Eu admiro quem consegue detectar inteligência nesta forma de vida, porque eu não lhe consigo detectar nenhuma, mas apenas uma retórica simplória baseada em pressupostos delirantes e mil vezes negados pela realidade e expressa com a auto-suficiência dos inocentes e dos tolos.
No caso presente, e geralmente sempre que fala, em dois pressupostos.
É o pressuposto mais interiorizado por todos os socialistas do século XXI, os keynesianos graças a Deus, moderados ou extremistas. Foi usado, refinado e quantificado pelos doze sábios convidados pelo António Costa para desenvolver o Cenário Macroeconómico "Uma Década para Portugal" e, depois, no Orçamento de Estado de 2016, em que intervieram alguns desses mesmos sábios. Que conseguiram garantir que "por cada euro de estímulos, retoma devolve quatro".
Este pressuposto gera infinitas possibilidades interessantes. Por exemplo, se se estiver à espera de um deficit de 3% e se aumentar em 1% a despesa, consegue-se um ganho de 4% na execução orçamental que anula o deficit. Genial. Imagine-se aumentar a despesa em 33% e obter um retorno de 132%, um excedente orçamental suficiente para liquidar de um trago toda a dívida pública portuguesa, como se fosse coisa de criança? Fabuloso. E é um pressuposto irresistivelmente apelativo porque, além de oferecer aos seus crentes o consolo desta esperança de acabar com os problemas financeiros sem dor, como funciona à base de devolver rendimentos às pessoas, ou seja, de distribuir dinheiro aos eleitores, também tem um potencial muito simpático no plano eleitoral. É milagroso.
O único senão é que não funciona. Foi usado pelo governo socialista em 2009, e a economia não cresceu. Pelo contrário, o governo estimulou Portugal até à beira do abismo financeiro de onde só se livrou de cair in-extremis, evitando uma catástrofe económica e social, e provavelmente política, com o plano de assistência financeira da troika, de onde até se saiu mais bem do que mal, comparando com o percurso trágico de outros países como a Grécia, com um sofrimento que atingiu muitas pessoas e irritou outras, nem sempre as mesmas. Está a ser usado por este governo, e, ao fim de quase um ano, a economia também não cresce, pelo contrário, deixou mesmo de crescer, com consequências para a economia, a sociedade e as finanças públicas que mais lá para diante, um dia, se revelarão. Se bem que, no caso presente, não se possa desprezar a contribuição que a retórica idiota dos jovens dirigentes socialistas, de dentro e fora do PS, de ameaçar o banqueiro alemão, os mercados, as agências de rating, os patrões, os investidores, os proprietários, os aforradores, até os jornalistas neoliberais, tem tido para fomentar o desinteresse de quem tem dinheiro por investi-lo e criar emprego, crescimento e riqueza, que amanhã qualquer jovem socialista idiota mas voluntarioso pode decretar ir buscar com o aplauso do partido do governo.
Mas, por mais que não funcione, por mais que vá sendo negado pela realidade, quem crê neste pressuposto não desacredita dele facilmente. O que é o caso de muitos, e também da deputada Mariana Mortágua.
Curiosamente, até há evidência empírica de investimentos que proporcionam um retorno de quatro euros por cada euro investido. Não na economia, mas na saúde mental. Isto anda tudo ligado.
A verdade é que aumentar o deficit aumenta o montante total da dívida que o financia, porque não cai dinheiro do céu para o financiar, e os juros pagos por ela, não apenas por aumentar o montante em dívida sujeita a juros, mas também por aumentarem as taxas de juro exigidas pelos credores para continuarem a conceder crédito a quem tem um endividamento crescente, o que faz aumentar os juros ainda mais que proporcionalmente à dívida. Ou seja, é uma grande alhada.
