Em traços grossos, há os que não leram, os que tresleram, e os que efectivamente leram. Deste último grupo, já de si residual, 9 em cada 10 (para evitar exageros) não perceberam nada. Ao contrário do que agora se diz por aí (todo o cão e gato "lê" situações, polémicas, e acontecimentos), existe uma diferença substancial entre "ler" e "interpretar". São exercícios diferentes, e ambos exigem trabalho e capacidades. É por esta razão que a minha temperatura mental permanece inalterada perante argumentos couraçados em citações.
Falo nisto a propósito do malsão Leal da Costa, que citou "O banqueiro anarquista" para mostrar o oposto do que diz o texto de Fernando Pessoa. Se virmos bem, não fez diferente do que faz a generalidade dos nossos peritos e “literatos” - que na melhor das hipóteses (tirando 2 ou 3 excepções, que a plateia não sabe identificar) se resumem a operosos coleccionadores de papéis.
"O público não está devidamente informado, apesar dos esforços dos técnicos e da informação acessível em sítios electrónicos como o da DGS" – diz Savonarola. "Sem boa saúde não há boa economia e as desigualdades acentuam-se", acrescenta. E, para coroar um longo repositório de opiniões que poderia ter a bondade de reservar para o seu círculo de amigos, baseia-se num estudo australiano, outro do Crédit Suisse, um relatório da ONU e um estudo inglês. A estas fontes acrescenta o Banqueiro Anarquista, de Pessoa, que julga ter percebido.
O próprio resume, triunfante, a meio da sua redacção: "O Governo, no seu todo, é responsável pela saúde da população".
Não vou lembrar que estudos há aos montes, para demonstrar tudo e o seu contrário, em matéria de política de saúde; e que, mesmo que nos malefícios deste ou daquele comportamento a maioria, ou até a totalidade, dos "estudos" seja concordante, conviria que o impetuoso frade entendesse o facto básico de os cidadãos terem, numa sociedade democrática, direito a que o Estado não interfira nos seus comportamentos quando estes não ofendam direitos de terceiros.
Não, secretário de uma figa, o Governo não é responsável pela minha saúde - o responsável sou eu. Se eu fumo, se bebo, se como demais, se abuso nas sobremesas, se não faço exercício, as consequências recaem antes de mais sobre mim. E se vamos fazer contas ao que isso pode custar ao teu querido SNS, convém demonstrar que os impostos sobre os vícios não são já rendosos para o Estado; sem esquecer que, aberta a porta ao poder deste para interferir na vida privada do cidadão, não há limites ao que é capaz de fazer em nome hoje da saúde, amanhã do civismo, depois no gosto em arquitectura, em espectáculos de qualidade, e no mais que se lembre quem detém circunstancialmente um poder efémero e se imagina pastor - e fiscal - da comunidade.
Estas coisas são perigosas, antes de mais porque uma vez instalada a burocracia para tratar da felicidade dos povos, ela própria se encarrega de justificar a sua existência, alargar o seu poder, e tornar-se difícil de desinstalar sem dor, muito para lá do esquecido controleiro social que a fundou.
Ah, e antes que esqueça: Pessoa, que não tem culpa de ser lido por qualquer um, fumava como uma chaminé e gostava de copinhos de genebra. Tens a certeza que, sem esses vícios que os seus modestos recursos lhe permitiam - e que hoje, possivelmente, não poderia pagar - teria produzido a mesma obra? Eu não. Mas, lá está, dirás decerto que, se tivesse sido o novo homem que, como todos os totalitários, achas que deve nascer, teria escrito mais, durante mais tempo.
É por isso que és perigoso: a fé é perigosa quando se arroga a si mesma o direito de ser imposta.
É a data em que muitos Portugueses suspiram de alívio: acabaram os discursos suados, em que quem por função ou ambição acha que deve dizer alguma coisa espreme as meninges para expectorar algo que ainda não tenha sido dito; acabaram as intermináveis cerimónias onde os bonzos do regime se aliviam de um interminável rol de recados e banalidades, uns e outros, nos melhores casos - nos piores temos direito a profundidades filosóficas que não há apneia que aguente - embrulhando na retórica cansada da liberdade a agenda política que defendem.
