Chamar palhaços a Berlusconi e a Grillo, tal como tenho lido em artigos internacionais e nacionais portugueses é ignorar as necessidades muito humanas da sua existência. Dessas necessidades se alimentam os dois e cada um ao seu modo, com maestria.
Berlusconi é um homem perigoso socialmente. Um, talvez sociopata, preocupado apenas com a resolução dos seus problemas pessoais com a justiça, o poder económico das suas empresas e a sua capacidade de condicionar a vida política italiana, sempre em benefício próprio. Não há nele um átomo de “pensar no bem comum”. A maior parte dos italianos sabe-o e despreza-o tanto ou mais como o resto do mundo. Contudo, Berlusconi é um mestre na arte de manipular massas, um homem de televisão, de show, encantador e manipulador que sabe como poucos como tirar proveito de uma fraqueza humana. Qual? A espera do messias, do encantador de serpentes, bom contra todos e sempre vítima de inimigos ainda piores que ele. Vende soluções mágicas a cidadãos pouco ilustrados, sobretudo velhotes pensionistas e pessoas de baixa instrução que tendem a crer que apenas ele poderá resolver a miséria da sua vida. Não é nas classes mais abastadas que tem a maioria dos seus apoiantes, é nas classes baixas. Durante a campanha eleitoral enviou uma carta onde prometia a devolução do IMI italiano e formaram-se filas que entupiram os correios com pessoas que levavam o “formulário” de devolução contando receber de volta o imposto pago em 2012. Berlusconi, manipulou, sabiamente, a mente de milhões de crédulos e incapazes de perceber melhor. Pobres. Verdadeiros pobres.
A interrogação mais premente é: porque este homem vinga em Itália e no resto da Europa não há equivalente. Não há? Temos a certeza? Quantos políticos prometem este mundo e o outro e a faixa mais desfavorecida pela evolução acredita? Este é o mercado de Berlusconi. Em Itália é evidente, no resto da Europa não existe? O seu partido que ganhou o senado, recebeu nestas eleições menos metade dos votos que nas eleições anteriores. Uma melhoria, portanto. Quantos palhaços como Berlusconi há por aí? Em Portugal recordo-me de um, que sem usar o nariz de ovo, conseguiu duplicar a dívida pública em cinco anos incluindo comprar os votos dos funcionários públicos para ganhar as eleições em 2009. Mesma moral e capacidade de manipular massas em benefício próprio.
Para Beppe Grillo ainda há menos razões para o apelido palhaço. Três anos atrás, um cómico que é um homem de sucesso com uma carreira brilhante, percebeu que havia espaço para um movimento contrário ao sistema político, profundamente podre, italiano. Contra tudo e todos, mobilizou como nunca antes, milhões de seguidores insatisfeitos com o “status quo” que não são mais que gente comum. O seu discurso de “contra” é facilmente entendido por todos nós: os políticos são intrinsecamente corruptos, pensam apenas no seu próprio bem e devem ser controlados e impedidos de fazer mal social. Os italianos viram e vêm em Grillo, a possibilidade de substituir deputados e senadores que há décadas não contribuem para resolver problemas e impulsionar o país (onde já vimos isto?). O estado italiano é uma gigantesca máquina de sugar impostos com uma tremenda burocracia que condiciona fortemente toda a actividade privada. A Itália é um país fortemente empreendedor onde a maior parte da actividade económica depende de pequenas e médias empresa, que como já disse antes em outro post, são taxadas a 70% da sua actividade. Insustentável. O sofrimento destas pessoas, foi aproveitado, sem benefício pessoal, até agora, por um homem muitíssimo trabalhador e visionário que conseguiu congregar a vontade de mudar e a força de milhões de italianos que vêm um futuro negro à sua frente, e para os seus filhos, sabendo que o actual sistema é auto-alimentante de uma clique sugadora dos recursos dos impostos. Onde já vimos isto?
A Itália, país latino como nós, emocional e quente, membro do G7, uma das maiores economias do mundo, com um território e população de média dimensão, é uma potência mundial. Os italianos são dos povos mais cultos do mundo. O sistema educativo funciona e as pessoas em média têm um nível cultural muito bom. “Palhaços” a dois líderes que representam mais de 50% do eleitorado? Brincamos? Pois.
