Terça-feira, 29 de Setembro de 2015

Preconceitos

O meu primeiro cliente alemão, que desencantei há quase trinta anos, fez, com a sua primeira encomenda de um TIR completo, uma coisa estranha: mandou um plano de carga do camião - o que ia por baixo, o que ia por cima e em que lugar exacto.

 

Obedeci: então como agora evito discutir com clientes. Mas como, tratando-se de à volta de 20 grades de madeira envolvendo móveis pesados, de formas e pesos variáveis consoante os modelos, e não havendo jamais duas cargas iguais, de camião para camião; fui chamando a atenção para o desperdício de espaço, que o cliente pagava, por às vezes pequenas diferenças no tamanho interior do camião poderem significar, com uma disposição diferente, um ou dois móveis a mais ou a menos.

 

Ao fim de um ano, o cliente cessou de mandar planos: na dura cabeça de algum burocrata alemão entrou a ideia, decerto surpreendente, de que os operários portugueses não eram inteiramente idiotas.

 

Acabei por conhecer o patrão da firma pessoalmente. E só o visitei uma vez porque o homem não dominava o inglês mas tinha a estranha noção de que, falando muito devagar e aos berros, aquela língua que partilhava com Wagner e Goethe haveria de penetrar na espessa cabeça deste Ibero. A secretária que servia de intérprete (e que, na minha mente retorcida, alertada por pequenos detalhes, logo suspeitei partilhar com o boss algo mais do que o expediente) nem a crescente lentidão do discurso conseguia acompanhar - o que tudo fez com que, despedindo-me com os protestos da minha mais alta consideração, nunca mais lá tivesse posto os pés. Não que isso tivesse prejudicado o negócio ou me obrigasse a contratar os serviços de um intérprete - havia no staff dele (a firma era grande) quem escrevesse excelente inglês.

 

A minha vida e a indústria mudaram muito, e hoje o meu importador não é o mesmo, nem o mesmo é o produto. Mas o cliente actual, e a secretária de confiança, só não são tirados a papel químico dos anteriores porque o outro parecia, e talvez fosse, um cavalheiro; e o actual não parece nem é, além de que insiste em conduzir as visitas no seu sempre recentíssimo Mercedes, experiência cujas vítimas, admitindo que haja outros incautos como eu, considerarão por certo tão memorável quanto aquela vez em que experimentaram uma montanha russa, mas sem arnês.

 

É há muitos anos, para um certo artigo, o meu maior cliente. E como sempre foi absurdamente exigente gozava de dobrado prestígio: é com clientes exigentes que se pode melhorar, assim perorava eu junto dos meus fiéis funcionários sempre que vinha uma reclamação de um painel riscado, ou faltoso, num conjunto.

 

Com o tempo fui engrossando nas prédicas. Até que o meu colega responsável pela parte fabril me disse: “Porra, não é possível! Vou fotografar todas as câmaras, uma por uma, para este camelo”.

 

Assim fez. E menos de um mês depois lá veio a reclamação: na câmara com o número de série xis faltava um painel. Conferida a fotografia, a quantidade de painéis estava certa.

 

Razão por que respondi à reclamação informando Herr xpto que possivelmente o motorista do TIR andava a roubar painéis há muito tempo, circunstância lamentável pela qual não era responsável por o transporte ser de conta e escolha dele e as condições de venda ex-works.

 

As reclamações cessaram. E um exame retrospectivo permitiu concluir que, com rigor germânico, os painéis reclamados, de tamanhos e características diferentes, permitiam ao fim de certo tempo construir câmaras completas.

 

Contei esta história a um amigo holandês que trabalha no mesmo ramo. E ele espantou-se com o meu espanto, dizendo-me: “Ó pá, trabalhei dez anos na Alemanha e isso não me surpreende nada. Na cabeça dele, tu é que não tinhas, antes de tirares as fotografias, as coisas bem organizadas”.

