Leio Rui Ramos com prazer e proveito, como se diz. E embora este texto não se me aplique (eu era eurófobo há vinte anos e sou eurófobo agora), nem por isso, desta vez, deixo de manifestar uma completa discordância. Por partes:
"Dúvidas políticas: é o euro o remate de um mercado único, ou o começo de um Estado europeu com ambições de ultrapassar as nações históricas?"
O Euro foi apresentado - melhor, trombeteado - como sendo mais um passo no aprofundamento da "construção europeia" e os inimigos e desconfiados do edifício, então relativamente raros e agora bem mais numerosos, eram, e são hoje ainda mais veementemente, tachados de "inimigos da Europa". E como se tornou relativamente pacífico que a moeda única requer regras orçamentais iguais, e não falta quem entenda que a fiscalidade, ela própria, também não deve permitir grandes assimetrias dentro do espaço comum, ficamos em condições de responder:
A perfeição do mercado único talvez requeira uma moeda comum, uma política orçamental comum e uma política fiscal comum, mas o preço dessa perfeição é a subtracção aos parlamentos e aos governos de competências nessas áreas, que serão transferidas (como, em boa parte, no nosso caso, já estão) para estrangeiros - eleitorados estrangeiros, governos estrangeiros e burocracias estrangeiras. Os representantes de Portugal terão, é claro, uma palavra a dizer, na medida do peso dos nossos 10 milhões de habitantes e do nosso PIB - duas gotas de água no turvo lago da UE. Portanto, o Euro é, sim, um remate, o qual implica necessariamente "ultrapassar as nações históricas".
"Dúvidas económicas: estarão os regimes europeus suficientemente sintonizados para poder partilhar uma mesma moeda?"
A pergunta, nos termos em que está formulada, carece de sentido. Porque, por exemplo, o volte-face de Hollande, apesar de tudo dirigente de uma grande nação, demonstrou que a lógica integracionista se sobrepõe a promessas eleitorais, convicções políticas e estados de alma dos eleitorados. Claro que, para quem tenha os meus pontos de vista, Hollande não podia cumprir as promessas eleitorais sem causar danos severos à economia francesa e, portanto, ao Euro. Mas por que razão se tem de supor que a visão económica hoje dominante na UE e no BCE não pode ser alterada e amanhã não se encontrará a Alemanha confrontada com uma maioria (de eleitorados e de países) que entenda que a política económica de rigor nas contas é intolerável e que portanto os boches e satélites o que têm a fazer é submeter-se? Ora, se e quando isso suceda, não custa apostar dobrado contra singelo que preferirão sair - têm boas e sólidas razões históricas para não quererem conviver com inflação e moeda fraca. Donde, a pergunta indicada deveria ser: estarão os povos europeus suficientemente sintonizados para poder partilhar uma mesma moeda?
"Em quinze anos de euro, tivemos uma assistência internacional (2011). Mas nos dez anos de democracia antes da adesão à CEE, tivemos duas (1978 e 1983), além de uma das inflações mais virulentas da Europa ocidental".
Há três diferenças entre a falência de 2011 e as outras: i) nos idos de setenta e princípios de 80 a memória da Revolução e o seu cortejo de desvarios estava ainda fresca. Os Portugueses viviam a política com intensidade e acreditavam nos poderes demiúrgicos do Decreto-Lei para lhes melhorar a vida - os partidos de Poder estavam consideravelmente mais à esquerda do que hoje estão. Em 2011, havia um pano de fundo de crise internacional com a qual o governo socratiano lidou numa fuga para a frente despesista, aliás só tornada possível, justamente, por trás da cortina de credibilidade do Euro; ii) O endividamento, privado e público, atingiu níveis sem precedentes em 2011, e, três anos mais tarde, não só a dívida pública ainda não parou de crescer como as consequências - em desemprego, em emigração, em temor do futuro - não são comparáveis às crises anteriores; iii) Das crises anteriores saiu-se com relativa facilidade; da actual basta uma subida considerável dos juros da dívida para novamente o País, que se reergue penosamente, afundar.
