O governo que tomou ontem posse começa com confortável superioridade prática: a expectativa benevolente da maior parte da comunicação social; a esperança, crédula nuns casos, céptica noutros, de boa fatia dos eleitores que a aplicação do programa da troica penalizou com um colossal aumento de impostos, despedimentos e cortes, de verem tudo revertido; o apoio de parte substancial dos alquimistas universitários da economia (isto é, dos catedráticos à la Centeno e seus discípulos, que acreditam que o Estado sabe investir, e por essa via induzir o crescimento que pagará no futuro o aumento de endividamento feito no presente e permitirá o alivio dos impostos entretanto aumentados); o apoio nominal dos partidos comunistas, presumivelmente mais sincero no caso do BE; e a simpatia de quase todas as capelas do PS, pelas quais Costa distribuiu equanimemente lugares, incluindo no Parlamento, onde deixou dois ou três galos de combate, como o gongórico Carlos César, o esfusiante Galamba e Trigo Pereira (este último para, albardado com a clássica autoridade doutoral com que em Portugal se embrulha o asneirol, defender ex cathedra o programa económico do PS).
E nem sequer esqueceu as nomeações politicamente correctas: uma negra e uma invisual, em relação às quais temos que fingir acreditar, sob pena de sermos considerados racistas ou insensíveis, que as respectivas condições não tiveram qualquer peso na escolha, no caso de acharmos, como eu acho, que o principal critério para o desempenho de funções políticas deveria ser... a competência para o desempenho de funções políticas ao serviço de uma ideia clara do que é o bem comum nesta ou naquela área - o que, naturalmente mas não principalmente, implica conhecimentos, e aconselhamento, técnicos.
A perfeição não é deste mundo, e as mulheres estão insignificantemente representadas. Não decerto porque tenha havido quaisquer tentações misóginas na escolha do elenco, mas porque não era possível, ao mesmo tempo, cobrir quase todos os ângulos donde possa surdir futuramente o inimigo dentro de portas e ter uma percentagem relevante de mulheres - as coisas são como são.
Este é o governo de um mágico da táctica política, capaz de transformar uma clara derrota pessoal numa vitória em todas as frentes, ou de um desprezível pote de banha ambiciosa - é como se queira, as duas descrições são boas e optar por uma ou outra depende sobretudo da inclinação política e do entendimento que se faça do que é ou não aceitável na gestão da carreira.
Falhará miseravelmente. Porque Portugal é hoje menos independente ainda do que o foi no tempo dos Filipes; a ideia de que escolhas democráticas se podem sobrepor à vontade dos credores, e obrigá-los a manter a bolsa aberta, não é mais do que uma demência que os comunistas por calculismo, alguns esquerdistas sortidos por ingenuidade, muitos socialistas por interesse e intelectuais como Pacheco Pereira por partirem de pressupostos errados, subscrevem; e a fé que norteia Costa de que a sua simpatia, que imagina irradiante, o seu palavreado, que supõe envolvente, e as suas artes diplomáticas, que julga superlativas, levarão a Europa a mudar, só poderia conduzir a bom porto, e mesmo assim transitório, se por artes mágicas uma vaga de fundo socialista, e socialista à maneira do sul, tomasse conta do continente, em particular dos países que pagam mais do que recebem.
Não é que não se possam impor condições aos credores - podem. Em sendo uma super-potência (o que sem dúvida somos, em relação ao Lesotho e Vanuatu) pode-se fazê-lo, inclusive, sem consequências visíveis. Mas em todos os outros casos, que são a quase totalidade, o resultado foi o desastre. E foi desastre mesmo quando, como com Ceausescu, se pagou mas reivindicando uma orgulhosa autarcia.
Isto na ordem externa. Na interna, os senhores jornalistas, mal pagos, com justificado receio do futuro, ressentidos pela maior parte, e pela maior parte ipso facto de esquerda, não resistirão a transmutar a sua simpatia em verrina à medida que se vá alargando o fosso entre o que este governo promete e o que alcançará; o contentamento dos eleitores evoluirá para tédio, e depois aversão, quando Costa for obrigado a defender cortes; e as consultas da comunicação social aos oráculos da economia, que hoje privilegiam uns, amanhã dirigir-se-ão a outros, que os há para todos os gostos.