 

Preconceituoso, este holandês. Eu também, aliás, digo-o envergonhadamente.

 

 

Será decerto por isso que nem ele nem eu ficámos excessivamente surpreendidos com esta história da Volkswagen.

publicado por José Meireles Graça às 12:33
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Domingo, 27 de Setembro de 2015

Certa visão do país

 

2015-Sondagens-02.jpg

 

Seguindo a escola de interpretação aprofundada por Pacheco Pereira, os números das sondagens podem ajudar-nos a caracterizar o que se passa em Portugal.

 

Começando pela coligação (PàF), com 43% das estimativas de voto. Quer isto dizer que há 57% (ou mais) de patriotas que repelem o governo de Passos Coelho e Paulo Portas, e este é um aspecto que já foi saudado por quase todos os peritos. Mas os dados disponíveis permitem uma análise mais fina.

 

Aplicando a mesma técnica, podemos concluir que há (pelo menos) 67% de broncos sem habilitações para perceber que a salvação da pátria está num governo do PS. Sobre estes não se fala tanto.

 

Aparentemente, as pesquisas apanharam 92% de fascistas que não votam na CDU; 93% de provincianos que não acompanham as propostas do Bloco; e 95% de camelos que insistem em votar nos mesmos partidos de sempre. Ninguém abriu a boca para denunciar esta gente, sobretudo se levarmos em consideração que o grupo dos camelos inclui uma percentagem elevada de lacaios do capitalismo e de traidores que, nos propósitos metafóricos do MRPP, deviam ser assassinados.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 16:23
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Quinta-feira, 24 de Setembro de 2015

Dura lex sed mollis

No dia 4 do mês que vem vamos eleger a Assembleia da República. É um dia alegre - livramo-nos da campanha eleitoral, da promessa diária matutina de Costa, quando vemos as notícias à hora do almoço, da promessa diária vespertina do mesmo inimputável, quando as vemos depois do jantar, da vozinha esganiçada de Catarina, a fingir que não é comunista, das homilias de Cunhal reencarnadas num simpático operário fóssil, dos discursos cansados da Coligação, cavalgando o asneirol que a oposição ministra liberalmente, ao qual, aqui e ali, acrescenta os seus deslizes, e da floresta de comentadores que se entretêm com tudo isto.

 

Lá pelas oito da tarde, ou pouco mais, saberemos, se for verdade que não há maioria absoluta, que tipo de confusão vamos ter: se o PS ganhar, quanto tempo será preciso para o seu eleitorado se arrepender pelos incumprimentos de promessas, impostos por Bruxelas e a moeda única, e pela derrapagem de todos os magros indicadores positivos, inevitáveis sob uma gestão socialista; se ganhar a coligação, quanto tempo durará um acordo mole na Assembleia, até o PS achar que a situação está madura para novas eleições, ou a coligação se fartar de não conseguir impôr quase nada da sua, aliás magra, agenda reformista.

 

Pode não ser assim, claro, que há mil maneiras diferentes de prever o futuro, e só uma em que ele acontece, que poderá ser a milésima primeira. Os imigrantes, os refugiados, o preço do petróleo, o papel do BCE, o referendo em Inglaterra, a queda de um meteorito, a invenção do motor movido a água, um terramoto em Lisboa, até mesmo, se quisermos exagerar, a vitória do Benfica no campeonato - tudo pode influenciar o curso dos acontecimentos.

 

Entretanto, temos que viver. E a nova Assembleia, bem ou mal, cumprirá enquanto durar o seu papel de fazer leis, boas ou más, às quais, gostemos ou não, temos que obedecer.

 

Todos? Não. O Instituto dos Registos e do Notariado "discorda e, contra a lei, não emite os cartões. Pelo menos, até encontrar uma solução que satisfaça a segurança das assinaturas electrónicas, que diz estar em causa com esta alteração legal".

