Um ladrão rouba informação da empresa que lhe dá trabalho e com ela põe a boca no trombone, numa história rocambolesca que envolve vários países, polícias, magistrados e políticos.
Agiu por ódio aos ricos? Por radicalismo de esquerda? Por querer dinamitar o sistema bancário suíço? Por ter um invencível horror à evasão fiscal? Ou para, mais provavelmente, vender a informação?
Não sabemos. Líquido é que praticou um crime num estado de Direito, que além do mais não é conhecido por ofensas aos Direitos Humanos, ou insuficiências do seu regime democrático, ou a dureza do seu sistema penal, ou a violência dos costumes. Se permanecesse na Suíça estaria provavelmente preso.
Christine Lagarde não rasgou, como devia, a papelada - passou-a adiante. De toda a evidência, o segredo bancário não é um valor que Christine julgue ser seu dever preservar.
Fez mal. E mal fizeram e fazem todos os políticos que sobre este e outros leaks vêm para a praça pública, o olho arregalado de cobiça, as bocas torcidas num rictus justiceiro, bater as mãos no peito a prometer justiça, sob a forma de multas terroristas, confiscos, quando não prisões - ai que somos tão comunas, quando somos da esquerda social-democrata, e tão cowboys americanos, quando não somos.
É claro que os paraísos fiscais não vão acabar, não obstante a lunática reivindicação de muitos profundos pensadores da coisa pública mundial - a isso se opõe a globalização, que implica liberdade de comércio, que por sua vez gera mais alçapões do que os que consegue ver um super-polícia, e o próprio princípio da nacionalidade e independência dos países - sempre haverá candidatos a furar o esquema.
Donde, prejudicar a Suíça é como fazer apreensões de droga: se forem grandes o produto encarece por algum tempo, após o que a produção, ou o engenho do tráfico, recuperam - porque o consumidor, e a procura, não diminuíram. O traficante vai dentro, as polícias fazem o seu show, as televisões agradecem, os pais de família sorriem agradados - e o tráfico arranja outros actores, e outros circuitos.
Isto é muito frustrante para o contribuinte, que imagina que se não houvesse evasão a sua carga seria aliviada. Puro engano: entre o erro dos cálculos sobre a falha de receita (uma parte do dinheiro evadido regressa aos cofres dos Estados sob a forma de impostos sobre o consumo ou sobre a propriedade), os danos à poupança (os Estados não poupam, os cidadãos sim), e os danos ao investimento (os bancos emprestam para investir na proporção, grosso modo, dos depósitos que detêm), o que sobra para alívio não é tanto como se supõe. E fica ainda menos se nos lembrarmos que não há, no passado recente, qualquer prova de que, salvo diktats dos credores, se os Estados deficitários cobrassem mais, teriam défices menores: se cobrassem mais gastariam mais, ponto.
Os Estados não têm défices e dívida, de forma continuada, por cobrarem muito ou pouco - os défices são escolhas.
Acresce que a confiança nos bancos está já, um pouco por toda a parte, abalada, por o sistema de recrutamento não filtrar patifes, carreiristas e académicos travestidos de gestores, sob a supervisão de farinha do mesmo saco, e se ter perdido algures não os fatos às riscas mas a prudência que dantes vinha com eles. Razão por que o sistema bancário não precisa que se nos abale ainda mais a confiança, mesmo que a não mereça, nem de incentivos a evasões para debaixo dos colchões, ou para aforro em antiguidades ou metais, por exemplo.
Depois, espera-se de responsáveis políticos, em sentido estrito ou lato (Christine Lagarde, os governadores de bancos centrais, a cáfila que está no Eurogrupo, ou nos outros enxundiosos organismos supra-nacionais, são políticos), que sejam mais lúcidos, prudentes, ponderados do que a opinião pública. Esta, além de ser uma rameira volúvel - hoje pensa uma asneira qualquer e amanhã outra oposta - vive a reboque de uma imprensa ignara, esquerdista pela sua maioria, que usa pontapear a lógica, o senso e a gramática na mesma frase em que assopra o lume da inveja.
Estou a fazer a apologia da evasão fiscal? De modo algum: ela financia a concorrência desleal, incentiva o desrespeito pela lei e diminui a importância da concorrência fiscal (esta, precisamente, o melhor argumento para a opinião pública perceber que os impostos altos sobre os ricos e as empresas têm consequências no emprego e na riqueza dos países).