PS.: A propósito de Grillo, um bom post sobre o fenómemo, encontra-se aqui.
"Há um entendimento unânime de todos os partidos de que não é necessário fazer uma nova lei. Seria a única via, fazer uma nova lei, não há outra via', afirmou Assunção Esteves aos jornalistas".
"O provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, fez na terça-feira uma recomendação à Assembleia da República para que clarifique urgentemente as 'hipotéticas dúvidas' sobre a lei dos mandatos".
Um paisano lê uma notícia destas e pasma. A Senhora Presidente veicula a posição "unânime de todos", não fosse algum desprevenido cogitar se a unanimidade não seria apenas de alguns; e o Senhor Provedor, num acesso de precaução que o honra, queria que a Assembleia se desse ao cuidado de clarificar dúvidas que talvez venham a existir. Isto implica, nos deputados, além da clarividência que sem dúvida a muitos assiste, também dotes de vidência, necessária para efeitos de adivinhação de dúvidas "hipotéticas".
Sucede que nos jornais, nas redes sociais, nos partidos, nas declarações de candidatos, dúvidas sobre a interpretação da Lei de Limitação de Mandatos é o que não falta - agora.
Sobre a maneira de resolver o assunto disse o que convinha. Os senhores líderes dos partidos na Assembleia decidiram assim afrontar-me, ignorando com sobranceria a minha opinião.
Não vejo isto com bons olhos: se amanhã houver decisões judiciais opostas, por exemplo, no Porto e em Lisboa, alguns eleitores acharão que o Juiz A é do partido x e o Juiz B do partido y; ou que um é burro e o outro arguto; ou que são ambos burros; ou que são ambos umas cabeças mas os senhores deputados umas abéculas que pariram um texto que, em menos de uma página A4, criou uma enorme confusão; e haverá decerto quem nisto tudo veja intenções obscuras.
É certo que os tribunais têm notoriamente pouco que fazer; e que o Parlamento goza de um prestígio tal junto da população que se lhe perdoa com facilidade que faça, em matéria sensível como são as leis eleitorais, textos duvidosos.
Ademais, a Senhora Presidente fez questão de frisar que "só se legisla de novo quando há razões suficientes para isso, nós entendemos que não há, que o erro que foi detetado não foi decisivo".
Está, portanto, tudo bem. Já agora, se não fosse pedir de mais, talvez não fosse pior que os partidos esclarecessem qual é a interpretação oficiosa, detalhe que terá escapado. Esclarecimento, de preferência, unânime de todos.
Quando o muro ruiu e se pôde ver, quem já o sabia, quem o adivinhava e quem o negava, que do lado de lá havia acomodados, resignados e descrentes, no cenário decrépito do cemitério de muitas ilusões, houve quem julgasse que, enfim, talvez não se tivesse chegado ao fim da história, mas por certo ao fim daquela história. Puro engano: não foi só o velho Cunhal, inteligente e fanático, que viu no desenrolar das coisas a ingenuidade, senão a traição, de apparatchicks chegados ao Poder por acaso, e a longa mão do imperialismo; muitos outros viram a mesma coisa. E disseram para consigo que o socialismo tinha decerto sofrido um revés, mas que com uns retoques na prática política, outra gente, e a experiência dos falhanços, o sonho estava tão vívido como sempre desde há quase cem anos.
Num certo sentido, não se enganou Cunhal: a capacidade das pessoas para acreditarem no Céu na Terra não tem limites; e a força de uma ideia que promete distribuir a paz, o progresso, a segurança, a igualdade para todos, só se esvai quando, chegada a ruína, e passado um tempo de desnorte, trocam uma miragem por outra ou pelo conforto de ideias velhas.