 

Claro que o presidente do IRN, um tal Ascenso Maia, já devia estar demitido - afinal a notícia já tem uma semana e, para demitir um funcionário que, mesmo que com boas razões, se recusa a cumprir uma lei da República, deve bastar um telefonema, no intervalo de duas arruadas.

 

Mas, da demissão, não há notícias. Isto das campanhas eleitorais perturba os responsáveis políticos. Ainda que, mesmo fora delas, com frequência sejamos atingidos pela suspeita de que, quando não estão em campanha - é como se estivessem.

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publicado por José Meireles Graça às 02:16
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Quinta-feira, 17 de Setembro de 2015

Regulando os tuquetuques

Há passageiros que querem ir de um lado para outro em tuk-tuk, e condutores de tuk-tuk disponíveis.

 

Não havia porém legislação específica para os tuk-tuks, o que dava como resultado que uns eram eléctricos e outros não, deslocavam-se por todo o lado sem nenhum outro respeito que o das regras do trânsito (e nem mesmo essas, paravam em fila dupla, uma coisa raríssima em Lisboa e no Porto, duas cidades bem servidas de parques práticos e baratos), apareciam em cores diferentes e, em havendo clientes, chegavam a circular antes do dia nascer e depois do sol-posto.

 

Dos condutores é melhor nem falar, que um fiscal Cosme, secretário-geral do Sindicato Nacional da Actividade Turística, Tradutores e Intérpretes (SNATTI) denunciou há tempos o estendal de tolices que aqueles aldrabões dizem aos turistas, em clara concorrência ao asneirol exclusivo dos trabalhadores sindicalizados.

 

Este escândalo incomodava a Assembleia Municipal e a ANTRAL, cujo presidente, Florêncio de Almeida, declarou há tempos: "Penso que resolverão o problema, nem outra coisa seria de esperar". O problema dos lisboetas, claro, que tira o sono a Florêncio e aos senhores deputados municipais, sobressaltados pelo claríssimo abuso de "algumas empresas que operam tuk-tuk [que] dão aos turistas a possibilidade de fazerem percursos livres e não previamente estabelecidos, como acontece com outros serviços turísticos".

 

O presidente Medina, um moço diligente ao qual se augura um grande futuro, foi sensível a toda esta problemática (para usar uma expressão que tem livre curso na agremiação política a que se acolhe) e "decidiu antecipar algumas medidas do há muito prometido regulamento para estes veículos, que só vão poder circular entre as nove da manhã e as nove da noite".

 

Não creio, porém, que as medidas sejam suficientes. Alvará? Formação dos condutores? Trajo obrigatório? Cores dos veículos? Características (além da obrigação de serem eléctricos, decerto para não serem confundidos com táxis)? Homologação? Taxímetro? Tabela de preços? Certificado de competências em línguas estrangeiras? Formação em guias turísticos?

 

Sobre isso, e muito mais, o regulamento é, a julgar pela notícia, omisso.

 

Medina não pode pois dormir em cima desta iniciativa. Cumpre aperfeiçoá-la, em nome da competividade, um conceito, e uma palavra, inventados pelo edil de quem herdou o múnus.

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publicado por José Meireles Graça às 00:03
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Terça-feira, 15 de Setembro de 2015

Receita mais rápida que a bimby para ganhar eleições

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"Homo Sombrus"

As dores para ganhar as eleições e o previsível empate técnico que lançará ainda mais dúvidas num eleitorado, que não já não confia, seriam muito fáceis de resolver.

Seria convocada uma breve conferência de imprensa. Nesta, o secretário-geral do partido, diria:

"Devido ao adensar dos indícios muito graves de má utilização do cargo político e após aturada reflexão, chegámos à conclusão, de que não podemos mais manter a solidariedade política com o ex-primeiro ministro. Assim, o nosso partido anuncia, a partir de hoje, que iniciará uma colaboração activa com a justiça no sentido de apoiar o processo judicial em curso, ou outros novos, que possam também incidir sobre ex-governantes da nossa área. O sucedido até 2011 é de gravidade indédita na democracia portuguesa e o nosso partido pretende esclarecer, custe o que custar, tudo o necessário para que a justiça seja feita e os responsáveis julgados e afastados da política a bem da tranquilidade social".