Mas não se combate um mal com outro maior; não se conquista, a prazo, o respeito da opinião pública por se a seguir caninamente; e não governa capazmente quem não sabe mais do que os lorpas com que se aconselha.
Pessoa muito chegada enviou-me ontem um e-mail, dizendo o seguinte:
"Bonito de se ver como um só “extremista” e “radical” vale por 500 ou 500 000 betinhos de Massamá os quais mal suspeitam que nem a sua própria sombra tem existência a não ser como porteira (mal-vestida) do “mercado”.
Está pois já provado que a Grécia não é Portugal. A sanidade mental marcou pontos, o que já não é nada mau.
A direita macaca tuga e da Reboleira acusa agora o homem de não ser suficientemente extremista e radical... e que cedeu. Filhos da puta, lacaios de merda!!"
Respondi como segue:
"Convém ler o que foi acordado e não o que se diz que foi acordado. Está aqui. Saliento: "The Greek authorities commit to refrain from any rollback of measures and unilateral changes to the policies and structural reforms that would negatively impact fiscal targets, economic recovery or financial stability, as assessed by the institutions" (sublinhado meu).
Para já, o que os Gregos ganharam foi tempo e mais algum financiamento, durante algum tempo, para evitar a bancarrota. Os europeístas todos suspiraram de alívio; este financiamento é para juntar ao calote; e sem a Grécia sair do Euro, o que acabará por suceder mais cedo ou mais tarde, o problema não se resolve e nem a austeridade acaba nem a dívida diminui (convém lembrar que já lhe foi perdoada metade da dívida, mais de 100.000 milhões). Um dia também saberemos até que ponto em tudo isto anda a mão do amigo americano, que deve ter dado uma palavrinha à amiga Ângela, por não querer que a Grécia se lance nos braços dos outros ortodoxos para lá dos Urais".
E mais não disse. Mas digo agora: o futuro tem uma imaginação inesgotável, quando se trata de desmentir as previsões que para ele fizemos no passado, e por isso adivinhá-lo é um exercício largamente fútil. Podemos porém ter como certo: i) O programa do Syriza é uma versão urbana, jovem, europeia e universitária do chavismo e o que não resulta num país com petróleo, nem nunca resultou em país nenhum, menos ainda pode resultar num país completamente encalacrado; ii) Se o Eurogrupo vier a acomodar algumas das reivindicações gregas, por medo do golpe que a saída daria no ideal europeu, e com isso os ânimos serenarem por algum tempo, ficará aberta a caixa de Pandora do também queremos! de certos países, nós incluídos, para não falar da ajuda eleitoral a todas as fantasias gastadoras das esquerdas pátrias e das dos outros países aflitos - um risco que a Europa do Norte, se tiver juízo, não quererá correr; iii) Com Syriza ou com coronéis, o futuro da Grécia, até onde a imaginação alcança, é negro.
É ainda possível que o fato/gravata deixe de ser a farda obrigatória dos homens políticos, e a valorização em bolsa da marca ETRO. E esse seria, a meu ver, o único resultado positivo de toda esta perturbação. Mas nem isso, ai de mim, é pacífico.
Nas largas centenas de artigos que compus ao longo dos quatro últimos anos saliento com orgulho um sobre o bacalhau fritado, contributo seminal que dei para o acervo de conhecimentos úteis à comunidade e marcadores da originalidade portuguesa no mundo, como tal pacificamente reconhecido por mais de duas pessoas.
E todavia, ainda que seja capaz de estrelar um ovo de forma superlativa (com o sal grosso, umas pitadas, distribuído com dois dedos judiciosos e tempestivos, a fina película cozida mas não o interior da gema, o ovo sem clara crua mas também sem tostado - um prodígio) confesso que os meus conhecimentos de culinária são limitadíssimos.
Era o que faltava se, para ter opiniões sobre culinária, fosse preciso saber cozinhar - as coisas são bem mais complicadas. Aliás, era o que faltava se, para preopinar sobre economia, fosse necessário ser economista, ou, para ter opiniões definitivas sobre a organização política e administrativa da Nação, se requeresse um cartão de deputado.
