu, a mim, parece-me mais um sintoma que um fait-divers. E, para acabar o ano numa nota positiva, um sintoma de que a resignação não é o estado de alma ubíquo que a nós nos parece ser.
Não funciono em concordância com o ano civil. O ano letivo marca para mim, muito pessoalmente, o ritmo dos meus descansos, recomeços, avaliações, propósitos e projetos.
Esta minha dessintonia talvez justifique o contra-ciclo com a habitual "ronda" que agora começa e em que se elencam os "top" de tudo - acontecimentos, música, livros, desporto, fotografias,...- e se elegem (e-democraticamente) as personalidades do ano - melhores, piores, vivas, mortas, do cinema, da política...
Mas parece de facto que há uma "onda" que cresce, uma "tradição", que nos impele a "fechar o ano" para o arrumar como completo e finalizado no dia 31, e assim ficarmos livres para começar de novo, na manhã do dia 1: "2012 foi assim, foi o ano disto, marcado por tal e agora acabou. Prontos para um reset?".
Mas a vida não é toda para adiante. Há imensos fios que nos prenderão sempre ao já passado. É tudo muito mais contínuo, não se fecha, não acaba. O passado prolonga-se em nós, na vida de cada um, na vida do país e do mundo, e nada se "fecha", se cristaliza, se encerra - acho que nem mesmo a morte.
A verdade, portanto, é que valorizo muito isto de fazer memória do que somos, decidimos, escolhemos e vivemos. Percebo que é necessário ordenar ideias, re-situar, olhar para a frente e seguir.
Seja, por isso, em setembro ou dezembro - ou na data que vida de cada um dita - é bom olhar para trás, antes de voltar a olhar para frente,
E fazer isso muitas vezes, não só porque é sinal de vida, mas porque a continuidade é assim mesmo, leva-nos por aproximações tão curtas que parece que não estamos a sair do mesmo ponto. Mas estamos. Estamos sempre.
Ao pequeno-almoço, havia bolo-rei. E durante algum tempo lembrar-me-ei da iguaria, porque me partiu um dente.
Nada de mais, pensei: levo o carro à oficina (por causa de um assobio fortemente suspeito na caixa da direcção), o cachorro acompanha-me (gosta de andar de carro, coitadinho), regresso a pé, pego no chaço de reserva e vou ao protésico. Daí, ala para a esplanada - está um dia lindo, leio o jornal, vejo os feeds.
Chamo o cão: Bule! Bule!
Nada. O puto do cão enfia-se nos carros à menor distracção, hoje nem sinal. Bom, entro e dou ao dimarré.
Reacção nicles, modernamente as baterias regem-se pelo princípio da morte súbita.
Mudo de opinião: que se lixe a oficina, vou mazé a pé até à cidade, passo pelo protésico, são aí uns 6 km, está um dia lindo (já disse), há-de haver um amigo qualquer que me traga a casa.
Lá vou. No percurso, o primeiro café - a empregada comprou há anos a tese de que sou especial, devo ser atendido de imediato e pagar ao balcão, sem ir para a fila da caixa.
Não está, a Glória. Está uma simpática desconhecida, que imagina que os clientes devem ser atendidos por ordem de chegada - é, com certeza, de esquerda, igualdades e assim.
Chego à esplanada, mas constato com surpresa que não há cadeiras nem mesas. Está fechado, o estabelecimento. Por conseguinte, nada de wi-fi, jornal, café e amigos.
Regresso a pé: é sempre a subir, que grande chatice, ainda por cima uma precisão súbita de ir ao quarto-de-banho, assunto de alguma substância, fora de casa não.
Chego esbaforido, a andar ligeiro mas constrangido, uma contradição nos termos.
E venho aqui contar a história, para dizer que 2012, que não foi grande coisa, vai-se encerrando sem deixar saudades.
Um Bom Ano para os maduros que, por razões misteriosas, me têm feito companhia.
Na imagem, o ambiente de consternação vivido na cantina do estabelecimento prisional onde os colegas do Baptista assistiram, na sexta-feira passada, à transmissão do "Expresso da Meia-Noite".
Destaque:
«A ONU defende a renegociação da dívida, senão o ajustamento será devastador para a economia portuguesa. Passos e Gaspar não leem nem ouvem a ONU?»
Texto:
«Artur Baptista da Silva é um ilustre desconhecido para a maioria dos portugueses. Mas não devia ser um ilustre desconhecido para o Governo. Em primeiro lugar, porque coordena a equipa de sete economistas que o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, decidiu criar para estudar o risco geopolítico e social na Europa do Sul como resultado dos programas de ajustamento. E em segundo , porque é ele que ficará encarregado do Observatório Económico e Social das Nações Unidas para a Europa do Sul, a instalar em Portugal a partir de 2013.