Sondagens no dia seguinte? 40% para o partido em causa.

É fácil.

 

 

 

 

publicado por João Pereira da Silva às 14:49
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Auto-retrato de uma investigadora

 

Raquel Varela-01.jpg

 

E a credibilidade do artigo, quem mediu? Foi a “prestigiada revista académica”? Foram as 20 páginas? Foi o mês que demorou a escrever? Foram os 10 anos que demorou a “investigar”? E o que é que esses números, e sobretudo essas unidades, dizem do interesse “científico”? Zero.

 

Mas o resto diz quase tudo. O mais intrigante é que a senhora vem para o facebook explicar como se constrói hoje em dia o “prestígio” de quem calha, exibindo, sem se aperceber, o seu próprio exemplo. Só não nos contou como é que estes “cientistas” combinam citar-se uns aos outros, para ficarmos com a descrição completa e toda a gente perceber, sem faltar nenhum detalhe, porque é que a nossa “academia” está infestada de Raquéis Varela.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 12:06
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Segunda-feira, 14 de Setembro de 2015

Catarina e Mariana

 

Acho as duas, cada qual a seu modo, giras (sem prejuízo de as toilettes me merecerem algumas reservas, que não estadeio por falta de vagar). E embora não tenha paciência para lhes ouvir os dislates não veria com bons olhos que desaparecessem do espaço público, onde catalisam a maior parte dos votos dos que querem capitalismo sem capitalistas, mais Estado com mais liberdades, empresas sólidas sem falências, inovação sem recompensa, empréstimos sem condições e liberdade do discurso desde que politicamente correcto.

 

Comunismo com liberdades, em suma - como se não fosse uma contradição nos termos.

 

Dizer que são giras é desde logo uma afirmação sexista. O que é que isso interessa para aferir do mérito das posições políticas? E falaria do mesmo modo se fossem dois gajos giros?

 

Não, não falaria do mesmo modo - nem nisso falava. Mas sucede que sou sexista, e bardamerdo ou bardamerda, consoante o sexo da vossa preferência, para quem tenha opiniões diferentes.

 

Se estas duas libelinhas, portanto, levassem a delas avante, não corríamos nós apenas o risco de inaugurar com frequência murais pirosos, correriam elas o risco de, a prazo, deixarem de nos povoar as pantalhas com sorrisos e asneiras, porque a multidão que querem acolher, sem critério nem prudência, acha que o lugar delas é em casa ou, se expostas, convenientemente embrulhadas num niqab ou tchador.

 

Sinto-me bem assim, a defender estas donzelas delas próprias.

 

Façam o favor de me agradecer, à vossa maneira, roubando muitos votos ao PS, que essa gente faz-me sombra; e a mim convém-me que o BE seja, objectivamente, aliado da reacção (piscadela, para mostrar que também conheço o vosso dialecto).

publicado por José Meireles Graça às 19:48
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Domingo, 13 de Setembro de 2015

Falar mal, pensar pior

 

Sucata-01.jpg

 

"O resto ficaria por conta do próprio Dr. Costa, que louva imenso a "lusofonia" e fala um português assaz carenciado", escreve Alberto Gonçalves no DN de hoje.

 

Não destaco esta frase por achar que ela é um bom piparote na geringonça política do dr. Costa: as deficiências linguísticas são uma superfície que não precisa de ser arranhada para deixar à vista a educação rápida, mal coada, suja de impurezas, que descansa no erro primário sem correcção e devia assustar-nos para uma longa cadeia de riscos. O dr. Costa recusa a imundície da "contabilidade", e sobe a discussão para a "cultura" com apetrechos de sucateiro.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 17:21
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Sábado, 12 de Setembro de 2015

Derby

Foi trasantontem o derby histórico. Pelo menos, foi assim trombeteado pelos telhados dias a fio pelos canais generalistas e noticiosos, que são os mais vistos.