Não. Não apenas o conhecimento técnico das coisas não qualifica, só por si, ninguém, como, com frequência, desqualifica - porque deforma, afunila, impede recuo, distorce o sentido das proporções. O engenheiro Belmiro de Azevedo, há uns anos, inquirido sobre as reformas necessárias do País, começou pelo organograma do Governo, pobre homem; quem resolvesse reorganizar o trânsito baseado na opinião dos motoristas de táxi estabeleceria decerto uma cidade melhor para os taxistas - e pior para todos os outros condutores; e não há, modernamente, desastre grande ou pequeno na economia que não se inspire no receituário de alguns economistas ilustres, adequadamente albardados de diplomas e papers.
Dito isto, a experiência não é tudo o que conta, mas conta. E conta tanto mais quanto o nosso percurso de vida não nos permite avaliar, por falta de referências, a realidade sobre a qual queremos agir.
Gabriel Mithá Ribeiro conta aqui a sua história de vida, com patente sinceridade, e diz a certo passo: "Se me sinto afortunado foi porque cheguei a Portugal numa altura em que ninguém me estendeu a muleta do coitadinho, ninguém me viciou na ideologia dos subsídios. De então para cá vi-a crescer, institucionalizar-se e radicalizar-se sem que o mal social de fundo fosse debelado".
Ou seja, de uma penada rebenta com boa parte do fonds de commerce da Esquerda. Isto, vindo de quem se espera que tenha o discurso do ressentimento e da reivindicação, deve doer.
Não a mim, que não enfiei a carapuça. E, se tivesse enfiado, ocorrer-me-ia tentar explicar por que razão a história não suporta a conclusão; mas nunca me passaria pela cabeça tachar o atrevido de pretinho salazarista.
Encaro com desgosto o facto de, salvo umas petições cuja assinatura volta e meia me solicitam, para fazer número, nunca um grupo de ilustres me convidou para fazer parte do elenco de notáveis que todos os trimestres se propõe governar o país sem a maçada de concorrer às eleições e as ganhar.
Isto dói. E a razão não deve ser apenas a triste circunstância de viver, como diz uma querida amiga minha, na Lapónia, mas também o facto de nunca me ter sentado à mesa do Orçamento, não ter percursos académicos vistosos para estadear, me faltar o jeito para discursos grandiloquentes e ocos à la Sampaio da Névoa, e não ter a alma à Esquerda.
Valha a verdade que não abundam as cartas que pudesse assinar, pela razão esdrúxula de a maior parte das pessoas que as costumam assinar serem mortos-vivos que não entendem o mundo que os rodeia, nem propõe outra coisa que não seja a reedição do mesmo asneirol que criou o problema que dizem querer resolver.
E todavia esta carta, que gente de representação enviou ao primeiro-ministro, bem a poderia ter assinado. Bastavam uns retoques ligeiros, e subscrevê-la-ia com gosto e orgulho.
A oportunidade passou. Mas quem sabe se o Pimpão que é o primeiro subscritor não lerá estas regras. Deixo, em atenção a esse cidadão ilustre, o texto da carta com algumas palavras trancadas e outras que acrescentei, em azul, por mor de uma a meu ver desejável clarificação.
“As cidadãs e os cidadãos abaixo assinados abaixo assinadas e abaixo assinados manifestam a sua preocupação quanto à posição do Estado Português no Conselho Europeu de hoje. Tem o primeiro-ministro declarado que, mesmo perante a grave crise humana que se vive na Grécia, a política de austeridade prosseguida se deve manter inalterada. Os factos têm evidenciado que este caminho é contraproducente se, em vez de reformar o Estado, se quiser apenas restaurar o equilíbrio à custa do aumento dos impostos.
Não temos dúvidas de que a Europa vive uma situação difícil, pelas tensões militares que a desastrada política da UE criou na sua periferia e pelos efeitos devastadores de políticas recessivas socialistas que geraram desemprego massivo, o aumento do peso das dívidas soberanas e deflação, abalando assim os alicerces de muitas democracias caloteiras. Este momento exige por isso uma atitude construtiva, que conduza a uma cooperação europeia de que Portugal não se deve isolar.
Para evitar uma longa depressão, a União tem de combater a incerteza na zona euro e, para tanto, precisa de uma abordagem robusta que promova soluções realistas e de efeito imediato mediato. O momento actual oferece uma oportunidade que não pode ser desperdiçada para um debate europeu sobre a recuperação das economias e das políticas sociais a reforma do Estado, o aumento da natalidade, a imigração e o aumento da liberdade económica dos países mais sacrificados ao longo dos últimos seis anos.