Quais são as razões que levam a ONU a estar preocupada com o ajustamento nos países do Sul? Por um lado, a Europa, que tem sido uma grande zona de paz social, está agora a ser confrontada com uma mancha de desconforto no Sul que pode gerar a passagem, "por osmose, dos problemas do Sul para o Norte". E a tal mancha de descontrolo assenta no aparecimento, em países catalogados como ricos, de bolsas de pobreza, que atingem milhões de pessoas. Segundo as contas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em Portugal existem dois milhões de pessoas que vivem com menos de 7 euros por dia, o limiar da indigência. E no limiar da pobreza, menos de 14 euros por dia, estão três milhões de pessoas.
Por outro, os sete economistas passaram, todos eles, por países onde processos de ajustamento semelhantes foram levados a cabo, "com resultados tenebrosos", na opinião de Artur Baptista da Silva.
Tendo por pano de fundo estas razões, a ONU propõe então a renegociação da dívida acumulada pelos países sob intervenção externa e que os está a asfixiar. Neste sentido, os sete economistas analisaram os fundos estruturais a que estes países tiveram acesso, mas que obrigavam a um cofinanciamento nacional, e chegaram à conclusão que 41% do total da dívida soberana portuguesa, que de 1986 a 2011 soma €121 mil milhões, resultam precisamente dessa obrigatoriedade e não de decisões políticas internas ou de políticas económicas erradas. Defendem assim que o Banco Central Europeu refinancie esta parte da dívida a vencer à taxa de 0,25% por um prazo de dez anos, bem como a suspensão do artigo 123 dos estatutos do BCE por uma década para que a instituição possa comprar dívida soberana no mercado primário. Portugal pouparia assim €3,1 mil milhões com esta operação.
A segunda proposta é que a troika aceite um desconto global de 15% sobre o total dos juros a pagar, na casa dos €34,4 mil milhões, pelo empréstimo que nos foi concedido de €78 mil milhões. Este montante de juros é superior a 40% do total do empréstimo, o que "é um absurdo para um fundo que se diz de assistência."
Finalmente, a parte do FMI no empréstimo a Portugal usa os Direitos de Saque Especiais (DSE), que estão indexados à cotação de quatro moedas. A penalização cambial de Portugal entre 2011 e 2015 é estimada em 12%devido à valorização do euro em relação àquelas moedas(dólar, euro, iene e libra esterlina), num total de mais de €2 mil milhões. A ONU propõe a renegociação com o FMI desta penalização cambial.
Conclusão: a ONU, que suponho não não pode ser acusada de estar contra o Governo, defende que Portugal tem de renegociar a sua dívida, pois de outra maneira o processo de ajustamento terá consequências devastadoras para a economia e para a sociedade portuguesas. Será pedir muito a Passos Coelho, Vítor Gaspar e Carlos Moedas que leiam a entrevista que Artur Baptista da Silva deu ao caderno de Economia do Expresso a 15 de dezembro?»
Nicolau Santos, publicado no jornal Expresso, a 22 de Dezembro de 2012
(À data da publicação deste post, o texto foi removido da versão online do jornal.)
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Nota: SOS de apoio ao post "Vigiados por um farsante".
Não sabemos se o nome dele é, de facto, Artur Baptista da Silva. Apresentou-se como Economista, coordenador de um observatório das Nações Unidas, consultor do Banco Mundial, doutorado e docente numa universidade americana que não existe (Milton Wisconsin University?). Bateu à porta de uns sindicatos, onde não lhe deram crédito. João Vieira Lopes, presidente da Confederação de Comércio e Serviços, "recebeu em mão algumas páginas" de um "estudo" sobre a crise em Portugal e convidou-o para ser orador numa conferência no Grémio Literário.
Não chegou de Saturno: aparentemente, o Baptista chegou de um processo na justiça portuguesa, em que foi condenado por burla a uma empresa onde trabalhava nos anos 80. Detalhe que passou despercebido ao cocuruto do nosso jornalismo, que se apressou a consultar as suas opiniões sobre a crise em Portugal (com ênfase nas "consequências sociais" da aplicação do "programa de ajustamento"). Foi entrevistado por vários jornais, rádios, e estações de televisão, e o Baptista transformou-se rapidamente numa referência incontroversa.
Falava sempre em nome da ONU; "nós" isto, "nós" aquilo, e foi assim que Nicolau Santos redigiu fundamentados artigos de opinião que publicou no Expresso, repreendendo o governo português por não saber quem era o Baptista e por não dar a devida atenção aos experimentados "alertas" que o Baptista emitia.