Entendamo-nos: uma comunidade precisa dos seus momentos de celebração, das suas cerimónias chatas, dos seus discursos oficiais, dos seus rituais. E mesmo que a maioria dos cidadãos vá à praia, ao parque, ao café ou a passeio, é tranquilizador saber que há quem trate das comemorações, do içar da bandeira, dos cortejos - a gente também paga aos políticos para se ocuparem das efemérides, que nós não temos vagar e sempre há uma mole de gente que se entretém a ver com gosto essas merdas.
Porquê então o fartum? É que o 25 de Abril não é ainda uma data histórica, não podemos tratá-la como ao 1º de Dezembro e despachá-la asinha: menos de um quarto dos portugueses de hoje a viveram conscientemente mas no espaço público - quem é governante, líder de partido, comentador com banca nas têvês, ex-presidente, ex-ministro, ex-qualquer coisa - essa percentagem é muito superior.
Pior: na gente que viveu o 25 de Abril há vencedores e vencidos, e nestes não está apenas a Velha Senhora, porque houve pelo menos dois vinte e cincos - o dos comunistas e o dos outros; e os primeiros foram vencidos mas não convencidos, além do que sobrevieram ainda trânsfugas que, de lá para cá, viajaram da esquerda para a direita e - alguns - da direita para a esquerda. Mas quase todos estão aí, no espaço público, a lutar para que se cumpra Abril - o Abril deles. E estão de tal maneira que entopem os meios de comunicação social não apenas com as cerimónias oficiais e os festejos mas com a interminável parafernália dos comentários, lembretes, mesas redondas e debates - ao fim do dia o espectador já não pode com o 25 de Abril, a liberdade, os poemas, as historietas, as musiquetas, as imagens mil vezes vistas, o mau que era o 24, o bom que passou a ser no 25 e o melhor ou pior que é agora, bem como a longa lista dos has-been que neste dia renasce para a ribalta deles - e o nosso tédio.
Eis por que prefiro comemorar a data do título - julgo não estar só.
Para falarmos só da última meia dúzia de semanas, o processo de Jardim Gonçalves “prescreveu”, Paulo Portas “foi ouvido” no processo dos submarinos, e as relíquias de Miró já se encontram entrouxadas em três zelosas providências cautelares - cumprindo a “promessa” da senhora Procuradora-Geral.
À história destes processos, para quem tem interesse e paciência, falta “enquadramento” e rodriguinhos jurídicos que, por motivos de asseio, me dispenso de mencionar. Um facto luminoso fica à mostra: o nosso sistema de justiça escolhe os processos que avançam, os que se arrastam, e os que prescrevem. E Joana Marques Vidal tem, sobre esta escolha, uma palavra decisiva.
Notícias sobre processos judiciais é coisa para tocar com pinças: os senhores jornalistas não têm muitas vezes formação jurídica, que aliás não lhes é exigível, e por isso naufragam com frequência nos escolhos do legalês; e como boa parte deles tem formação em português, mas é como se não tivesse porque quem os ensinou já pertencia a uma geração que nem imagina o que na matéria lhe falta - resulta que o cidadão curioso tem direito, do que se passa na Justiça, a conhecer umas histórias mal amanhadas.
Por outro lado, os senhores magistrados, judiciais e do ministério público, confundem a sua necessária independência da opinião pública com desprezo por ela. E, ora por causa do segredo de justiça, ora porque o juiz não tem que explicar as sentenças para além do que nelas está lavrado, e isso é em judicialês - resulta que o cidadão curioso tem direito, do que se passa na Justiça, a conhecer umas histórias mal amanhadas.
O Conselho Superior da Magistratura e o equivalente no Ministério Público (com atribuições e nome diferentes - não tenho vagar nem interesse ou competência para esmiuçar esses arcanos) são suficientemente superiores para, à opinião pública, ou não dizerem nada ou dizerem umas coisas redondas que supõem lhes reforçam o imaginário prestígio.
Ficamos então assim: o cidadão curioso tem direito, do que se passa na Justiça, a conhecer umas histórias mal amanhadas - não sei se já referi este facto.
Hoje ficamos a saber, sobre os submarinos que, como lhes compete, imergem durante largos períodos e tendem a emergir quando se aproximam campanhas eleitorais, que "o vice-primeiro-ministro Paulo Portas foi ouvido no âmbito do processo".