É por isso também do interesse de Portugal contribuir activamente para uma solução multilateral do problema das dívidas europeias reduzindo o peso do serviço da dívida em todos os países afectados, que tem sufocado o crescimento económico, em troca de um programa consistente de reformas que garanta que os credores não serão penalizados, que não haverá transferências forçadas de recursos de uns países para outros e que o Tratado de Maastricht será revisto para incluir cláusulas que estabeleçam critérios para a saída do Euro agravando a crise da zona euro. Pela mesma razão, é ainda necessário que Portugal favoreça uma Europa que não seja identificável com um discurso punitivo mas com responsabilidade e solidariedade apenas em casos de desastres naturais, e que não humilhe Estados-membros desrespeitando-lhes a independência ao impôr-lhes legislação supra-nacional mas promova a convergência, que não destrua o emprego e as economias mas contribua para uma democracia inclusiva.
Estamos certos, senhor primeiro-ministro, de que agora é o tempo para este apelo à responsabilidade numa Europa em que tanto tem faltado o esforço de certos países comum para encontrar soluções - que não passem por eternizar a dependência com subsidiações que de toda a maneira os cidadãos dos países que paguem mais do que recebem nunca aceitarão - para uma crise tão ameaçadora.”
Janto há muitos anos com pessoas que gostam de alcachofras. Por isso não ignoro, de tanto que já fui informado, que aquele vegetal "faz muito bem ao sangue".
Sobre o que se deve e não deve comer, o que faz bem e mal, adquiri nestas refeições vastíssimos conhecimentos, a ponto de poder discretear com suficiência e profundidade sobre os benefícios da cebola e do alho, os radicais livres e os alimentos que contêm ácidos gordos ómega 3 (salmão e nozes, por exemplo, têm paletes), cujos efeitos na prevenção da depressão, doenças das coronárias e de Alzheimer são por demais conhecidos.
Contribuo em geral para estas conversas com uma atenção respeitosa. E abstenho-me de chamar a atenção para o facto de, sendo o único consumidor de cenoura em dias de cozido à portuguesa, e tendo o caroteno propriedades altamente facilitadoras da obtenção de uns olhos bonitos, nunca os meus terem sido descritos, por ninguém, dessa maneira.
Na verdade, a benefício de um são convívio, nunca ousei revelar o sistema integrado de convicções a que cheguei, movido pelo consumo, décadas a fio, de travessas de petiscos da minha preferência, regadas por canecas de verde tinto grosso e sangrento que qualquer gourmet recusaria com nojo.
E é ele que, salvo vícios induzidos por alimentos refinados (açúcar, por exemplo), ou glutonaria, ou casos de doença, cada um deve comer o que lhe fale ao coração - sem concessões. Ao Amigo não apetece o rico assado que tem debaixo dos olhos, mas está com um apetite inexplicável pelas cerejas que vê na fruteira? Pois coma as cerejas, e encha, de caroços, um balde. E declare, no fim, em resposta aos olhares reprovadores que o fuzilam, que está com fastio, uma doença da qual nunca ninguém disse, graças a Deus, que se curava com alcachofras. Dá-lhe na cabeça, às 5 da manhã, estraçalhar meio boião de rodelas de beterraba em vinagre, acompanhadas de uma fatia generosa do queijo que houver à mão? Pois não hesite - o queijo, o vinagre e a beterraba combinam muito bem, e ficarão na moda no dia em que um chefe fizer uma redução, usando Roquefort, vinagre balsâmico e beterraba da Sicília para o efeito, explodindo o conjunto na boca e na carteira.
Na realidade, as teorias sobre o que faz bem e mal, e se deve ou não comer, variam ainda mais do que os pratos que cada novo cozinheiro de renome acrescenta à cozinha tradicional da sua região, que aliás com frequência ignora e pela qual nutre um mal disfarçado desprezo. E é um tenaz mistério para mim por que razão tanta gente deixou de comer carne de porco, ou fritos disto e daquilo, por os senhores médicos lhes entupirem os ouvidos com a ameaça de entupimento das veias induzido pelo abençoado requinho, hoje reabilitado.
Pois bem: era indisputado junto dos cognoscenti que o pequeno-almoço era a refeição mais importante do dia. E não poucas vezes assisti ao espectáculo deplorável de gente cheia de remelas e ar atordoado que, nos buffets dos hotéis, se acotovela junto do balcão de frios, dos quais faz uma pirâmide no prato com a qual, com fome ou sem ela, se atocha acto contínuo.