Não satisfeito, Nicolau Santos quis dar a devida projecção ao génio que a ONU lhe mandava entregar em casa, e convidou o Baptista para o "Expresso da Meia-Noite" a fim de que todos os portugueses ficassem cientes daquilo que os seus pastores insistiam em ignorar, na maior irresponsabilidade. Durante cinquenta minutos, Nicolau Santos interrogou o Baptista, concentrou-se no que ele disse, debruçou-se encantado sobre as frases do Baptista, e (segurando o queixo que se lhe soltava de admiração) esclareceu o país.
Emitido o programa, varridos os estúdios da SIC, e resguardadas as suas instalações dos olhares ainda perplexos dos telespectadores, alguém desconfiou. Resolveu fazer uma pesquisa no Google e meia dúzia de telefonemas. Concluiu (e duvido que tenha demorado mais de meia hora) que, tanto na ONU como no Banco Mundial, ninguém tinha ouvido falar no Baptista, o observatório não existia, e nunca tal "estudo" tinha sido feito.
Há muito tempo que o jornalismo "especializado em assuntos económicos" não se recomenda pela sua lucidez e seriedade. Mas dificilmente se esperava que, em menos de 48 horas e pela quadra do Natal, nos fosse oferecida a revelação de um rematado farsante. Não me refiro ao Baptista.
Gérard Depardieu não construiu a imagem (nem a carreira) com base na discrição. E numa maré em que outros deram e dão passos o mais possível discretos, Depardieu resolveu pôr a boca no trombone, não hesitando em ameaçar devolver o passaporte francês. Gesto inconsequente porque, para evitar o pagamento de impostos, suponho que não se faz mister abandonar a nacionalidade - quando muito adquire-se uma nova, e mesmo isso apenas se for necessário ou se conferir vantagens no domicílio de adopção.
Mas o dramatismo e a barulheira do gesto são neste caso não apenas de interesse do público, mas também de interesse público - Deus escreve direito por linhas tortas, como se diz.
Importa saber: pode um Estado, em tempo de paz, cobrar sobre o rendimento pessoal de um cidadão 75 ou 85%?
Das notícias que vieram a lume percebe-se que Depardieu co-fundou empresas que empregam à volta de 80 pessoas; e que os seus rendimentos advêm, além do seu próprio trabalho, de negócios legítimos nos quais, explícita ou implicitamente, explora a imagem - a imagem dele.
Todas estas actividades são objecto de impostos, directos ou indirectos, sob a forma de IRC, IVA, etc. E os 75% incidem sobre o que, do que sobra, lhe chega às mãos.
Ao rendimento líquido (após o esbulho dos três quartos) Gérard poderia dar três destinos: ou investir - actividade que, por definição, não é isenta de riscos e que pode de imediato dar ela própria origem ao pagamento de impostos, como nos investimentos em imobiliário; consumir - mas é impossível consumir sem pagar impostos sobre o consumo, aliás exorbitantes em se tratando de luxo, vício ou combustíveis; e aforrar - mas o rendimento do aforro é penalizado com tributação autónoma.
Quer dizer que se está, nos países pilotados por dementes, a querer construir uma sociedade nova: os muitos ricos podem viver bem e acumular algo não superior aí a uns 5% a 10% do rendimento. O resto não é deles, que o ganharam; é da comunidade, administrado por um Estado obeso e uma Administração iluminada, que julga poder eternizar-se no Poder pelo expediente de, cobrando desmedidamente a uns poucos, ter meios para comprar o voto da imensa maioria.
Se isto pudesse funcionar, isto é, se restassem na mão dos privados os recursos e a vontade de investir, teríamos uma sociedade sem os muito ricos, mas conservando a competição e o dinamismo típicos do capitalismo eficiente; e os antigos ricos, agora remediados, desempenhariam o mesmo papel que o dos apparatchicks nos regimes comunistas - uma casta relativamente privilegiada.
Mas não pode funcionar: Os Depardieu fogem. E mesmo que não o pudessem fazer, não teriam os meios nem o incentivo para investir. Um homem rico é um homem pobre com dinheiro - e tem precisamente o mesmo instinto de trabalhar para si e os seus, não para a comunidade que, quando não o trata com indiferença, o trata com desprezo.
É por isto ser assim que há quem tenha o sonho impossível da criação de um Mundo sem lugares para onde se possa fugir. Os comunistas genuínos não sonham com mundos impossíveis: querem ilhas comunistas no mar capitalista, para nelas realizar a sociedade a caminho da perfeição, custe o que custar a quem custar.
Por mim, se tivesse que escolher entre um artigo deletério genuíno e outro sucedâneo, escolhia o primeiro - sempre poupava na hipocrisia e na inveja.
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