Sobretudo o PCP, estancado que seja o risco mortal das privatizações que lhe sapariam o poder de facto e, com sorte, revertida uma ou outra, aproveitará o engrossar da voz da Europa que virá, fatal, para se recusar a trair os interesses das classes laboriosas, dos pequenos e médios empresários e do povo; e o novo presidente, se for Marcelo, e mesmo que não seja, não terá outro remédio, consultadas as sondagens, senão dissolver e convocar eleições.
Pode não ser assim. Costa, se conseguir endrominar os credores, conduzirá o país a um quarto resgate, quer Centeno, impante de satisfação por ser ministro, salte quer não salte a tempo; o PCP pode achar que lhe convém prolongar a experiência do governo, à boleia da sábia análise do que convém em cada momento ao avanço das forças progressistas; e de toda a maneira o futuro a Deus pertence.
E é mesmo a intervenção divina que seria necessária para a aventura, de uma maneira ou outra, não acabar mal.
O epitáfio para a merecida morte política de Costa poderá ser: Neste buraco jaz um político, no que a palavra tem de menos nobre. Cavou-o com as suas mãos, convencido de estar a lançar os caboucos para uma estátua à sua glória.
No dia 30 de Maio de 2012 escrevi e publiquei um texto chamado “O autarca sensível”, contando a história de uma decisão tomada uns anos antes pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Não disse, mas digo agora, que o herói se chamava João Soares - a partir de hoje, o nosso abençoado ministro da cultura.
Republico:
“Nesta altura do ano rebentam as flores dos jacarandás. A cidade fica muito bonita, cheia de manchas azuis que estão primeiro penduradas nas árvores, decorando as fachadas, recortadas nas ruas, entretendo o trânsito. Depois estão no alcatrão, nos relvados, nas calçadas, nas varandas, nos telhados, e no tecido de memórias azuis que tenho no meu cérebro, em cima de um móvel de canto onde guardo os anos felizes que passei na Câmara Municipal de Lisboa.
As casas de banho novas do Parque Eduardo VII estavam quase acabadas. Só faltava decidir sobre a pintura final. Chamada a dar o meu palpite, desloquei-me à obra e pedi ao empreiteiro que fizesse um teste com três cores diferentes, numa parte da parede exterior do conjunto. Passados uns dias, após a secagem das amostras, voltei à obra para uma reunião com "os responsáveis". A fim de tomar a decisão, apresentaram-se o arquitecto (o projecto não era meu), o construtor, uma série de vereadores, e o próprio presidente da Câmara, que não quis faltar uma vez que estava "pessoalmente muito empenhado" no processo e queria assegurar-se que tudo estaria pronto para inaugurar na Feira do Livro, dali a uma semana ou duas.
Foram os últimos a chegar, e vinham do lado de cima. Ouviam com atenção a aula de história que o presidente desenvolvia, gesticulando, parando para apontar, provocando gargalhadas espontâneas e acenos de cabeça. Pareciam um grupo de crianças, as gravatas a esvoaçar, os casacos desapertados como os bibes no recreio. "De maneira que isto, por aqui fora, era tudo putas", foi a parte que ouvi quando já estavam a poucos metros.
De seguida, deram-se as apresentações. Trocaram-se apertos de mão e os vereadores trocaram olhares cúmplices e divertidos. De pé, todos dispostos em bateria, semicerraram os olhos e fizeram silêncio por uns segundos, contemplando os rectângulos de tinta colorida, concentrados a apreciar. Da boca socialista do presidente que, apesar de calado, nunca tinha chegado a fechá-la, saiu uma decisão: "Vermelho está fora de questão. Epá, para vermelho já me basta as gajas uma vez por mês".
Aturdida com a sensibilidade do poeta, com o coração enaltecido por sentir os destinos da cidade entregues a este homem enorme, distraí-me das razões que levaram à exclusão da outra cor. Mas foi assim que em Lisboa, ao fundo do Parque Eduardo VII, para servir a Feira do Livro e os aflitos do ano inteiro, nasceu um edifício de casas de banho da cor das flores dos jacarandás.”
Há movimentos que esticam uma certa arte ao ponto máximo que ela consegue atingir, pelo menos durante um período longo. Abrem direcções cujo abandono significa quase sempre a decadência. Uma das razões que tenho por mais claras é a sobrevalorização da originalidade como um critério errático, solto da substância do entendimento e da interpretação das circunstâncias que distinguem se uma obra é adequada ou se limita a uma afirmação de puro exibicionismo, um espasmo acéfalo de vaidade pessoal.