Sim, foi ouvido? Olha que bom. Mas como "o inquérito está em investigação no Departamento Central de Investigação e Ação Penal desde 2006", conviria o DCIAP, ou quem a senhora Procuradora-Geral entenda, vir explicar por que razão este processo, sendo por natureza aquático, se arrasta, um meio de locomoção caracteristicamente terrestre.
A menos que, andando o Ministério Público a perder tempo com o que não lhe diz respeito, ele escasseie para o que lhe compete. É que a senhora Procuradora-Geral até pode achar que a colecção Miró é "um acervo que não deve sair do património cultural do país" - não falta gente intensamente cultural a achar a mesma coisa. Mas não pode - ou, pelo menos, não devia - utilizar os serviços que o contribuinte paga para boicotar a iniciativa, certa ou errada, de outros serviços que o contribuinte também paga, estes últimos no exercício de competências que têm - e os magistrados não.
Mas agora o mal está feito, o leilão capotou. Diz a juíza Guida Jorge que "não se verifica a impossibilidade de o Estado classificar as obras em questão", uma vez que as sociedades gestoras do património nacionalizado do BPN - a Parvalorem SA e a Parups SA - não comprovaram a importação e admissão das 85 obras há menos de dez anos nem a Secretaria de Estado da Cultura tem nos seus arquivos quaisquer documentos relativos à admissão deste conjunto.
Eu julgava, na minha inocência, que o que uma parte afirma a outra, se não concorda, tem que infirmar. Mas não - a Parvalorem e a Parups não "comprovaram". Portanto, salvo prova em contrário, estão a mentir; e julgava também que os serviços que têm competência para classificar as obras dependem do Governo que as quer vender, pelo que não é razoável supor que venham a declarar que as pinturezas merecem ser arroladas e que, sem elas, o nosso património ficará consideravelmente prejudicado.
Não é impossível que a Christie's desista, caso em que teremos o privilégio, qualquer dia, de pasmar perante tanta tela genial, num desses museus que estão às moscas, ou, melhor ainda, num que esteja vago (novo Museu dos Coches, anyone?).
Uma coisa é certa: de surrealismo entendemos nós.
Sabe, não se deixe enganar: este país, a despeito das aparências, não é seguro. Não é que tenhamos a Mafia, ou bandos de miúdos a importunar e assaltar o forasteiro desprevenido; nem separatistas, fanáticos religiosos ou membros de seitas obscuras, com inclinação para pôr bombas ou raptar e assassinar gente loura de shorts. Não: na verdade, os únicos grupos organizados que perturbam a paz pública são os fanáticos de futebol e a CGTP, e mesmo esses em dias certos, permitindo ao cidadão avisado fechar as janelas ou escolher um caminho que não se cruze com a turba.
É que, meu caro turista, o governo não nos liga. A gente trata de um bem essencial, que é o monopólio da violência. Sem ele, impera a lei do mais forte sobre o mais fraco e do ladrão sobre o proprietário, ao mesmo tempo que deixa de haver maneira de impôr as decisões dos tribunais. Mas o governo, em vez de reconhecer este facto comezinho e, discretamente, nos pôr ao abrigo dos rigores a que submete os seus outros servidores, meteu-se-lhe em cabeça levar tudo a eito: juízes, militares e nós. Isto, como é evidente, não pode ser. Esmaguem o professor, o técnico de manutenção, o reformado e o contínuo, mas nós - não.
Por isso, já sabe: se o assaltarem, não vale a pena queixar-se porque estamos assim a modos que em greve de zelo, percebe? É da fraqueza.
Ai acha isto uma chantagem ignominiosa? Pois habitue-se: nós por cá temos um vírus epidémico - chama-se dereitos. Não há cura, apenas tratamentos paliativos, a que se chamam cedências. Costuma funcionar, portanto venha cá noutra altura, de momento anda por aí um surto.
Suponhamos que a notícia rezava assim: mãe lésbica suspeita de matar três filhos deficientes; ou desta forma - mãe preta suspeita de matar três filhos deficientes; ou ainda - mãe cigana suspeita de matar três filhos deficientes.
E logo vozes exaltadas viriam à praça pública apontar um dedo indignado e justiceiro ao jornalista, lembrando que as lésbicas, as pretas e as ciganas não são mais atreitas a liquidarem filhos deficientes do que as mulheres straight, brancas e inimigas do RSI.