O pressuposto seria inteligente se se tivesse a intenção de não pagar a dívida, e esta metade do requisito ela cumpre-a sem hesitação, e se comulativamente os credores continuassem a emprestar cada vez mais dinheiro a quem não tem a intenção de o vir a reembolsar no futuro. Só que, esta segunda metade do requisito, os credores não são tão otários que a garantam, e em vez de otários são autoritários, como lhe chamam alguns, e não confiam o dinheiro deles a caloteiros que não o tencionam reembolsar. E, infelizmente é da lógica matemática, verdadeiro "e" falso dá falso. Tudo junto, o pressuposto é mais burro que inteligente, assim como os que acreditam nele, porque assenta na crença que os credores são mais burros do que inteligentes, e nem foi assim que eles enriqueceram, nem sempre são assim.
Não se lhe conseguindo detectar inteligência, é de toda a justiça reconhecer-lhe pelo menos uma convicção ímpar. Pelo, como dizia o meu pai, suponho que citando alguém que não retive e infelizmente já não lhe posso perguntar, se
ela é, pelo menos, uma pessoa de opiniões.
O presidente Kennedy, com a sua queda para os exageros retóricos e as grandes proclamações ocas, uma inclinação da qual Obama se revelou um competente herdeiro, chamou-lhe "o maior estadista do nosso século". Se o tivesse sido, seria hoje tão famoso como Churchill, cujo nome é por certo reconhecido por quase metade da geração mais bem preparada de sempre (a outra metade supõe que é uma marca de sapatos). Mas não: Dag Hammarskjöld é tido como o melhor secretário-geral de sempre, recebeu um prémio Nobel póstumo - mas quase ninguém sabe quem foi.
Ninguém sabe quem ele foi e menos ainda U Thant ou Pérez de Cuéllar. Os secretários-gerais distinguem-se por serem políticos supranumerários de países pouco poderosos: a Noruega e a Suécia são decerto países respeitáveis, a Áustria (que pariu para a comunidade internacional um Kurt Waldheim, de suspeita memória) outro tanto, o Gana e o Egipto despertarão um alguma estranheza e o outro algumas reservas; nem a Birmânia nem o Peru são conhecidos como potentados, sequer regionais, ou faróis da civilização; e a Coreia do Sul, de onde é natural o actual secretário-geral, é um país que, tal como o Volkswagen Golf, é de confiança mas apenas de gama média.
Isto não é fruto do acaso: a ONU é uma organização onde se chocam interesses e ideologias, países com história e outros nascidos anteontem, superpotências e potências em bicos de pés, pequenos, médios, grandes, minúsculos países - uma torre de Babel de 192 entidades, cada uma com um voto, que serve para fazer maiorias que qualquer dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança pode vetar, e que qualquer país cioso da sua independência pode ignorar, se tiver apoios e vontade bastantes para o efeito.
Para tudo isto e muito mais é preciso um mestre-de-cerimónias: convém que fale línguas, sobretudo inglês; que saiba receber os convidados e lhes conheça as susceptibilidades, de modo a nunca correr o risco de as ofender; que alimente a imensa burocracia internacional que se acolhe sob o chapéu da ONU e suas agências, administre os conflitos e mantenha contentes as máfias e intocadas as parasitagens; e que pronuncie sonoros discursos urbi et orbi que soem bem à opinião pública internacional por não irem nunca além das intenções piedosas nem defenderem outras ideias que não sejam o bem-pensismo sobre ambiente, economia, igualdade, justiça ̶ tudo adequadamente difuso para que os embaixadores da Arábia Saudita, da China, dos Estados Unidos, e do Vanuatu, possam em simultâneo aplaudir.
Cargo difícil, sem dúvida. E Guterres parece superiormente talhado para ele, porque os seus defeitos são essenciais para um bom desempenho, e as qualidades, que abençoadamente não tem, seriam um estorvo. O homem, de facto, não tem coluna vertebral, um sério empecilho se ao mesmo tempo se quer defender os direitos das mulheres e respeitar o lugar que o Irão deterá em 2018 na Agência que se dedica a promover a igualdade entre os sexos; não tem a mais remota capacidade de controlar custos e promover a eficiência (características abundantemente demonstradas no exercício das funções de primeiro-ministro de Portugal), o que lhe garante não vir a ter problemas sérios com a nomenklatura interna - com os resmungos dos países maiores pagadores pode ele bem, se eleito; é a favor da democracia mas tem um acrisolado respeito pelas ditaduras, desde logo porque sob esse regime vive a maioria dos membros da Assembleia-Geral; e já demonstrou que convive bem tanto com Angelina Jolie como com qualquer chefe de guerrilha ou de Estado. Guterres é pau para toda a colher e a do tacho da ONU, ainda que não particularmente gorda, encaixa nele com naturalidade.