A miragem dos nossos dias, nesta parte do Mundo, é a União Europeia, e o seu símbolo o Euro: paz eterna, liderança mundial do crescimento, igualdade dos países, os pequenos com o mesmo voto, e a mesma voz, dos grandes, solidariedade entre ricos e pobres... lembram-se? Lembram-se, claro, a retórica é a mesma, e os apparatchicks de Bruxelas, com o seu regime fiscal de excepção, as mordomias que não têm nos países de origem, as suas intrigas palacianas, a distância e independência da opinião pública, trombeteiam o mantra da "construção da Europa" todos os dias, até ao enjoo. E outro tanto fazem quase todos os que, porque nisso acreditaram, apostando as reputações e as carreiras, não podem, como Cunhal não pôde, negarem-se.
De vez em quando, um sobressalto: as eleições em Itália disseram, à superfície, que os Italianos não sabem o que querem, mas sabem que não querem a austeridade; e disseram mais profundamente, a meu ver, que sobretudo não engolem um gauleiter europeu, mesmo que italiano, para executar uma política que de alemã e bruxelense tem tudo porque quer salvar uma moeda estrangeira, e de italiana nada.
Não é que eles, como nós, tarde ou cedo, tenham muito escolha - mas ir pelo caminho dos espinhos porque tem que ser e não há outro remédio, é uma coisa; e ir por aí porque uns malditos diabos estrangeiros determinam e mandam publicar, é outra.
E ainda que eles e nós estejamos ainda sob o império da ilusão colectiva de uma geração, e seja talvez necessário um projecto alternativo no qual as pessoas possam depositar as suas esperanças e, talvez, as suas ilusões, as eleições italianas disseram, como já tinham dito os referendos que se fizeram para convalidar as engenharias de pátrias, que por aqui não vamos lá.
"Eles" não vão lá.
Uma lei eleitoral apelidada de “Porcata”, “Porcelllum”, ou em português “Porcaria” condiciona fortemente os resultados, ao atribuir um prémio de maioria à força política mais votada para a Câmara de Deputados, dando-lhe automaticamente 55% dos lugares e, um método de eleger o Senado em função de lugares atribuídos por regiões que retiram qualquer proporcionalidade à eleição para esta câmara. Esta lei foi publicada por Berlusconi em 2005.
Na actual situação, o governo de centro-esquerda, coligação mais votada, a ser nomeado pelo presidente da república poderá propor leis que até poderão vir a passar na Câmara graças à maioria forçada de 55% mas estarão condenadas a não passar no Senado se os senadores de Berlusconi as quiserem bloquear. Ingovernabilidade.
A lei “Porcaria” já deveria ter sido alterada mas graças à incapacidade de todos os partidos manteve-se em vigor. No fundo, cada um deles esperava vir a ser beneficiado pelo sistema, e em vez disso, foi criado o bloqueio. Como se resolverá? Nos próximos dias começarão a definir-se os novos equilíbrios mas uma aliança Berlusconi e Bersani parece altamente improvável e potencialmente muito instável. Grillo já disse que não se alia com ninguém e também já afirmou que espera por novas eleições em Setembro para subir o seu peso e poder finalmente governar a Itália. É possível que assim suceda e essa perspectiva servirá como pressão para que Berlusconi e Bersani se aliem mas, estes dois, estarão provavelmente condenados a não se entenderem, e em alternativa, caso se entendam, o governo sairá necessariamente muito fraco e incapaz de fazer reformas urgentes e profundas.
Como se chegou aqui? Como os principais intervenientes criaram a situação em que a Itália aparece tão dividida?
Berlusconi (PDL "Popolo della Libertà" e Legga Nord): este alcançou o resultado e fez a recuperação estrondosa em função de uma mentira demagógica óbvia. Prometeu que aboliria o imposto “IMU” (o IMI local) e devolveria tudo o que os cidadãos pagaram em 2012, em 2013, um mês depois de tomar posse como governo. A história da IMU é caricata, pois foi com a promessa da sua abolição, que Berlusconi ganhou as eleições em 2008 e, de facto, assim o fez. Em 2011, fruto da enorme pressão europeia e do aumento do“spread”, Berlusconi foi obrigado a reintroduzi-la. Em 2013 recupera e ganha o Senado, de novo com a promessa da abolição da taxa e devolução dos montantes pagos pelos contribuintes.
- Uma verdadeira lição de como o populismo demagógico é capaz de vencer os corações de eleitores menos preparados.