 

Sucede que debates históricos, entre nós, até à data, houve um, em 1975, que envolveu o então Kerensky doméstico, hoje um revisionista de si mesmo, de um lado, e, do outro, o Lenine local. Esse teve importância, por ser plausível ir-se a caminho de se transformar o país numa Cuba friorenta, coisa que a maioria dos cidadãos via com asco, e as chancelarias do nosso lado do mundo com preocupação, e o resultado dele serviu como catalisador do movimento social anticomunista. O país que temos hoje seria possivelmente o mesmo se Cunhal tivesse "ganho", mas o debate teve a marca de um momento único e a carga simbólica de uma encruzilhada.

 

Suspeito que mesmo esse a geração mais bem preparada de sempre ignora. E é aliás por os ignorantes não interpretarem o presente como um continuum do passado, que desconhecem, e não terem noção da importância, ou falta dela, de Portugal na Europa e no mundo, que não há uma final de uma competição desportiva, ou um novo triunfo de Ronaldo, ou o reconhecimento de um sucesso qualquer de um investigador ou de um artista nacional, que a torto e a direito somos brindados com a qualificação de histórico para cobrir banalidades e efemérides - tudo parece muito importante quando não é visto em perspectiva.

 

O debate não foi "histórico". E "derby" também não: nem houve corrida de cavalos (quando muito, forçando a nota, uma mula manhosa e um cavalo cansado), nem outra competição desportiva em campo aberto, e ninguém estava de chapéu.

 

Passos perdeu, na contabilidade de truques e traques, e a nação rosa entrou em delírio: todos os cortes serão anulados; o país acelerará o crescimento; as apostas na ciência, na educação, na formação, na qualificação, no investimento público, serão retomadas; os emigrados começarão a retornar à terra socialista que lhes deu o ser, onde os salários subirão porque o modelo da competitividade (Costa diz competividade porque conhece a palavra de oitiva e Edite Estrela, a gramática de serviço, ainda não reuniu coragem para o corrigir) baseado nos baixos salários será abandonado; e apenas o TGV e a nova ponte sobre o Tejo não verão tão cedo a luz do dia, não vá imaginar-se que Costa não é abissalmente diferente de Sócrates.

 

Ignora-se se o eleitorado comprará este amontoado de tretas; e, na dúvida, o próprio garantiu, e é capaz de cumprir de imediato e durante algum tempo, que devolverá aos reformados e contribuintes o que lhes foi retirado, com receitas que hão-de vir do crescimento, das portagens, das autoestradas, do imposto sobre as heranças e os ricos, ou por intercessão de nossa senhora de Fátima ou do senhor Draghi, confiante em que os reformados que sofreram cortes (a menor parte do universo deles, aliás) mordam o isco e isso seja suficiente para fazer a diferença.

 

Sobre o que valem os debates dizia Eduardo Cintra Torres, em trabalho académico recente, o seguinte: "Mas a hipótese mais significativa que colocamos é a de que a impossibilidade de provar uma relação directa entre os debates e a intenção de voto deve ser incorporada na teoria sobre o assunto, menos como uma dificuldade metodológica do que como uma comprovação de que os indivíduos não se comportam como espectadores de debates da mesma forma que como eleitores".

 

Sobre o debate em si, devo ter lido para cima de trinta opiniões diferentes, de um lado e outro da barricada, em geral sérias, descontados os enviesamentos das simpatias partidárias - de que aliás também sofro, porventura menos do que muitos.