No design de mobiliário, o modernismo escandinavo estabeleceu e assentou padrões de perenidade que até hoje não foram substituídos. O mundo mudou, o trabalho mudou e os processos também. Isto levanta problemas que a indústria ainda não resolveu - mas há-de resolver. O resto, o que se tem apresentado como evolução, das duas uma: ou se aproxima dos padrões fixados ou balança entre o bizarro e a fancaria.
A história da Olaio não é, como diz o Observador, um capítulo da nostalgia. O que ela mostra, até certo ponto, é a tensão e os sobressaltos que as mudanças nos modos de vida podem provocar no que as sociedades precisam de manter.
Já não conheço verdadeiramente a cidade em que nasci e na qual, salvo alguns breves intervalos, sempre vivi. Ela mudou muito e eu fiquei, no essencial, na mesma. Depois dos tempos do PREC e suas sequelas, e mesmo isso só por que me tocou directamente, deixei quase sempre de saber quem são os politiquetes nativos, o que fazem, o que pensam e o que dizem. Nunca li habitualmente os jornais locais, e quando calhou nos tempos mais recentes passar-lhes os olhos por cima encontrei a mesma mistura de guerrilha política, bairrismo mal entendido, opiniões de mesa de café embrulhadas em doutorices, e má poesia dos vates locais. Nada de substancialmente diferente do que se encontra nos jornais nacionais - apenas, e nem sempre, mais reles.
Pelo menos, suponho que seja assim. Que dos jornais nacionais leio sobretudo opiniões de gente que estimo; opiniões de gente que detesto; e de notícias quase nada, que a faca e o alguidar não me interessam e o resto ou precisa de contextualização, ou tradução para português, ou desconto do enviesamento partidário.
A cidade tem um polo universitário, foi capital europeia da cultura, está permanentemente pejada de turistas, e isso tem consequências.
Uma delas é a proliferação de restaurantes, os quais evito cuidadosamente, que do very typical quero uma prudente distância. E entre raros tascos das redondezas refractários à modernidade, e um ou outro valor seguro que ainda há por aqui, ou em cidades vizinhas, vou-me defendendo.
Mas hoje a companhia habitual faltou-me. E, confiado na opinião de dois amigos gourmet, fui experimentar um restaurante novo. Tem conceito, o estabelecimento, fiquei sabendo pelo empregado, à medida que me foi explicando, por exemplo, que não mudavam os talheres entre pratos e que os podíamos depositar, enquanto esperávamos pelo seguinte, numa peça de aço concebida para o efeito, com um engenhoso rasgo para encaixar a faca sebenta. E do conceito faz parte também uma decoração minimalista, a ausência de toalhas, ou guardanapos, de pano, a proibição de fumar e umas cadeiras que só não transformam o derrière do cidadão numa laje de cemitério se este, sendo mulher, tiver um físico de vénus de Willendorf, ou, sendo homem, umas adiposidades supranumerárias.
Escolhi o menu de degustação - três pratos, fui amavelmente informado - e o vinho, não da carta, que não há, mas do balcão, onde as garrafas estão alinhadas sem preços, que gente fina não se preocupa com detalhes.
O banquete começou com uma sugestão do chefe, consistindo numa mousse de batata com cominhos. E como tivéssemos ficado à espera de outra hipótese, o equívoco foi rapidamente esclarecido, no sentido de que afinal se tratava de uma oferta. Um “amiúje buche”, disse o moço, OK?
OK, venha lá a mousse. Era um copinho da mistela, quente, e não duvido nada que haja quem aprecie.
Seguiu-se um queijo da serra, crocante, num rolinho sobre uma ”cama” de rúcula com um molho cuja natureza não pude apurar. Estava bom, fui esclarecido e concordei. Com alguma melancolia, porquanto tenho a fraqueza de não apreciar transformações do queijo da serra, não ter o hábito de o comer a meio da refeição, e encarar com reserva quantidades homeopáticas.
Em seguida vieram dois bocadinhos de tamboril com arroz de feijão preto. Pareceu bom, o tamboril, embora não tivesse sido possível consolidar a impressão, por esgotamento quase imediato da matéria-prima. Mas o acompanhamento tinha uma dispensável carga simbólica, dado que os feijões faziam lembrar por demais as balas que por estes dias voaram em redor do Bataclan.