Beppe Grillo (Movimento 5 Stelle) : Grillo é a revolução democrática pacífica italiana. Um cómico, a quem poucos auguravam sucesso político, consegue mobilizar os descontentes de um sistema político terrivelmente malsão. Com primárias feitas por toda a Itália, Grillo conseguiu eleger cidadãos comuns com a missão de sanear os políticos “velhos” que são vistos como a origem de todos os males italianos. Grillo pretende referendar o Euro, controlar a imigração, atribuir um rendimento de cidadania a todos, e julgar em praça pública os políticos responsáveis pela corrupção e decadência italiana. Espetacular é também o facto de Grillo e o seu Movimento 5 Estrelas conseguiram o excelente resultado sem usarem a televisão como meio de campanha eleitoral. Apenas com a web, Facebook, blogs e praças públicas cheias de gente, Grillo mobilizou cerca de 25% dos italianos.
– Grillo disse ontem: “Onde nos sentaremos nas câmaras? Atrás de vós (os outros deputados e senadores) para controlarmos cada passo que dão”.
Bersani (PD "Partito Democratico" e SEL "Sinistra, Ecologia e Liebertà"): este é, no meu entender, o grande responsável pela distribuição tão dividida da votação. O PD, nas primárias que se desenrolaram em finais de 2012, teve a grande oportunidade de se constituir como alternativa, ao poder eleger como candidato a primeiro-ministro Matteo Renzi. Renzi, o jovem “sindaco” de Florença, aos 37 anos (um miúdo para os parâmetros italianos de ser político com sucesso) com um discurso muito liberal e de “reciclagem” da velha guarda do PD, tinha nas sondagens mais intenções de voto que Bersani. Mesmo assim, a velha guarda, boicotou Renzi de todas as maneiras possíveis e este não foi eleito. Berlusconi tinha dito que se Renzi fosse o candidato, não concorreria e, chegou inclusivamente a convidá-lo para concorrer com o PDL. Os descontentes também encontravam resposta em Renzi pois o seu discurso, em termos de propostas de alteração do sistema político era semelhante ao de Grillo, com a vantagem de vir de um partido político estabelecido no poder.
– Bersani fez uma campanha sensaborona sem qualquer brilho, própria de quem não tem mais que fazer que implementar a política de Bruxelas. Os italianos, pelo demonstrado, não querem isso.
Monti (Scelta Civica): assessorado pelo gestor de campanha de Obama que tentou introduzir métodos americanos numa cultura política profundamente diferente, obteve um resultado péssimo e desbaratou o capital de “super-partes” que tinha obtido com o seu governo técnico e com o qual conseguiu conter em 2012 a explosiva situação italiana. Com 10% dos votos nem é importante para formar coligação com o PD. Tornou-se irrelevante e pode dizer-se que por escolha própria.
– Monti é a prova de como o bom técnico não faz o bom político.
O pano de fundo destas eleições é um país profundamente desiludido consigo próprio onde os rendimentos estão fortemente em baixa por via da utilização de uma moeda não própria que não serve a robustez declinante industrial italiana e a dinâmica de uma economia muito fechada em si própria. De há 15 anos para cá o poder de compra das pensões reduziu-se em 30%, o desemprego está a subir, a produção industrial a cair e a pressão fiscal sobre as empresas a 70%.
"A grande maioria dos processos são interpostos por grandes escritórios de advogados, a maioria de Lisboa, que questionam a legalidade das acções praticadas pelos trabalhadores da Autoridade Tributária, por falta de competência e autoridade para actos que vão desde uma simples divergência sobre o imposto a pagar até inspecções mais complexas, como grandes crimes económicos e financeiros ou fugas e evasões fiscais."
O resto da notícia refere-se ao problema dos trabalhadores, e ao que diz o Sindicato, e como resolver o problema dos trabalhadores e contentar o Sindicato.
Por que razão a grande maioria dos processos são interpostos por grandes escritórios; porque estão os tribunais "entupidos"; qual é o tempo máximo, mínimo e médio dos processos até à sentença; qual a percentagem de sucesso dos reclamantes; qual tem sido a evolução do número de processos pendentes; e qual é a evolução previsível, face às últimas fornadas de legislação fiscal: isso não interessa nada.