A eleição é duvidosa e confesso a minha parcialidade: a perspectiva de ver Guterres a ajeitar a melena em conjunto com os problemas do mundo é-me simpática porque, a correr bem, sempre seriam dez anos com ele longe das nossas costas. Tirando isso, que não é pouco, não vejo que interesses do nosso país estão em jogo com a sua eleição.
É por isso que estranho o empenho nacional na candidatura. Que Adriano Moreira se espraie em considerações sobre o papel da ONU, a reforma da ONU, o futuro da ONU, e o da Humanidade, que julga estar ligado ao daquela organização, é natural: o homem não faz outra coisa há anos, e ainda que nunca tenha dito senão banalidades doutorais e pomposas (quando se compreende o que diz), com essa actividade granjeou considerável prestígio junto de quem imagina ter luzes. E que o primeiro-ministro veja na eleição de Guterres um grande triunfo para o país é também compreensível: sempre é um correligionário. E podemos ir a ponto de aceitar que Marcelo vá a Nova Iorque fazer campanha, ainda que o propósito da deslocação seja vagamente ridículo: Marcelo vai a todo o lado dizer coisas, seja Freamunde ou Tombuctu, bem pode ir também à Meca do capitalismo encantar anónimos com a sua espontaneidade.
Agora, a televisão que nos massacra todos os dias, e os jornalistas que escrutinam os desígnios de estadistas, num ambiente de casa dos segredos, como se fôssemos, mesmo remotamente, viver melhor ou pior por causa do triunfo, ou da derrota, do nosso herói, desafiam o senso.
Ou talvez não. Que na realidade estamos falidos e vivemos de esmolas, mas e o campeonato da Europa, hem? Organizámos um e ganhamos outro, essa é que é essa. E a Noruega até pode ter o orçamento equilibrado e o rating AA+ mas nunca teve um Alto-comissário para nada e nós já tivemos dois, e logo dois estadistas refulgentes, Sampaio e o agora futuro secretário-geral, que decerto empanará o brilho de Dag Hammarskjöld.
O diabo ia chegar em Setembro? Parece que, afinal, não chegou.
O deficit público de 2015, deduzido dos resgates de bancos atingiu 3% do PIB, uma ou duas décimas para baixo ou para cima em função de dar jeito a quem faz as contas que ele ficasse abaixo ou acima dos 3%, e ao governo português em funções dava jeito que ficasse acima, mas só um bocadinho, para conseguir montar a pantomina de salvar Portugal das garras e das sanções de Bruxelas. Este ano o governo orçamentou 2,2%, e Portugal não entra em procedimento de deficit excessivo se for inferior a 3%.
Este ano a execução orçamental está controladíssima, até o comentador Marques Mendes concede, e o governo não apenas reforça a convicção que vai atingir um deficit historicamente baixo como já prepara a demolição no próximo ano do recorde que promete atingir este ano. Até ao final de Agosto, pelas contas da Direcção Geral do Orçamento, o deficit foi inferior em 81 milhões de euros ao de 2015. Se for tudo igual a 2015 no resto do ano, pelo menos o limite de 3% será pacificamente cumprido.
Mas não está a ser tudo igual.
Se até ao final de Agosto de 2016 o deficit foi inferior em 81 milhões de euros ao de 2015, até ao final de Junho tinha sido 971 milhões inferior, o que significa que durante os meses de Julho e Agosto foi 890 milhões de euros, 445 milhões por mês, superior ao de 2015. A manter-se esta tendência nos quatro meses que faltam até ao fim do ano, o deficit no final de 2016 seria 1.700 milhões superior ao de 2015, ou seja, atingiria 3,9% do PIB. Suficiente para desencadear um procedimento de deficit excessivo. A manter-se a tendência destes dois últimos meses.