Finalmente o porco, acompanhado de uma detalhada explicação sobre os cuidados que foram postos na sua maturação. A gordura que me faltou no rabo, para aguentar as cadeiras, estava liberalmente contida no animal; decerto para evitar danos maiores para a saúde, faltava sal; e, numa louvável preocupação com o equilíbrio dietético, o mundo vegetal estava representado por uns cubos que o acompanhamento continha, sabendo rigorosamente a nada e que anunciei com orgulho serem tofu, para ouvir dizer que não, que aquilo era amido de milho prensado.
A sobremesa vinha num copo, contendo o que me pareceu ser chantilly de bisnaga sobre bocados de fruta de lata, acolitados com bolacha esmigalhada. O mestre de cerimónias, todavia, esclareceu que aquilo era na realidade uma construção de espuma de coco sobre frutos exóticos, OK?
Não ponho aqui o nome do restaurante, que não tem falta de clientes, pelo menos aos fins-de-semana. A mim faz-me falta paciência, todos os dias.
Rui Rocha chama a atenção para o detalhe, que tem passado despercebido, de 72 virgens implicarem 72 sogras.
Não fiquei inteiramente convencido do rigor da observação, porquanto se tem de admitir a possibilidade de algumas das moças núbeis serem irmãs, caso em que o número de sogras se veria reduzido em extensão que não é possível precisar.
Mas, qualquer que seja o raciocínio probabilístico que se queira fazer, sempre se atingirão algumas dezenas daquelas parentes afins. E como não consta que haja falta de candidatos a bombistas suicidas, forçoso é concluir que a lavagem ao cérebro a que são submetidos implica o escamotear cuidadoso daquele facto incontornável, que só por si afastaria da negregada missão não poucos dos futuros terroristas.
Por outro lado, só a juventude e a ingenuidade podem explicar, a meu ver, a atracção pela ideia de deflorar algumas dezenas de raparigas tremebundas e inexperientes: homens maduros e normalmente constituídos, física e psicologicamente, recuariam com horror perante aquela perspectiva.
Gostaria que estas matérias fossem esclarecidas, perante a opinião pública interessada, por algum desses teólogos envolvidos nas pregações da guerra santa. Não podemos porém razoavelmente contar com nenhuma informação daquela fonte; e temos portanto que nos bastar com as nossas próprias conclusões.
As minhas, esboçadas embora, já as deixei entrever. Nada tendo de originais, não valeria a pena entrar nestas controversas matérias, não se desse o caso de ontem uma bombista se ter feito explodir.
Ora, se agora as mulheres também querem entrar no outro mundo com a credencial de terem rebentado com uns quantos infiéis neste, cabe perguntar o que lhes é dito que as espera do outro lado.
Estou disposto a aceitar que a perspectiva de um relacionamento amoroso com Colin Firth ou Hugh Grant pudesse funcionar como um poderoso incentivo; e, entendesse eu mais do assunto, alinharia aqui outros nomes igualmente apelativos, até atingir 72. Não me parece todavia que tal hipótese seja plausível, tendo em conta que esta perspectiva só poderia funcionar se as candidatas a terroristas tivessem pulsões de messalinas - o que nada permite supor.
Uma hipótese, atraente pela sua simplicidade lógica, seria que as mesmas 72 virgens tenham servido de isco também para a Hasna Aitboulahcen (assim se chamava a mártir). Não é preciso um delírio da imaginação para admitir que 72 alunas púberes do Agrupamento de Escolas C+S de Saint Denis Occidental pudessem exercer um compreensível fascínio na líbido de uma rapariga com inclinações, digamos assim, fracturantes.
Confesso aqui a minha perplexidade - a ignorância nunca me impediu de ter opiniões, suspeito até que tão mais seguras quanto menos informadas. Mas, desta vez, nada: já quando foi da polémica sobre a proibição do niqab em certos países, não compreendia que houvesse mulheres muçulmanas a favor do seu uso; como não compreendia que as esquerdas, de forma geral, fossem contra a proibição.
Pode ser que, à falta de melhor, a Esquerda explique - aquilo é gente do diabo, e de assuntos fracturantes costuma entender.
Claro que é filho de mãe portuguesa - vê-se logo pelo nome. Deve ter frequentado ainda uma velha escola do Plano dos Centenários, feito o secundário numa dessas C+S que sucessivos autarcas e ministros com sezões de paixão pela educação espalharam pelo país, não é impossível que tenha feito a sua catequese na velha igreja da aldeia onde viu a luz, e na força da vida foi forçado a abandonar a terra ingrata que lhe deu o ser e procurar entre os gauleses o magro sustento que um destino cruel lhe negou - até estou comovido, caramba.