Olha, jornalista das dúzias, assim também eu: detectas um problema, vais falar com o sindicalista de serviço, transcreves o que ele diz, e pumba - cá está a notícia fresquinha. Mas isso dava, quando muito, um parágrafo, e mesmo esse para o jornal da Intersindical. E o resto?
Nasci no terceiro mundo quando a vida portuguesa ainda era de primeiro. Vivi numa república socialista-científica e fui pioneiro comunista, marchando com uma espingarda de pau, aos onze anos. Joguei futebol com meninos negros amputados no mato que nada tinham que não fosse um sorriso. Comi as omeletes com tomate nas cubatas das avós dos meus colegas de escola que moravam nos musseques de Luanda. Aos doze, tinha três bicicletas diferentes com as quais partia a cabeça e esfolava os joelhos em plena liberdade por toda a cidade. Aos treze anos, cinco depois da independência, cheguei a Portugal e conheci um país diferente do que tinha imaginado, embora as férias anuais sempre aí fossem passadas. Aí vivi até aos vinte e oito, no tal país diferente do que foi imaginado, até ter de ir ver se a saudade de Angola era verdade ou sonho. Depois de quatro anos, voltei ao cantinho. Era sonho.
Aos quarenta e três por força do futuro dos filhos, emigrei para esta Itália que nos recebeu bem. Aqui estamos e daqui vemos passar Portugal. Nunca tive tanta vontade de viver em Portugal como quando vivo fora. Nunca tive tanta vontade de viver fora como quando vivo dentro.
O melhor presente que tive na vida? A caneta Parker usada de tinta permanente que o avô materno ofereceu aos 11 anos.
A coisa mais divertida e determinante que me sucedeu? Uma sogra italiana.
A maior preocupação? Como se faz para tirar o Cro-Magnon de dentro do Sapiens?
A maior alegria quotidiana? Preparar o jantar de família enquanto o vinho tinto aquece o copo.
Cantávamos:
"Eu vou, eu vou, morrer em Angola
Com armas, com armas, de guerra na mão
Enterro,enterro, será na patrulha,
Granada, granada será meu caixão
Eu vou, eu vou, morrer em Angola..."
Angola é o meu país, Portugal a minha nação. Pelo meu país tenho vontade de fazer pouco. Pela nação, tanto.
A partir de hoje, o Gremlin Literário tem mais um autor.
Pedimos-lhe uma biografia, que ele enviou imediatamente. Quando a lemos, foi evidente que só podia ser escrita na primeira pessoa, e publicada pelo próprio.
Esperamos que gostem tanto como nós gostamos do que escreve o João Pereira da Silva.
Os serviços da Presidência da República detectaram um erro. Fizeram mal. Fizeram muito mal. Porque confessaram falha própria (porque não o denunciaram em mais de uma dúzia de anos?), puseram em causa o Presidente de República anterior (que fica suspeito de permitir um clima de bandalheira na organização da sua casa), os deputados da legislatura de 2005, que votaram a lei mas ficaram tão fartos dela que nem a quiseram ver impressa, os da de 2009, que ficam tachados de arrogantes pelo descaso a que votaram o trabalho dos seus antecessores, e os da actual, que, mesmo andando o assunto nas bocas do mundo, nunca se deram ao trabalho de conferir o texto. Juristas, candidatos, jornalistas, fazedores de opinião, também saem feridos deste caso infeliz. E, por fim, eu próprio tenho que me penitenciar porque há dias ousei pronunciar-me sobre a Lei de Limitação de Mandatos, li-a, e não dei pelo conspícuo de, em vez do da.
Toda esta gente, e eu por arrasto, mereceria que a Presidência da República a poupasse à demonstração da sua imensa inferioridade. E perdoar-se-me-á porventura o desabafo: nós é que elegemos o Presidente da República, não foi ele que nos elegeu - lembrar-nos a nossa condição talvez demonstre alguma sobranceria.