E há razões para acreditar que esta variação verificada em Julho e Agosto seja mesmo uma tendência?
Há. A partir de Julho reduziu-se o IVA da restauração, e a redução vai manter-se até ao fim do ano. E ocorreu a terceira reposição nos salários da função pública, à qual, a partir de Outubro, ainda vai acrescer a última. Do lado dos salários da função pública o agravamento comparativamente com o segundo trimestre vai ser permanente, para já com uma reposição, e no último trimestre até duplicará com a última reposição. Não é, portanto, uma hipótese absurda que o agravamento se mantenha até ao fim do ano.
E porque é que o deficit até ao final de Agosto de 2016 foi inferior ao de 2015?
Por causa dos calotes do governo aos fornecedores.
Em 2015, até ao fim de Agosto, o governo anterior tinha abatido desde o início do ano 500 milhões de euros na dívida vencida, ou seja, que tinha ultrapassado os prazos contratuais de pagamento aos fornecedores. Pagou mais 500 milhões do que gastou, injectando esse dinheiro na economia, não a título de benefício arbitrário para alguns amiguinhos ou privilegiados, mas de pagamentos mais do que devidos aos seus legítimos credores. Durante este ano, até ao final de Agosto, a dívida vencida já aumentou 200 milhões de euros. O governo pagou aos fornecedores menos 200 milhões do que gastou, subtraindo-os à economia. E ao deficit. Contabilizando a despesa realizada em vez dos pagamentos, ou seja, de acordo com aquilo que se designa por óptica da contabilidade nacional em vez da óptica da contabilidade pública, o deficit acumulado até ao final de Agosto deste ano não seria 81 milhões de euros mais baixo que no ano passado, mas 620 milhões, ou 0,35% do PIB, mais alto.
E o que é que isto tem a ver com a nossa história?
Não estamos a inventar mais um indicador rebuscado só porque ele serve para dizer mal do governo, e nós reconhecemos que tendemos a dizer mal do governo, mesmo que reclamemos que dizemos mal dentro da mais estrita objectividade, porque temos obrigação de desmontar a sua propaganda demagógica e expôr o que ele esconde por trás da demagogia? Tem tudo a ver porque, para efeitos dos compromissos comunitários, nomeadamente o limite de 3% no deficit público, o que conta é a óptica da contabilidade nacional, ou seja, a despesa realizada, e não a paga. Significando que, se no resto do ano correr tudo como em 2015, o deficit contabilizado na óptica da contabilidade nacional será de 3,35% do PIB, e não de 3%. Mais uma vez, suficiente para desencadear um procedimento de deficit excessivo. Já se se mantiver a tendência dos dois últimos meses, com um agravamento mensal da execução orçamental da ordem dos 445 milhões de euros face a 2015, e até abstraindo que o agravamento ainda poderá aumentar no quarto trimestre, o deficit no fim do ano será de 4,25%. Mais de 2 mil milhões de euros para lá do limite dos 3%.
Significa isto que, ou a despesa controladíssima vai passar a ser ser violentamente controlada para cortar 2 mil milhões de euros nos últimos três meses do ano, e controle violento significa que chega ao bolso das pessoas sem conseguir passar despercebido, o que é o diabo, ou para o próximo ano vamos ter de novo a rábula das sanções, não por uma ou duas décimas que podiam ser evitadas com uma carta às instituições europeias e alguns minutos de argumentação, mas por uma ultrapassagem substancial, e sem o pretexto, externo e interno, de imerecer sanções que eram por culpa do governo anterior, mas por responsabilidade própria ineludível, o que é o diabo.
E isto sem Caixas nem caixinhas, nem entrar na discussão estéril sobre se a injecção de dinheiro na Caixa deveria ou não contar para o deficit, que só interessa para efeitos de public relations na luta partidária, assunto que não nos assiste no contexto deste forum por não ser relevante para a sustentabilidade das finanças públicas e da dívida.