Já não há respeito: afinal o pequeno-almoço não é a refeição mais importante do dia; não há refeições mais importantes do que outras; e o copo de sumo é dispensável.
O Professor Newby e os investigadores da Universidade do Alabama que chegaram a estas conclusões mereceriam ser seguidos com atenção, porque não ficará decerto por aqui o contributo que darão para a verdadeira Ciência. Mas - lá está - Steven Miller, doutorando em Neurologia, na especialidade Cronofarmacologia, vem dizer no mesmo artigo que, café, só depois das 9H30.
Estragaste tudo, Steven, pá. Café é, como o Natal, quando um Homem quiser. E se os arguentes na tua tese de doutoramento tiverem juízo vais receber - nem de propósito - bolas pretas.
Pode-se sempre contar com os economistas para explicarem convincentemente por que razão falharam as políticas económicas que desembocaram em desastre, incluindo as políticas económicas que subscreveram.
Se o exercício for feito por um autor competente e hábil, como Vítor Bento indiscutivelmente é, a leitura pode suscitar as perguntas: Como foi possível? Onde estavam com a cabeça?
Decerto que num artigo denso e sumarento como este pessoas diferentes verão coisas diferentes. O que eu vi, à revelia do autor, foi um demolidor libelo contra o Euro, sem o qual, a contrario, nenhum dos problemas descritos teria tido lugar. E seria portanto de esperar que quando feito, e bem feito, o diagnóstico, tivéssemos direito à descrição do conjunto de procedimentos para nos livrarmos daquela moeda letal.
Que nada: "Como conciliar a necessidade de ajustamento das finanças públicas de cada país com a necessidade de promover a procura interna no conjunto da zona euro? Um começo seria um maior orçamento (redistributivo) federal, com capacidade de endividamento da própria União" - é a conclusão a que temos direito.
Ou seja: O Euro nasceu para aprofundar a integração, tornando-a irreversível, e para amarrar a reunificada Alemanha à caranguejola europeia; as regras foram as necessárias para o eleitorado alemão abandonar o querido Marco e engolir a moeda de parte da União; e como o resultado é disfuncional pretende-se agora que os eleitores dos países excedentários encostem a barriga ao balcão em nome de um raciocínio económico subtil, que aliás não é nem pacífico nem susceptível de ser aceite pelas opiniões públicas dos países envolvidos. Tudo isto sem dizer nada dos países que não estão no Euro, e que teriam também que aumentar a sua contribuição para resolver um problema que não criaram.
Talvez a verdadeira loucura tenha sido, e seja ainda, deixar que grandes ideais nos obnubilem o raciocínio: a CEE foi uma história de sucesso; a UE não. Do que se faz mister para vencer a doença é extirpar o vírus - não tratamentos sintomáticos.
Não é que Vítor Bento ofereça um catálogo de soluções, a julgar pela amostra, que sejam desprezáveis. É que não há nenhum modelo razoável que assente no princípio de que há Europeus, porque os Europeus só existem geograficamente. Politicamente há Alemães, Ingleses, Franceses, Portugueses, Gregos e muitos outros - Europeus não.
Vítor Bento, isto, não sabe. E, não sabendo isto, o que sabe não serve para nada, a não ser para explicar amanhã porque falhou o que defendeu hoje.
A Deco, uma prestigiada organização de consumidores que tem como escopo reclamar mais leis, regulamentos e fiscais para resolver problemas que existem e outros que inventa, dá-nos esta notícia sobre um moço sonhador que imaginava ser proprietário de um automóvel, baseado no facto pueril de o ter pago e de circular legalmente com ele.
O jovem imprudente resolveu vender o veículo mas, mesmo que mortos de curiosidade, ficamos na ignorância do motivo: Perdeu o emprego? Decidiu passar à condição ecológica de pedestre? Teve um desgosto de amor e não suporta mais a recordação da ninfa (ele vive perto do rio Cávado) com a qual trocou gratificantes impressões no banco de trás, em noites de lua nova? Precisa de ir a Lisboa, e quer-se arruinar com um carro novo, para não infringir as proibições do edil (em tempo parcial) Costa?
Não sabemos. Do que somos inteirados é que o imprudente colou um papel no vidro de trás com o seu número de telemóvel, a cilindrada e a potência do carro.