"Hoje e aqui, o euro tem um significado: mesmo com todas as dúvidas, representa neste momento a opção – o que, note-se, não é a mesma coisa que a possibilidade — de desenvolver Portugal através da capacidade dos seus empresários e trabalhadores para competirem nos mercados internacionais, com tudo o que isso implica de maior abertura e flexibilidade do regime económico".
Sou há mais de 30 anos empresário, um desses que não fornece o Estado, não tem o telefone de ministros, não pertence às soi-disant associações representativas da espécie, não faz o circuito dos workshops, cocktails, encontros, missões comerciais e dinamizações sortidas, nem tem um indevido respeito pela gigantesca nuvem de opinantes que sabem perfeitamente como se devem dirigir as empresas que nunca fundaram. E, para competir nos mercados externos, que são os que sempre elegi, não vejo qualquer vantagem no Euro que os seus inconvenientes não anulem, nem para mim nem para os meus trabalhadores. De flexibilidade estamos conversados, que as instâncias europeias são ainda mais metediças, reguladoras e sufocantes que as nacionais, hoje aliás, crescentemente, meras agências de burocracias internacionais anónimas, inimputáveis, e inacreditavelmente estúpidas.
"O euro deu-nos esta coisa extraordinária na nossa história recente: uma moeda estável em democracia. E isso é fundamental para um regime democrático, porque não existem verdadeiramente direitos e garantias onde um governo, através das impressoras da casa da moeda, pode enganar e espoliar os cidadãos, confiando na “ilusão monetária” para se esquivar a debates. Não sabemos se o euro vai acabar. Mas se por acaso acabar, e dada a nossa história monetária, deixará certamente saudades".
Recomendar-lhe-ia, meu caro Rui Ramos, se tivesse autoridade para lhe recomendar alguma coisa, que tivesse mais fé nas pessoas: os cidadãos podem ser enganados, e são, muitas vezes. Mas não só, enquanto houver regime democrático, não há qualquer falta de debates, como os governos não põem as rotativas a trabalhar às escondidas - é bem às claras, com défices e despesismos à vista de todos
Já tivemos, ao mesmo tempo, moeda sólida, boas contas e crescimento robusto. É verdade que não foi em democracia. Mas não desisto de pensar que não é impossível ter algo de parecido por escolha livre, com as adaptações que as muito diferentes circunstâncias impõem. E, é claro, se tivesse de escolher ditadores preferia os nossos. De resto, uma boa definição de ditadura é arrogarmo-nos o direito de impedir os cidadãos de fazerem escolhas que, na nossa opinião, os prejudicam.
É claro que a igualdade entre os sexos nunca existiu nem nunca, até onde a vista e a imaginação alcançam, existirá - que o Senhor seja louvado.
Nós temos algumas coisas a mais e algumas coisas a menos do que elas. E nem sequer é líquido que o bestunto seja exactamente igual: baseado em observações atentas que o meu espírito naturalmente inquiridor tem levado a cabo ao longo de décadas estou em condições de afirmar que as queridas estão no geral mais bem servidas de inteligência emocional, e isso desde o nascimento. E ainda que a comunidade científica em peso declarasse a sua convicção profunda de que todas as diferenças, salvo as fisiológicas, são adquiridas, a realidade continuaria tranquilamente a demonstrar que a maioria delas não apenas distingue o fúcsia do ciano, e os dois do anil, como a maioria deles vai pouco além das primárias. Assim como não pode ser apenas fruto dos condicionamentos operados por educações preconceituosas e sexistas que qualquer condutora automóvel que se encontre perdida pergunte o caminho, enquanto um condutor nas mesmas circunstâncias o tente encontrar pelos seus próprios meios.
E já que falamos de condutores nem me atrevo a qualificar as óbvias diferenças, que eu não sou um desses que arriscam controvérsias.
A controvérsia vem de milénios em que as diferenças de força física de cada um dos sexos, e a circunstância de só as mulheres darem à luz e amamentarem, originaram diferenças de estatuto social que são difíceis de reverter.