Ou, para atalhar razões, o diabo não chegou, ou, se chegou, anda por aí muito discreto e só à vista de quem olha para ele com atenção, porque o diabo está nos detalhes. Mas eu não me fiaria na virgem para o manter afastado para sempre.
Há mitos tão incrustados nas convicções de muitas pessoas que é praticamente impossível erradicá-los, por mais que se desmontem com base em análises objectivas dos factos reais.
Um deles é que a desigualdade em Portugal aumentou entre 2011 e 2014, durante a execução do plano de resgate da troika. Outros, que no restaurante da Assembleia da República se come caviar beluga acompanhado de champanhe francês ao preço da carcaça com manteiga, ou que a fortuna da família do José Sócrates investida em portos seguros ascendia a 385 milhões de euros, e não escudos. Outro ainda, que os mais ricos, ao fugir aos impostos sempre que podem, conseguem não pagar impostos.
Sendo seguro que os mais ricos têm acesso mais facilitado que os mais pobres a formas de mobilidade do dinheiro que permitem abrigá-lo da voracidade do fisco, como por exemplo, receber a título de rendimentos de propriedade intelectual 7.500 euros por mês de honorários por participar num programa televisivo semanal de comentário político, de modo a, não só poder acumulá-los com o salário completo de presidente da câmara com dedicação exclusiva de cerca de 4.500, como poder isentar do IRS metade de uma parte desses rendimentos. E ainda lhes sobrar lata para recitarem tiradas das que se aprendem aos 14 anos para interiorizar a superioridade moral do comunismo, como "de cada um segundo a sua capacidade a cada um segundo a sua necessidade". Fugirem dos impostos? Birds do it, bees do it, even educated fleas do it, e os ricos também o fazem. Mas daí a não pagarem impostos é salto de uma grande audácia.
Mas,
diz a Catarina, diz a Mariana, as porta-vozes do nacional socialismo, dizem os pastores de opiniões da "Quadratura do Círculo", diz o Galamba, diz o Pedro Nuno Santos, os jovens turcos que o Costa larga às canelas dos neoliberais e do banqueiro alemão, diz o Costa, diz toda a gente que se inspira ou se conforma com o que eles dizem para decidir aquilo que pensa e que diz.
E como é que eles sabem disso?
Porque o disse o antigo director-geral dos impostos José Azevedo Pereira, nomeado para o cargo pelo governo do primeiro-ministro José Sócrates em 2007, e substituído depois de sete anos a gerir discretamente a máquina dos impostos pelo governo do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho em 2014, numa entrevista à SIC Notícias em 2015 cheia de insinuações à falta de interesse pela perseguição à evasão fiscal dos seus sucessores e do governo que o libertou das funções.
A partir das afirmações dele na entrevista, uma colunista do Jornal de Negócios fez umas contas de aritmética básica com o discreto título "As 1000 famílias que mandam nisto tudo (e não pagam impostos)", sintetizando que as tais mil famílias pagam apenas 0,5% do total de IRS colectado em vez dos 25% que ele disse que são um benchmark internacional, sem revelar a fonte de informação do benchmark, nem explicar os motivos pelos quais seria de esperar que fosse aplicável a Portugal, e a afirmação ascendeu à condição de axioma, que não necessita de prova para ser provado, e é livremente citada por todos os que pretendem fazer uso dela para as finalidades que só eles saberão, seja para justificar o incremento da tributação de património, a liberalização do acesso do fisco às contas bancárias dos contribuintes, ou mesmo, qual par de cálices de bagaço emborcados de um trago, para ajudar a perder a vergonha de ir buscar a quem acumula dinheiro. É preciso vigiar essa malta! É pois um axioma.
Mas será verdade?
O quadrozito apresentado acima, retirado do resumo de divulgação do Orçamento de Estado de 2015 publicado pela Direcção Geral do Orçamento, e referente à colecta do IRS em 2012, mostra que as 2.343 famílias mais ricas, as que tiveram rendimentos anuais superiores a 250 mil euros, pagaram 8,4% do total do IRS liquidado, ou 713 milhões de euros. Se, como disse na entrevista o director-geral dos impostos em funções nesse ano, as mil famílias mais ricas apenas pagaram 0,5% do IRS, ou 42,3 milhões de euros, numa média de 42,3 mil euros por família, sobraram para as 1.343 abaixo os restantes 671 milhões de euros cobrados neste grupo de contribuintes, representando uma média de, para arredondar, 500 mil euros por família.