A sério: catequese fez, isso é seguro. E, a julgar pelo resultado, imaginamos sem esforço de que tipo terá sido: as doces freirinhas tinham decerto barbas, sabiam o Alcorão de cor e prometeram-lhe a bem-aventurança de para cima de três dúzias de virgens através do expediente de se imolar, se tivesse o cuidado prévio de enviar para o inferno a maior quantidade possível de infiéis e de cruzados.
Um atentado terrorista não tem nada de novo, e tivemos na Europa em devido tempo, em nome do nacionalismo irlandês, ou basco, ou corso, ou da revolução vermelha, doses assinaláveis; e isto sem ir muito para trás, que anarquistas e crentes em doutrinas milenaristas de todo o tipo também deixaram a sua marca, sem falar dos actos isolados que foram o espoletador, por exemplo, da Grande Guerra, ou aceleraram uma mudança de regime, como entre nós o bem-sucedido atentado do Buiça.
O terrorismo do islão é, porém, diferente, porque transporta para cá três problemas que o mundo muçulmano não resolveu, nem está perto de resolver: um é o da separação entre a igreja e o Estado; outro o do antagonismo entre as suas duas principais correntes, o xiismo e o sunismo; e o terceiro o da influência da cultura, riqueza e sucesso ocidentais, que não podem ser vistos senão com ressentimento por, se importados para países em boa parte medievais, abalarem a ordem estabelecida, em particular no que toca ao papel das mulheres, implicando mudanças de tal forma profundas que a própria identidade nacional, quando exista, ou religiosa, ou as duas, fica em causa.
Houve um tempo em que alguns ditadores resolveram temporariamente parte do problema. Mustafa Kemal, Nasser, o xá do Irão, Saddam, outros ainda, ocidentalizaram à força, e a receita funcionou durante algum tempo e terá ganho algumas raízes naqueles países onde ficou uma instituição com suficiente homogeneidade para contrabalançar o poder do clero - o Exército, no caso do Egipto e da Turquia, ou a monarquia em Marrocos. Na generalidade dos outros países, de resto quase sempre criações artificiais do tempo em que as potências europeias repartiam os territórios em zonas de dominação ou influência consoante os seus jogos de poder, a eliminação de um regime ditatorial trouxe e traz quase sempre ou outro - ou o caos.
Este caldeirão encontrará um dia, num futuro longínquo, o seu equilíbrio. Mas ele não virá sem que a Igreja se separe do Estado, coisa que o islão terá muito mais dificuldade de fazer do que o cristianismo teve, porque num caso o fundador se colocou desde o princípio à margem (a César o que é de César), noutro era ele próprio um dirigente civil e militar, e deixou nos textos sagrados a marca dessa origem - o que significa que a cambalhota da exegese necessária para que o Corão dispense o governante de legitimidade religiosa é muito maior do que na Bíblia.
Tivemos o nosso farto quinhão de guerras religiosas, desde logo a que o islamismo perdeu no Ocidente, e que ainda não digeriu, a que o Ocidente quis levar ao Oriente Médio, e que perdeu, bem como as inúmeras que se abrigaram sob os largos chapéus da Reforma e da Contra-Reforma.
Das outras guerras, das que não tinham uma componente religiosa dominante, já fomos servidos na Europa com duas mundiais, só no séc. XX, além de outras menores. E como os interesses permanentes das nações não se extinguiram, Israel está onde está e não na Namíbia, e a História não acabou, nada garante que a guerra seja uma coisa do passado.
A guerra é uma coisa do presente, e os atentados de Paris vieram lembrar, a quem andava distraído, que o mundo é um lugar muito pequeno e que a guerra religiosa, que se julgava relegada para o programa de história do ensino secundário, está entre nós.
Isto, pelo menos, é novo - está entre nós. Poderia não estar, se nunca tivesse passado pela cabeça dos neocons a ideia peregrina de ir, a golpes de bombas e ignorância, exportar a flor da democracia para terrenos onde ela não medra; se os nossos ó tão modernos regimes seleccionassem os imigrantes de modo a que, pela quantidade e pela origem, não se criassem abcessos que um dia será preciso lancetar; se as opiniões públicas, com a lágrima fácil ao canto do olho, não comandassem os reflexos populistas de políticos acéfalos, deslumbrados com Primaveras passageiras; e se, sem deixar de defender interesses, o fizessem com consideração lúcida do que virá depois do generoso abrir de portas e do derrube de monstros iguais a Assad ou a Khadafi - como se a alternativa realista fosse melhor.