Mas nas sociedades contemporâneas e evoluídas do Ocidente já não há, no plano legal, assimetrias de direitos, dado que a força física não conta para a sobrevivência nem sequer para o sucesso. E as diferenças que subsistem na prática são muitas vezes mais aparentes que reais. Quanto à maternidade, não foi ainda encontrada a adequada compensação para o facto de, nos anos fundacionais das carreiras profissionais, as mulheres se verem diminuídas pela circunstância de só elas conceberem. Mas isso não resulta de falta de vontade, resulta da dificuldade de encontrar uma solução satisfatória para todas as partes, nas quais se inclui a própria colectividade que, para sobreviver, precisa que as mulheres deem à luz.
Mas isto é no Ocidente, e nem todo. No resto do mundo o mulherio pertence ainda a uma classe de cidadãos de segunda. E a natural inclinação para a sofisticação e variedade de cores está, em extensas regiões, soterrada debaixo do tchador e da burqa. Preocupa isto a boa gente da esquerda multicultural? Nem por isso; agora, a cor das mochilas sim.
Sou eternamente grato aos meus miseráveis dois anos de Latim, sem os quais teria com a língua pátria, e as outras que arranho, uma relação bem mais conflituosa.
Língua morta? Nunca o estará enquanto houver quem entenda que a eliminação do Latim dos programas do ensino secundário não trouxe nenhum benefício, muito pelo contrário - o interesse pelos clássicos e a capacidade de interpretação e escrita sofreram um rude golpe. E gente a entender isso mesmo há muita, cada vez mais, e mesmo (ou sobretudo) em países que não são latinos.
O Latim era a língua dos nossos longínquos avós e foi a língua franca de mais área do que a que hoje constitui a babel da UE durante muito tempo, mesmo depois de o Império se finar. E boa parte do que somos, da nossa (do Ocidente) cultura, das nossas instituições, leis e crenças, nasceu primeiro na Grécia, cujo génio Roma garantiu que não se extinguiria como se extinguiu o doutras civilizações brilhantes, mas consolidou-se e engrandeceu-se graças à Republica e ao Império, que nos deixaram, além disso e pelo menos, o Direito e o Cristianismo.
Mas a língua é um meio, não é um fim em si mesma. Precisamos dela para nos entendermos, mas também, na forma escrita, para guardar a memória de tudo o que se pensou, descobriu, criou, inventou e fez. E mesmo que para muitos povos faça também parte da identidade, imaginar que a preservação das línguas em risco de extinção - sem falantes, sem literatura e quase sem história - é o mesmo que a preservação das espécies é um salto lógico maior que a perna do senso comum.
Por isso, para combater o sumiço do tabesna, do sami e do occitano auvernês (ou do mirandês, já agora) não dou um cêntimo. Mas há quem dê: “Muitos idiomas em todo o mundo estão a perder-se rapidamente. É uma situação muito séria. Por isso, queríamos investigar de que forma a extinção se distribui globalmente.”
Olha, Amano, se é para fazer investigação histórica, conta comigo, mesmo que o âmbito seja este que referes - nada do passado está fora da investigação. Agora, se é para inventar meios para, com dinheiro público, sustentar moribundos - nem mo-lo digas.
Suponho que seja um dos raros portugueses, fora os condenados, amigos e alguns correligionários, que acha a sentença um escândalo.
O principal condenado (o sucateiro, na invariável referência eivada de desprezo da comunicação social, como se a profissão não fosse tão digna - e aliás, na maior parte dos casos, substancialmente mais útil - do que a de jornalista) montou uma mecânica de corrupção e rodou-a durante anos. Com isso lesou o Estado, prejudicou concorrentes e abandalhou a integridade moral de gente que detinha o poder de o beneficiar, causando danos a terceiros e à colectividade.
Indemnizações e respectivo cálculo? Não vi nada.
Sanções para os corrompidos? Sim, mas inferiores - muito inferiores - à do corruptor, o que não faz qualquer sentido: na relação entre corruptor e corrompido é o segundo que detém o poder de conceder o benefício ilícito.