 

Creio porém que dois aspectos não foram suficientemente assinalados: um é o de que Costa se revelou um mentiroso contumaz e consciente, a tal ponto que a ideia de que é igual a Sócrates é não apenas um slogan político para o colar àquele desclassificado mas a enunciação de um perigo real: a afirmação despudorada de ter reduzido o endividamento de Lisboa em 40% (a operação de compra de terrenos que lhe fizeram, puramente de ocasião, caiu-lhe do céu e teria sido feita por qualquer outro edil nos mesmos termos), o mantra inteiramente fabricado de a coligação ter ido além da troica e a sugestão de ter sido o PSD responsável pelo convite à sua vinda ilustram o ponto. A propósito, não faltam por aí socialistas, e outros mentecaptos, a argumentar que se o PEC IV tivesse sido aprovado a tróica não teria vindo, mas cabe fazer a pergunta óbvia: se o PEC IV continha o futuro programa da tróica, e por isso garantia a continuação de financiamento, Costa queixa-se de o PS ter sido impedido de executar um programa do qual se queixa?

 

Passos foi apanhado de surpresa por este culot, e não reagiu à altura. De resto, o formato do programa, em jeito do twitter, que não permite o desenrolar de nenhum raciocínio, beneficia quem tem agilidade no discurso e ideias gerais a fazer passar em frases curtas - Costa é nisso melhor.

 

O outro aspecto é que o desconforto do incumbente veio-lhe também de um erro crasso do argumentário do PàF, que consiste em negar que a coligação desejava o programa do MoU. Nesse programa os prazos e as metas não eram os desejáveis, e não foram aliás cumpridos - as instâncias internacionais estão recheadas de teóricos da economia, bancários e pataratas, com perdão da redundância, e precisam primeiro de fazer asneiras, e ver o empenho dos devedores, para emendarem a mão. Mas o murro na mesa dos credores era não apenas inevitável como desejável: se tivesse vindo mais cedo seria a dívida menor. E negar que as ideias gerais do programa eram uma medicina dolorosa mas necessária, e que assim foi desejada e entendida pelo governo da coligação, é o mesmo que dizer que, agora que se foram embora, podemos, com um pouco mais de cuidado, voltar aos bons velhos tempos. Parte do eleitorado sabe disso. E se todos o aldrabam pode sentir-se tentado a escolher quem é, na aldrabice, especialista.

 

Não podemos voltar. Diz-se por aí que as instâncias europeias, escarmentadas, farão com que não haja diferenças de monta, em matéria orçamental, entre um governo da esquerda ou da chamada direita. Talvez. Mas o governo não é apenas o orçamento, o diabo está nos detalhes, e não há limites nem para a ingenuidade dos nossos louros supervisores nem para a capacidade tuga de aldrabar - querendo.

 

Costa, está visto, quer. Como verão os eleitores enganados e os credores arrepelando os cabelos - se ganhar.

publicado por José Meireles Graça às 16:26
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Ignorância atrevida

Um amigo com uma cabeça bem ordenada, portanto de direita, mas que não pertence à brigada do reflexo condicionado (isto é, aquela malta que acha que o governo faz tudo bem e a oposição só diz asneiras) partilhou no Facebook esta notícia, intitulando-a:

 

Contabilistas 1, Advogados 0...

 

Os comentadores cascaram largo na medida e este vosso amigo foi particularmente pertinente, por isso transcrevo:

 

Como se já não bastasse o advogado que julga que direito é o direito positivo e que não sabe articular nem sequer escrever em português; nem o funcionário vesgo que encornou umas circulares que julga que têm eficácia externa: agora também os guarda-livros. Estatização 1, Direitos de Cidadania 0.

 

Claro que os técnicos de contas não sabem, nem precisam de saber, o que é direito positivo nem o que significa eficácia externa. Mas que sejam atrevidos compreende-se: a ignorância costuma sê-lo - mas não devia governar.

publicado por José Meireles Graça às 16:23
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