É que, afinal, não vai faltar gente maldosa para insinuar que isto mais não é do que uma esperteza saloia para inaugurar um novo tipo de interpretação autêntica - a de quem se substitui a quem não soube, ou não quis, exprimir-se com clareza.
Houve um tempo em que perdemos o Norte e começámos a achar que os governos são uma espécie de Conselhos de Administração dos países, responsáveis pela evolução do volume de negócios e pela remuneração dos accionistas.
O volume de negócios, claro, é o PIB; e os dividendos são os benefícios que o Estado, com solicitude, dispensa aos seus cidadãos.
Há accionistas que tendem a fazer uma grande berrata se a sua pitança diminui; e no mercado da gestão há uma concorrência feroz de especialistas que disputam o privilégio de se sacrificarem pelo interesse da sociedade, para o que precisam do voto dos pedarii.
Este útil arranjo, porém, assenta em bases um tanto instáveis, porquanto os direitos de voto são por cabeça, como é de lei para as sociedades em nome colectivo, mas o capital subscrito não é o mesmo para cada quinhão.
O capital subscrito, já se vê, são os impostos. E como o Conselho de Administração detém o poder de fixar o volume que cada accionista aporta, mas a maioria apenas contribui com o que tem disponível, que são opiniões, desta conjugação funesta resultam assembleias gerais tumultuosas.
Suponho que esta evolução do governo dos Estados para o governo de sociedades anónimas foi engendrada pela solução da crise de 1929. Roosevelt foi creditado com o respectivo sucesso, alguns anos depois, e a receita que seguiu (impostos+despesa pública) passou a ser o standard do que se designa por "esquerda moderada", incluindo portanto o que se designa por "direita civilizada". Claro que ficou por provar que a crise se teria resolvido a ela própria, e mais cedo, sem ajuda alguma, como muito boa gente sustenta. Mas isso agora não interessa nada - na sociedade anónima e seus problemas é que estamos.
E para falar da colectividade discursamos todos como se fôssemos guarda-livros: crescimento negativo, racionalização, défice, competitividade, PIB - já quase não se encontra ninguém que não conheça o dialecto economês.
Claro, alguns são mais sofisticados. Eu, por exemplo, discorro com fluência sobre custos de contexto. Conheço-os, os malditos, ó se conheço: companhias majestáticas que se fazem pagar caro por maus serviços, escondidas atrás de uma competição de fachada, bancos e seguradoras que se comportam como quadrilhas de ladrões com impunidade garantida, supervisores que, coitados, ou têm falta de legislação ou de meios, uma imensa floresta de legislação e "serviços" públicos que criam dificuldades para vender facilidades, um Fisco mafioso e predatório, uma legislação mais instável que o feitio de uma prima-dona - só a lista já dá vertigens.
São tão gritantes que até mesmo académicos e políticos já deram por eles. Tanto que não há hoje conferência, workshop, seminário, sobre o crescimento económico, em que estes custos não sejam referidos em tropel, mais as maneiras de os eliminar. Essas maneiras são inúmeras e variáveis consoante a natureza do obstáculo, mas costumam começar pela mesma expressão: na Alemanha..., ou: na Suécia..., ou ainda, para os mais desempoeirados: na Suíça... Seguem-se os exemplos das coisas lúcidas e práticas que estão em uso naquelas paragens e o orador costuma concluir, desalentado, com a insinuação de que há uma grande falta de tradutores.
Mas não há, é claro. Cada novo governante esfarrapa-se em legislação, que consiste no geral em novas responsabilidades para os mesmos ou novos serviços, e novas obrigações ou proibições para as empresas e os cidadãos, tudo em geral copiado das melhores proveniências.
Nas empresas, então, sempre foi o forró: não terá havido um único Orçamento nas últimas décadas, e menos ainda uma legislatura, em que a fértil imaginação de políticos e burocratas não tivesse inventado uma quantidade de novos tropeços e encargos, seja a benefício de masturbações intelectuais patetas (como as inúmeras revisões do POC, para cada uma das quais foi preciso actualizar o software), ou de pias intenções (como a medicina do trabalho) ou para criar empregos para profissões da moda (como revisores de contas), ou para consolar invejosos e ignorantes (como boa parte da legislação fiscal), ou para satisfazer as frustrações e as manias de quem sempre soube perfeitamente como devem as empresas ser geridas mas nunca teve vagar para as lançar (quase toda a gente).