E as milionárias?
Do blog de Grillo.
Que o Senhor, na sua infinita misericórdia, me perdoe, mas eu estou de acordo com estas declarações: "O Estado não tem nada que se meter onde não é chamado" parece-me uma excelente palavra de ordem e faço votos de que Arménio e os seus camaradas a gritem a plenos pulmões, quando desfilarem no 25 de Abril deles.
Infelizmente, não se ficou por aquela nobre afirmação de princípios e resolveu dar-lhe conteúdo, clarificando que "a intromissão do Estado no sector privado é ilegal e abusiva nesta questão da contratação colectiva".
Dito assim, temos a burra nas couves. Porque realmente o que parece abusiva é a contratação colectiva em si: nem a CGTP representa os trabalhadores nem as confederações patronais representam os patrões; e mesmo que os sindicatos possam ter alguma representatividade, bem como as associações patronais, não está ela, nem nunca esteve, medida, nem se vê por que razão o Governo haveria de estar excluído de negociações cujo resultado tem força de lei, afectando todas as empresas, mesmo as que do associativismo querem distância, em matéria essencial como é a dos salários e regalias dos trabalhadores, sector a sector.
Mas isto, sendo muito, será ainda o menos, visto que com boas razões este evangelista do valor há muito grita que "existe mais variedade (no lucro, ou na produtividade) dentro de um sector económico, do que entre sectores económicos".
Temos então que a contratação colectiva na qual o Estado não se deve meter consiste num grupo de pessoas que se representam a si mesmas negociando com outras que acham, como Proudhon, que a propriedade é um roubo, para disporem do que não lhes pertence, vestindo o mesmo fato a corpos diferentes, fingindo acreditar que daí resultará um geral aprimoramento das toilettes.
É melhor estar o Estado, Arménio. Não está sempre, em quanta merda se faz?
Não me qualifico: tenho volta e meia umas cutículas à volta das unhas, que é preciso remover com a ferramenta especializada que se usa para aparar as ditas; em havendo mudanças bruscas de tempo, sobrevém um aumento do exsudato nasal; e as dores de cabeça são frequentes, em particular quando tenho muito que fazer, e quando não tenho nada.
Faltam portanto três. Sofresse eu de reumatismo, diabetes e asma e, em conjugação com aqueles acima referidos males, já tinha direito a um gestor de saúde, grande benefício reservado a doentes com "mais de cinco" patologias crónicas.
"Estima-se, a nível internacional, que cerca de 6% da população acumule mais de cinco doenças crónicas. Assim, em Portugal seriam necessários cerca de 7500 gestores nos cuidados de saúde primários, se cada um ficasse com cerca de 80 doentes".
7500 gestores é uma ridicularia. E como estes funcionários se encarregarão da supervisão do doente, estes poderão ir praticando yoga nos intervalos das marcações para o médico de família, no Centro de Saúde, o de Medicina no Trabalho, se o felizardo tiver emprego, o especialista, se a doença crónica não estiver, como quase nenhuma está, ao alcance das luzes do clínico geral, e o parecer do supervisor, que fará um acompanhamento personalizado, com o propósito de "controlar o desperdício de recursos", não se percebe se incluindo também no hospital, onde o paciente se registou entretanto, por via de esgotamento.
Ou seja, o doente passa a ser agente de informação para efeitos de controlar o despesismo médico, uma inovação que gente supostamente na plena posse das suas faculdades admite como positiva.
Isto a julgar pela notícia. Quem quiser conferir para ver se o jornalista interpretou bem o assunto pode - eu não tive coragem - ir ler o Relatório do Grupo de Trabalho, um mastodonte com 154 páginas de intragável palavreado. E gente boa pode inclusive dizer de sua justiça, dado que o documento está generosamente aberto à discussão pública, admitindo-se, como se diz na conclusão, "ligeiras alterações".
Eu sugeriria uma grande, que seria a tradução para português.
A coisa nasceu de um despacho do Secretário de Estado Adjunto do ministro da Saúde. E - ó surpresa! - quem é o ínclito governante? Pois nem mais do que o Savonarola do tabaco, do sal e do açúcar, Fernando Leal da Costa. Ciente desta informação, e pensando melhor, nem é precisa a tradução: o melhor é rasgar tudo.
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