Medida da pena? Se no nosso ordenamento jurídico o crime de colarinho branco passa a justificar penas de dezassete anos e meio convirá restaurar o degredo, os trabalhos forçados e a pena de morte. Porque, em que pese à americanização crescente da nossa sociedade, crimes de dinheiro não são entre nós iguais a crimes de sangue: vigarizar o Estado não é o mesmo que matar o vizinho à paulada numa discussão; e se o grande aldrabão vai 17 anos de cana, e isso se encara com naturalidade, tempos virão em que o trabalhador que está de baixa comprovadamente fraudulenta arrisca meses à sombra - medida que, estou certo, não teria falta de apoiantes entusiastas. E pedófilos, hem? Castração, no mínimo. Já para um assassino em série, que não tenha a precaução de torturar as suas vítimas para poder alegar insanidade, a população, se consultada durante a excitação da cobertura mediática, recomendaria a execução e numa sociedade democrática - não é verdade? - o povo é que manda.
Falta agora, para geral contentamento e reconciliação com o Poder Judicial, trancafiar por largos períodos alguns dos, igualmente numerosos, candidatos do PSD.
Suspeito que os senhores juízes, deparando-se com um processo ao que parece bem investigado e instruído, resolveram redimir a classe, vingando-a daqueles muitos que lhes chegaram às mãos sem que pudessem condenar, donde o exagero na pena.
Mas os réus, como aliás os condenados, são pessoas. E a prevenção geral tem limites: não é porque na Arábia Saudita se pode deixar um carro com uma pasta lá dentro, à vista, sem correr grandes riscos de a roubarem, que deveríamos amputar uma mão aos ladrões; nem as penas devem ser mais pesadas porque há um clima na opinião pública que o exige.
A opinião pública é uma rameira volúvel: hoje acha isto e amanhã o oposto. Das leis, e da sua aplicação, espera-se serenidade e medida. Assim o entenda a instância de recurso.
Para começar, fica à vista que a SPA é a primeira a copiar o trabalho alheio e a chamar-lhe seu. Um gesto simbólico quando se trata de discutir a "defesa" dos "direitos" de "autor". A seguir, faz de conta que esclarece os seus processos numa prosa minada de aldrabices.
Diz, por exemplo, que 40% das receitas da cópia privada são para os autores, 30% para os editores, 30% para os produtores (atenção, vamos em 100), e 20% para um Fundo alegadamente Cultural. Não se mencionam despesas administrativas, nem a máquina burocrática gasta um cêntimo que seja, garantindo-se que os surpreendentes 120% da receita serão encaminhados para aquelas bandas da “arte” que a SPA conhece e promove “sem despesas para os contribuintes” (é mesmo assim que lá está escrito).
Esbarrondada no fundo da mediania, da imaturidade, da falta de imaginação, e de um amadorismo artístico sem disfarce nem misericórdia, a SPA recorre a truques de pilha-galinhas sendo a justa representante daquelas almas puríssimas que agora cantam aos calcanhares de António Costa.
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Imagem daqui.
Imaginemos uma jovem, casada de fresco, que se candidata a um lugar de faz-tudo num escritório de uma pequena empresa. E suponhamos que o patrão, ou alguém por ele, é suficientemente imprudente para declarar que não está para correr o risco de dar emprego a uma candidata que, mal acabe de conhecer os cantos à casa e os fios do negócio e do serviço, se põe na senhora da alheta por mor de dar à luz e se ocupar dos primeiros tempos de um novo cidadão endividado.
Imaginemos que a candidata rejeitada apresenta queixa. E que, perante o magistrado, o arrogante patrão diz que sim senhor, efectivamente recusou provimento à menina porque bem vê, senhor doutor, não é só o prejuízo de ter que encontrar outra pessoa, e novamente lhe dar formação, é também que o substituto sabe que está a prazo, e entre o que não desenvolve enquanto aprende e o saber que vai de vela quando a feliz mãe regressar (pelo que não cessará de procurar colocação noutro lugar), perde-se talvez aquele rendimento que ele, patrão, espera... está o senhor a ver?