É pouco provável que os famosos custos de contexto saiam do caminho das empresas. Alguns, poucos e menores, já desapareceram, ao som de fanfarras, à boleia do simplex de Sócrates, e outros haverá, logo que o Álvaro acabe de espremer as académicas meninges. Mas, entretanto, os empresários aturdidos (os verdadeiros, não os engenheiros de subsídios ou a nata protegida da concorrência) veem chegar, como de costume, a remessa do ano. A deste é bem fornida, como se percebe por este caso. É só um exemplo, que a procissão ainda vai no adro. Quando o Estado acha necessário plantar máquinas caríssimas (que as vítimas pagam) para que uma chusma de mangas-de-alpaca saiba quem faz o quê e aonde, temos a burra definitivamente nas couves. Que alguns ingénuos, infelizmente no Governo, entendem que vão reverdecer à força de dentadas.
Épá, toda a agente fala do Relvas, e da canção que está de novo no top of the pops, e eu aqui a trabalhar para salvar o País. Nada, vou parar as minhas mesquinhas actividades e dizer, com acerto e profundidade, da minha justiça.
Tínhamos um ministro que a oposição estimava porque conferia plausibilidade às suspeitas e insinuações de sobreposição de interesses privados a públicos. Mas que agora aprecia porque lhe facilita a criação de um clima insurrecional.
Já em Julho último pessoa excepcionalmente avisada recomendava: "Quanto ao bom do Relvas, é claro que se devia ter demitido há muito, no interesse próprio, no do Governo e no do País. Se o tivesse feito a tempo, perderia a auctoritas mas não a dignitas". E acrescento eu, agora: dignitas, onde estás?
A oposição faz o que lhe compete. O primeiro-ministro, porém, não fez o que lhe competia, por, imagina-se, acreditar que um governo é a mesma coisa que um clube de amigos; e agora não pode, para não dar parte de fraco.
Lindo serviço: não bastava a política seguida inspirar desespero e ódio a quem é por ela prejudicado; e dúvidas a quem, não acreditando que a sarna socialista que aqui nos trouxe seja a receita para evitar a coceira, tem medo de que o doente morra da cura. Fora ainda preciso que o principal trunfo da propaganda anti-situação tivesse assento no Conselho de Ministros.
Quanto aos incidentes que são o estralejar dos foguetes desta festa, reina a confusão das interpretações. A ver se nos entendemos: um grupo que interrompe os trabalhos do Parlamento com uma balada guevarista, ou qualquer outra coisa, deve ser expulso da sala e os seus membros punidos. Porque, se assim não for, podemos deitar fora a parafernália das eleições, e dos Partidos, e do Regimento, que a ordem dos trabalhos é determinada por quem acha que tem poderes de representação popular por nomeações de griteiro, arruadas e estratégias obscuras de comités centrais. O PM fez um comentário simpático à interrupção? Pois tem mau gosto em música, que é um problema dele, e um deficiente entendimento da dignidade do Parlamento, que é um problema nosso.
Já nas universidades o caso é diferente: os estabelecimentos também são dos meninos que lá estudam e quem lá vai sujeita-se tradicionalmente às reacções dos eternos soixante-huitards que aqueles moços com pouco que fazer são, e sempre foram. É uma questão de estômago. Se forem os meninos. Porque na recepção ao Ministro da Saúde, no Porto, os manifestantes já aparentavam ter idade para ser os paizinhos deles.
Paizinhos que têm, evidentemente, todo o direito a manifestar-se - na rua.
Blogs
Adeptos da Concorrência Imperfeita
Com jornalismo assim, quem precisa de censura?
DêDêTê (Desconfia dele também...)
Momentos económicos... e não só
O MacGuffin (aka Contra a Corrente)
Os Três Dês do Acordo Ortográfico
Leituras
Ambrose Evans-Pritchard (The Telegraph)
Rodrigo Gurgel (até 4 Fev. 2015)
Jornais