Tivesse ele colado uma caricatura de Aníbal com os dizeres "Cavaco é burro" ou um autocolante com a foice e o martelo orlados com o bordão célebre "Abaixo o Fascismo e quem o apoiar" e a Polícia encará-lo-ia com bonomia - liberdade de expressão e essas coisas que até os senhores guardas entendem.
Não contente com indiscretamente anunciar o seu número de telemóvel e os dados do veículo, este ser antissocial "estacionou o carro em frente a casa, num lugar de estacionamento".
Isto foi a gota de água. Tivesse ele estacionado numa rotunda ou descampado livre, ainda vá que não vá, é permitido. Agora, num lugar de estacionamento? "Coima de € 30 a € 150, no mínimo".
Vai a Deco reclamar a revogação do artigo iníquo e abusivo do Código da Estrada que estabelece a proibição? Vai aconselhar o associado a reclamar, recorrer, reagir, protestar? Vai investigar se quem assinou o diploma tinha ligações a concessionários ou stands de automóveis usados?
Não, que ideia. "Se vai vender um carro, o primeiro passo será fazer uma pesquisa nos classificados, concessionários e agências para saber o preço de mercado. Pode colocar o carro à venda em anúncios em jornais ou sites específicos" - é o que se lhe oferece dizer.
Diz que é uma associação de defesa dos consumidores. Consumidores de quê? De asneiras?
Sobre os mortos, ou moribundos, por causa da hepatite C, José Manuel Fernandes diz coisas sensíveis e acertadas. E conclui: "Mas gostava que no meu país, se um dia eu próprio me vir numa situação semelhante, a decisão não fosse casuística (e não sei sequer se foi o que aconteceu neste caso), gostaria que a decisão fosse informada por critérios éticos e acompanhada por boas práticas médicas. Infelizmente tenho pouca esperança que isso aconteça".
Também eu. Mas acrescento que, por muito lúcido que seja o ministro do dia, muito trabalhador o secretário de Estado, muito competente o Diretor-geral, e muito dedicado o Director do Hospital, nunca o Serviço Nacional de Saúde funcionará bem, por assentar em pressupostos errados: a saúde universal e gratuita para todos não é possível, por a demografia, os limites fiscais, e os custos da evolução tecnológica, não o permitirem; por muita norma e protocolo que todos os dias se emitam, sempre haverá uma situação imprevista, um medicamento ou procedimento novo, que a burocracia avaliou mal ou não acompanhou; e sempre algum funcionário, em alguma parte, deixará de pôr no desempenho das suas funções o empenho que poria se a sua carreira e os seus ganhos dependessem disso.
Depois, os hospitais-gigantone não funcionam nem podem funcionar bem; e o centralismo, a normatização das compras e dos procedimentos, a complicação das hierarquias, dos grupos de pressão e das interferências, tudo concorre para a monstruosidade de uma máquina que mostra as suas engrenagens roídas e perras mal alguém, movido pelo estado de necessidade do País, decidiu começar a pô-la a trabalhar com menos, quando ela, pela sua natureza pública, só sabe trabalhar com mais.
Mas não vale a pena pensar em sistemas alternativos. O País comprou, há décadas, a ideia de que o papel da iniciativa privada na Saúde era complementar e subsidiário; e que aquele bem público deve ser assegurado por um serviço público, ficando para a iniciativa privadas as sobras, e a medicina para ricos, que não estão para aturar demoras, descasos e abusos. Esse caminho teve sucesso: houve melhoria de muitos indicadores, dada a crescente parcela dos recursos públicos que foi afecta ao SNS; e pensou-se que o limite era o Céu, e não a dura realidade da troica e da parede em que, tarde ou cedo, batem todos os socialismos.
A concorrência é pouca. E, por vezes, inexistente: não nascem facilmente iniciativas privadas para competir com oferta pública grátis. Por que razão se imagina que a ausência de verdadeira concorrência e a troca da relação cliente/fornecedor pela de utente/funcionário é uma receita para o sucesso ultrapassa o entendimento.
Alguém imagina o que sucederia a uma companhia de seguros que deixasse morrer pessoas com seguro de saúde por causa do preço dos medicamentos? E alguém imagina que os poderes públicos não interfeririam sempre que houvesse nas apólices (como fatalmente haveria, dada a natureza congénita de quadrilhas de ladrões que é a marca das seguradoras) cláusulas abusivas?