Cette fois, c'est la guerre, declarou o patético Hollande, e os aviões franceses já andam a despejar bombas por cima do Estado Islâmico.
Fazem muito bem, Putin e os Curdos estavam muito sós, e os Americanos muito desnorteados. E se alguns dos valentes cidadãos que cantaram a Marselhesa calçarem as botas, ou apoiarem quem calce, e forem ao terreno caçar os dementes e pôr cobro ao despautério de um regime que ameaça e desafia os estados verdadeiros - melhor. Porque parece, dizem os entendidos, que ainda não se podem ganhar guerras só com drones e bombardeiros.
Paralelamente, conviria também declarar guerra a Marselha, Molenbeek e todos os outros lugares onde florescem as mesquitas, os imãs e as madraças. Porque o islão será talvez uma religião de paz; mas não é noutra que se recrutam os inimigos do nosso modo de vida.
Horror em nossa casa. Hoje Paris, amanhã Lisboa, Porto, Roma. Não há lugar a salvo. As consequências far-se-ão sentir por todo o lado.
Guerra. Estamos em guerra. Já estávamos antes e continuaremos. O futuro trará mais ataques gratuitos, mais dor e sofrimento de inocentes.
A UE deve estabelecer uma Política de Defesa Comum, forte e agressiva contra o radicalismo islâmico. A NATO deve justificar a sua existência.
Mais segurança e menos liberdade? É o custo da guerra que não podemos mais ignorar pela segurança futura dos nossos filhos.
Como os pretensos acordos de esquerda unida não cumprem os requisitos que Cavaco enunciou como condição para o governo desejável quando deu posse a Passos, a indigitação de Costa será de muito difícil justificação por parte de Cavaco.
Porém, o melhor para a estabilidade futura e maioria PSD-CDS é que a esquerda seja forçada a governar e a fazer explodir claramente as enormes contradições das "posições conjuntas". Embora não seja justificação que Cavaco possa dar, será a única possibilidade face à alternativa muito precária (e recusada por Passos) de um governo de gestão.
Costa será forçado a pedir apoio a Passos e Portas para passar leis de rigor de contas públicas no parlamento. Como não pode permitir o agravamento do rating, perder o apoio do BCE ou subir taxas e spread, manterá a austeridade contra os desejos de Bloco e PCP.
Pobre Costa. O custo da golpada e do breve odor de poder será alto.
Ando por estes dias a ler Uma História do Japão, de Conrad Totman, que não recomendo. Quem quiser inteirar-se da história do Japão, ou doutro país relevante qualquer, quer que lhe expliquem como nasceu, porque nasceu, que elementos se conjugaram para que aquele país tenha uma identidade que o faz único, que contributos deu, se alguns, para o edifício da civilização, quais as personalidades que pela espada, pela pena, por obras valerosas, ganharam lugar na memória dos vindouros, e um imenso etc.
Claro que a gente sabe que as historiazinhas de reis, imperadores, guerreiros e personalidades, invenções, sucessos, obras de arte e de cultura, desastres, têm um pano de fundo; e que este pano de fundo uns o pintam duma maneira, e outros de outra, e vai ficando mais rico à medida que se empilham monografias. Por outro lado, se o passado não muda, muda às vezes o acervo conhecido de factos, objectos e testemunhos; e muda sobretudo a interpretação do historiador, que vai elaborando sobre as pistas que outros deixaram antes dele, ou encontra as suas, e aqui e além apresenta um ângulo novo, mais convincente, para explicar uma parte do processo histórico.
Não sei se Conrad faz alguma destas coisas porque o homem escreve para especialistas, ou ao menos conhecedores avisados da história do país. E assim o livro que comprei, fiado na recensão que o apresentava como obra de divulgação, é um equívoco - não se fica a conhecer senão mal a história do Japão, através das teses que o autor vai desfiando sobre factos que não descreve por assumir que o leitor os conhece. Por exemplo, em determinada altura, que durou séculos, os imperadores, polígamos, reformavam-se, e um novo era escolhido de entre a parentela. Porque era assim, quais os critérios da escolha, como nasceu o sistema, que necessidades preenchia - nicles.