Nesta maré, o magistrado, se for pessoa da esquerda anti-capitalista, já está fervendo de indignação; e se for de outras inclinações poderá ter alguma compreensão para o dilema do patrão ingénuo mas o resultado será o mesmo: condenação. Discriminação sexual se chama à decisão deste empresário obsoleto e sexista e nem as legislações nem a opinião pública a consentem.
A mim me parece que não pode haver discriminação senão perante situações iguais, e da avaliação da igualdade de situações faz parte também o risco potencial que cada candidato evidencia para a estabilidade da relação laboral.
Porém, é social e humanamente intolerável que as mulheres sejam penalizadas por o serem; e mesmo que isso não fosse razão bastante sempre a renovação das gerações será condição de sobrevivência da colectividade.
Há por aí uma maioria, porventura esmagadora, que acha que o problema se resolve a golpes de leis, proibições e multas. E que supõe que em países avançados ele não existe. Mas existe, claro, que por toda a parte se sabem fazer contas.
Daí que a solução para a qual aponta o autor do artigo seja atribuir aos pais os mesmos direitos das mães - desaparece, como por encanto, o incentivo para a discriminação.
Brilhante, não? Excepto pelo facto de a discriminação se passar talvez a fazer em relação a jovens de ambos os sexos, precisamente a faixa da população mais afectada pelo desemprego.
Mundo complicado, este.
Pergunta-se: Podemos razoavelmente esperar que as grandes empresas se abstenham de usar o seu poder de influência para que os poderes públicos as ajudem a combater a concorrência, ou adquirir vantagens ilegítimas, quando aquelas dispõem de consultores, especialistas, advogados, marqueteiros, lobistas, cujo papel é precisamente influenciar as decisões de quem as pode, consciente ou inconscientemente, ajudar?
Não, não podemos. Os consultores e fornecedores não servem, nem têm que servir, o interesse público, servem o interesse de quem os paga e contratou. E mesmo que nos processos decisórios não haja corrupção, no sentido comum da palavra, a obrigação de quem administra uma empresa não é dar aulas de lucidez ao mercado, defender uma qualquer visão particular do bem da comunidade ou, menos ainda, adoptar comportamentos que, prejudicando a empresa, beneficiassem porventura esta ou aquela categoria de cidadãos.
Não. Nos limites da lei e dos costumes (enfim, com excepções, as realidades costumam resistir a que se as definam em duas ou três frases), o grande patrão defende o interesse próprio primeiro, o dos accionistas depois, e o dos trabalhadores e fornecedores na medida em que o possa casar com os dois primeiros e o imponha a sustentabilidade da empresa.
Não tem que ser assim, claro: se a grande empresa for de propriedade pública não há conflito de interesses, porque o proprietário da empresa é quem define o interesse público. Mas isto, que parece resolver um problema, cria outros maiores: a concorrência, que era justamente o que o patrão antigo queria mitigar, desaparece de vez - e com ela a necessidade da sobrevivência, que explica o esforço para o progresso, a inovação e a produtividade.
De empresas com pouca ou nenhuma concorrência nós, em Portugal, temos vasta experiência; e de concorrência de pacotilha, supervisores cegos e sem dentes, e captura dos poderes públicos para defesa de interesses privados, também.
Desta nada invulgar história tiram-se muitos ensinamentos. Um deles, que é o que escolho, é lembrar que já temos uma polícia, a ASAE, cuja missão é também impôr legislação que não saiu dos órgãos políticos que nos demos ao trabalho de eleger, mas de burocracias anónimas que não respondem perante ninguém, muito menos perante as pessoas a quem se servem doses massivas de propaganda em nome da saúde pública, da segurança, da protecção da Natureza, do combate ao aquecimento global, da poupança energética, do catano - e da UE.
Nós temos muito menos variedades de queijo do que a França, embora estejamos igualmente servidos de asneirol. Mas poderíamos ter sempre a esperança de remediar alguns dos nossos males em mudando os responsáveis. Mas isso serve de quê, se entretanto importamos os males dos outros?