Ora sendo as taxas liberatórias, que descriminam favoravelmente rendimentos como os de capital comparativamente com os de trabalho, de 28%, e 35% quando esses rendimentos estão associados a paraísos fiscais, nenhuma destas 2.343 famílias que declaram mais de 250 mil euros pode pagar menos de 70 mil euros de IRS (mas se o rendimento sujeito à taxa liberatória for de um milhão de euros, o IRS já será de 280 mil), deduzidos dos abatimentos e das despesas de saúde e educação, vá lá, que, por mais que os contribuintes se esforcem, nunca permitem chegar a 42,3 mil euros. A nenhum deles, quanto mais à média dos mil que declaram mais. E atendendo que as restantes 1.343 famílias são as que ganham menos de entre as 2.343 que ganham mais do que 250 mil euros, ou seja, são as que ganham 250.000, 250.001, 250.010, e por aí fora, até ao limite máximo que as colocaria entre as mil mais ricas, parece que deve haver famílias deste grupo que pagam de IRS o dobro do que ganham. Ou isso, ou as mil famílias que ganham mais do que estas afinal pagam mais do que os míseros 0,5% que o director-geral disse que pagavam, e estes restantes 1.343 pagam em média muito menos que os 500 mil euros?
O director-geral ter-se-á entusiasmado por, depois de sete anos em que exerceu as funções de modo tão discreto, o que é uma virtude, e não um vício, num director-geral da administração pública, sublinhe-se, lhe terem posto uma câmara de televisão e um microfone à frente, e ter-se-á deixado levar por esse entusiasmo para fazer revelações bombásticas? ou terá querido entalar o sucessor e o governo que o substituiu insinuando, com a ajuda de números espectaculares e redondos que ficam no ouvido, que se desinteressaram do combate à evasão fiscal, quem sabe se para beneficiarem os seus melhores amigos ricos? Não se sabe.
O que se sabe é que
E em que é que esta constatação pode influir no debate público sobre estes temas? Em nada. O axioma, ou lugar comum, vai continuar a ser usado indisputado, até porque quem o procurar disputar em público se arrisca a levar com o ónus de duvidar dele por estar do lado dos ricos e da sua ganância de fugirem às obrigações fiscais, e ninguém com mais exposição pública e mediática que meros participantes em blogues simpáticos e analíticos como este vai arriscar o pescoço revelando publicamente as suas dúvidas e apresentando as contas que sustentam as dúvidas e mostram que a asserção é um disparate demagogo e populista.
Podem-se, pois, exibir os ricos no pelourinho e perder a vergonha de se lhes ir ao bolso, porque não pagam impostos. Ao fim e ao cabo, o caminho para o socialismo está inscrito em pedra na nossa Constituição. De cada um segundo a sua capacidade a cada um segundo a sua necessidade.
Hoje continuamos a oferecer mais uma edição do nosso interessante passatempo "Descubra as diferenças", que alguns dos mais velhos de nós recordarão do saudoso "Diário Popular".
Sapo Desporto, 14 de Setembro de 2016:
Expresso, 23 de Setembro de 2016:
Eu não sou de modas.
Mas tenho que reconhecer que os espaços de comentário político, seja o do fala-barato tendencioso Professor Marcelo, seja o do acutilante e objectivo Professor Louçã, ficam enriquecidos quando são complementados com sugestões culturais, sejam de livros, de filmes, ou de musiquinhas, facto comprovado a que nem sempre tenho sido atento nos meus comentários aqui no Gremlin Literário. Mas eu estou sempre a aprender e, mais vale tarde que nunca, vou aderir a esta moda.