Nos prefácios, na introdução, o apresentador e Conrad Totman falam muito de ecologia, e de como as circunstâncias geográficas e climatéricas influenciaram decisivamente a história do país. Tanto que torci o nariz: queres ver que este substitui a luta de classes pela ecologia? - vamos ter aqui uma história martelada para caber dentro de mais outra teoria na moda. E, de facto, o autor não cessa de ligar os progressos na agricultura ao número e riqueza material das pessoas integrando a cúpula social, e evidencia a evolução demográfica como dependente de epidemias, por sua vez tributárias da circulação de pessoas que o aumento do comércio origina, até que certas doenças deixem de ser mortais, por a população ter desenvolvido resistências.
As personalidades concretas não são, neste livro, até ao ponto a que já cheguei, agentes históricos de grande relevo - como se a história fosse uma decorrência inevitável das circunstâncias e de forças às quais é impossível resistir.
Não é, senão com muitas qualificações, o meu ponto de vista. E este longo intróito, que de resto ficou assim comprido porque me fugiu da mão, serve, embora não pareça, para interpretar o que se passou ontem no Parlamento.
Se o governo em funções continuasse, apesar de forçado pelas circunstâncias a pôr uma surdina na pulsão reformista, que de resto nunca foi exuberante, é razoável pensar que a trajectória da redução do endividamento, do desemprego, dos défices, da irracionalidade da presença pública na economia - continuaria. E mesmo que o nosso pano de fundo seja a UE, o preço do petróleo, os imprevistos das guerras, da imigração para a Europa e do mais que não adivinhamos, sempre estaríamos mais bem preparados para as curvas da história com um país em recuperação do que com um país novamente em cacos.
E em cacos vamos ficar. Não me dou ao trabalho de explicar porquê, porque quem precisar da explicação não acredita nela, e portanto não a aceita. Mas o que nos vai suceder nos tempos mais próximos não era inevitável, não era uma decorrência fatal do resultado eleitoral, nem está acima da vontade das pessoas.
A explicação mais simples, mais básica, é a meu ver a boa: Costa, esse pútrido pote de banha ambiciosa, como há dias lhe chamei com uma propriedade que me incita a repetir a qualificação, podia ter optado por copiar o procedimento de todos os que antes dele foram derrotados em eleições, quando o resultado ficou demasiado aquém das expectativas, próprias e de terceiros, e demitir-se. Mas não: inventou toda uma teoria de quebra de muros de Berlim e outras tretas sortidas para embarcar numa aventura que pode custar a importância do PS como charneira do sistema (o que a prazo nem seria mau, se deslocasse o espectro partidário para a direita), reforçar a importância da minagem comunista no aparelho de Estado, e causar um quarto resgate, por definição mais duro que o terceiro.
É claro que tudo isto que estamos a viver não é histórico, senão no sentido de que poderá valer um quarto de página, quando muito, numa história futura do nosso país. E é claro que para o nosso futuro a longo prazo esta novela não terá grande importância - tem-na muito mais a UE, em todos os sentidos, incluindo o da implosão.
Mas a longo prazo, como dizia o outro, estamos mortos. Entretanto, há desempregados, e falidos, e aflitos - precisamente a gentinha que terá ajudado Costa a chegar onde está, e que verá as suas esperanças defraudadas.
As pessoas contam - não é indiferente que a personalidade concreta de um político determinante em certos momentos seja assim ou assado. Temos tido azar: Costa, um intelectual de pacotilha mas dotado de capacidades maquiavélicas de manipulação, e assinalável ausência de coluna vertebral, sucede a Sócrates, o tribuno da plebe venal mas dotado de capacidades de persuasão e sedução.
Resta Cavaco, que certamente não tem pretensões de homem de cultura e sobre cuja sedução, por pudor, não me pronuncio. Pode ser que conte - ou não. Aguardemos.
A imprensa continua a dizer "acordos". O Daily Telegraph até fala de "coligação".
Não há qualquer acordo da esquerda unida. Aconteceu somente um entendimento circunstancial para fazer cair o governo PSD-CDS. Nada mais.
As vagas "posições conjuntas" serão o que Cavaco deve avaliar. Estamos como na noite eleitoral: sem tirar nem pôr.
O bruá mediático criado por Costa serviu apenas para criar um facto consumado que não existe.
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