Na terrinha que me viu nascer e onde, salvo uns poucos anos de intervalo, sempre vivi, os jardins e as fontes não param quietos: de vinte em 20 ou 30 anos uma esclarecida vereação tira uma fonte daqui e passa-a para outro lado, à boleia de uma qualquer requalificação, e os jardins ora são de pedra (uma contradição nos termos que esteve em moda aqui há uns anos, por influência de um concelho rival, vizinho, que importou a patetice não sei de onde), ora têm canteiros de flores substituídas com frequência e mantidas a peso de ouro, ora veem os bancos substituídos por outros mais modernos, com design (bancos com design são aqueles em que, invariavelmente, ao fim de dez minutos o rabo está dormente e as costas pedem uma massagem), ora têm espaços pedonais que ontem foram de saibro e tinham o desenho xis e hoje são revestidos no que parece ser barro mas é um material sintético qualquer e têm o desenho ípsilon. Às árvores raramente é dada a oportunidade de terem um porte nobre - invocam-se doenças, reais ou imaginárias, riscos para o trânsito (já não é o primeiro nem o segundo plátano que se atira violentamente contra um automóvel), os bichos perigosos que, subindo pelos troncos, passam para as marquises e daí para o quarto do bebé, a quantidade prodigiosa de folhas que, no Outono, entopem os bueiros e zás, vai abaixo que a Câmara põe outras mais maneirinhas, cheias de saúde e de espécies na moda - ultimamente têm-se transplantado algumas oliveiras, vindas do Alentejo e Trás-os-Montes, vá lá saber-se porquê.
Sempre que há alguma remodelação profunda do espaço público e do mobiliário urbano os ânimos inflamam-se porque o espaço é de todos mas, desgraçadamente, uns desempoeirados gostam quase sempre do novo; e outros, reaccionários, não. As câmaras costumam ter o cuidado de não ofender desnecessariamente os seus munícipes e, se querem fazer algum disparate controverso, munem-se de projectos assinados por arquitectos prestigiados: quem ousa dizer que a Avenida dos Aliados, no Porto, não ganhou nada com a intervenção de 2006, na qual participou Siza Vieira?
Surpreendentemente, porém, neste género de assuntos costumam estar ausentes considerações economicistas. É como se decidíssemos remodelar a casa porque estamos fartos dela mas não precisássemos de pensar se há para tanto recursos e, havendo, se não poderiam ter utilização mais judiciosa.
A falida câmara de Lisboa, uma empresa cujo CEO passou ao regime de part-time há meses por mor de arranjar uma colocação melhor, tem um jardim meio abandonado numa zona nobre. Porque vai requalificar a zona para nela instalar coisas que acha mais úteis do que as que lá estão? Porque vai fazer um jardim japonês mais nipónico ainda do que os autênticos, maravilha futura das hordas de turistas que os paquetes incessantemente despejam? Porque todo o jardim não tem real valor histórico, dada a natureza perecível do meio, a banalidade dos arranjos e a mediocridade dos autores? Vá lá, singelamente, porque não tem dinheiro para o conservar decentemente?
Não. Por considerar que os brasões dos antigos territórios ultramarinos "estão ultrapassados" e que "não faz sentido mantê-los". Por isso, “não vão ser recuperados”. Segundo a mesma fonte, os restantes brasões vão ser reabilitados.
Temos a burra nas couves, assessorzinho de uma figa: Nenhum testemunho do Estado Novo, da 1ª República, da monarquia liberal, da absoluta, da Restauração, do Filipismo, dos Descobrimentos, da Reconquista, do que seja do nosso passado, está "ultrapassado". Porque o símbolo não é a coisa, apenas a representa; e sem o conjunto dos símbolos das ideias mortas amputa-se uma parte da História.
Arranja outra explicação, vereador Zé Fernandes; que essa nem sequer é boa, quero acreditar, para a minoria de lunáticos que te elegeu.
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