Resta que estamos perante uma morte, e uma morte escusada. E o mínimo que se exige é que estas perguntas ("É verdade que a doente recusou medicamentação convencional mas com alguma eficácia? Porquê? Porque levou a autorização do Infarmed tanto tempo a chegar?") sejam respondidas rapidamente e sem a conversa de chacha do costume - rolando sem apelo nem agravo as cabeças que forem necessárias se alguém não agiu com a diligência que era exigível, incluindo no hospital onde a senhora morreu.
Quanto aos outros doentes, é claro que o sofosbuvir vai aparecer. E, por caridade, não comento a forma como os responsáveis políticos se comportaram - uns, do lado do Governo, menoscabando a gravidade do que aconteceu, outros, da Oposição, a aproveitar a boleia do escândalo.
Quanto ao comportamento da Gilead, talvez devesse haver alguma frieza na apreciação: os ganhos milionários são a melhor garantia de que se investe o suficiente na investigação. E, entretanto, este conselho de David Marçal, que aconselha o Estado à prática de um crime, não o deito fora. Não porque seja sequer pensável que o nosso débil Estado possa, com impunidade, praticar crimes. Mas sim porque, com secretas, bancos, e laboratórios clandestinos, talvez fosse possível engendrar alguma coisa, nem que fosse contrabando do Egipto. Por uma vez, a nossa considerável experiência de trapaceiros seria bem-vinda; e a tradicional inércia da nossa investigação criminal faria o resto.
Sou já suficientemente velho para me lembrar ainda dos agentes técnicos de engenharia, dos arrumadores de automóveis e dos furriéis-enfermeiros. As duas primeiras categorias desapareceram, uma por as escolas superiores apenas formarem engenheiros, na variedade turbo que é para o que dão três aninhos; a outra porque, correspondendo a uma saudável evolução semântica que traduz o respeito devido a todas as profissões, os seus membros são agora designados por técnicos de parqueamento automóvel; e a terceira terá também desaparecido porque, dela não ouvindo referências há anos, posso legitimamente presumir que todos os antigos militares com aquela graduação terão sido promovidos a sargentos-médicos.
Outras profissões não menos dignas têm visto a sua designação tradicional substituída: por exemplo, ao meu falecido Pai, se renascesse, teria o prazer de dizer: Pai, já não é guarda-livros, é técnico de contas! - ao que este muito provavelmente responderia: Deixa-te de palermices, rapaz, mudar o nome às coisas não muda a natureza delas. Pobre pai, que se informado que agora tinha uma Ordem, com um Bastonário a expectorar volta e meia na praça pública o seu sentir de socialista em relação ao Plano Oficial de Contabilidade, a reforma do IRC e a justiça social, haveria de sentir não orgulho mas embaraço.
Esta evolução é imparável; e tempos virão em que os mancebos, na altura em que dantes iam à Inspecção, receberão uma licenciatura da sua preferência e a inscrição numa Ordem, em simultâneo com a renovação do Cartão de Cidadão.
Já não vou ver esse tempo, infelizmente. E no meu caso será de dizer que nasci cedo de mais porquanto, dados os meus conhecimentos sobre hititologia, uma disciplina de tal modo rara que a sua designação nem sequer existe em Português, seria da mais elementar justiça a outorga de uma licenciatura em Antiguidades Obscuras. Munido do diploma, o meu discurso sobre os carros de combate hititas, a propósito dos quais li para cima de um livro, revestir-se-ia de uma autoridade acrescida, que de momento me falece.
A verdade, porém, é que ninguém é obrigado a ouvir ninguém; e alterar, no discurso e nas folhas de salários, a designação de cada um para outra que imaginariamente enobrece, não dá realmente grande trabalho.
Sucede porém que doravante, ainda antes de uma consulta médica, já o paciente pode ser submetido a exames porque um moço licenciado em suturas, injecções intramusculares e desinfecções com mercúrio-cromo, sentado diante de um computador softuérizado com um algoritmo, assim determinou. Parece que é para agilizar a caranguejola das urgências, reduzindo os tempos de espera.
Não é preciso ser médico, nem enfermeiro, nem doente, para perceber que com esta medida o que vamos ter é um desparrame de exames inúteis, conflitos escusados (ao senhor Secretário Leal da Costa - sempre ele, este homem inevitável - não ocorreu que haverá doentes que se recusarão a fazer exames determinados por um enfermeiro), e guerra entre enfermeiros e médicos.
E isto os senhores doutores enfermeiros, a respectiva Ordem, e o Secretário Leal, que me perdoem, mas eu não vejo com olhos pacíficos.
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