Vamos então fazer um pequeno interlúdio cultural, recordando a belíssima canção "Preocupa-me pensar que estou a dizer coisas que as pessoas não entendem" dos Gentle Giant, do seu disco "In a Glass House" editado em 1973, que descreve as experiências e os sentimentos das pessoas que se preocupam por dizerem coisas que as outras pessoas não entendem.
Para os que acham o tema da canção um tanto ou quanto depressivo, deixo uma sugestão de leitura para desenjoarem, uma entrevista a uma carinha laroca da política portuguesa.
Boas audições e boas leituras!
Hoje continuamos a oferecer mais uma edição do nosso interessante passatempo "Descubra as diferenças", que alguns dos mais velhos de nós recordarão do saudoso "Diário Popular".
Depois de alguma hesitação administrativa pelos responsáveis mais ligados às finanças do partido, o presidente do PSD em boa hora resolveu politicamente um dilema que, administrativamente, até lhe podia dar jeito, rejeitando a reposição das subvenções aos partidos e às campanhas eleitorais que tinham sido, também elas, sujeitas a cortes de 10% e 20%, respectivamente, na legislatura anterior. Sendo o partido que obteve mais votos nas eleições legislativas, é também o que teria mais a ganhar com a reposição. Mas a rejeição é politicamente inteligente, porque a vida não está para reposições, como sempre tem defendido, e bem, e, dado a anúncio anterior dos pequenos partidos que são contra esta reposição, deixa o PS sozinho a defender em causa própria e a suas custas a reposição, que tanta falta lhe faz, dado que é coerente e gere as finanças do partido com a mesma lucidez e prudência que as públicas.
E como é que os jornais noticiam a posição dos dois partidos face a este dilema? O passatempo de hoje desafia os leitores a adivinharem que jornal noticiou de que modo os mesmo factos, mas sem fazer batota e abrir o link para a página de cada jornal para ver a solução.
Vá lá, eu dou uma ajudinha, um dos jornais é o Diário do Governo Público. Bom passatempo!
Em tempos, tinha o hábito de, ao fim da tarde, parar num bar no regresso a casa, beber um gin (com gelo, água tónica e limão, ainda não havia a moda de acrescentar verduras e bagas suspeitas na beberagem), fazer as palavras cruzadas do Publico ou, ocasionalmente, ilustrar os outros frequentadores com as minhas opiniões sobre as controvérsias da semana.
O carro, parava-o à porta, em cima do passeio, numa rua com escasso movimento. Um dia, um dos dinâmicos executivos municipais que os eleitores se dão periodicamente ao trabalho de eleger resolveu fazer uma revolução no trânsito. Estas revoluções consistiam geralmente em aumentar o número de sentidos únicos, e portanto sentidos proibidos, espalhar semáforos como cogumelos, plantar parcómetros, e reforçar o policiamento, as multas, as receitas e a publicidade aos melhoramentos que a Câmara, extremosa, dedicava aos seus administrados.
E como as pessoas se deslocam de automóvel para ir de um sítio a outro, o excesso de voltas e voltinhas deu como resultado, como dá em toda a parte, que os destinos ficassem mais longe e as pessoas passassem mais tempo ao volante, o que, na inexistência de arruamentos novos, originou um aumento, inteiramente desnecessário, do tráfego.
Continuei a estacionar onde sempre estacionei, mas agora com o incómodo de ver os autocarros, que anteriormente por ali não passavam, a abrandar para não me riscarem a máquina visivelmente em contravenção. E mesmo não tendo um excessivo respeito por quanto idiota, local ou nacionalmente, inferniza a vida do cidadão, e quanta legislação é todos os dias defecada, não levo o comportamento anti-social a ponto de incomodar directamente o meu concidadão. Passei a parar longe, quando havia lugar.
Outros tempos. Que uma nova edilidade gastou milhões a alargar passeios, substituir pavimentos, aumentar as proibições de estacionamento, voltar a mudar os sentidos de trânsito, reforçar a plantação de semáforos e parcómetros, ostensivamente tornando a utilização do automóvel na cidade, na maior parte do tempo e dos lugares, a pain in the ass, como dizem os americanos com a elegância que se lhes reconhece.
Pouco tempo depois passei a ir ao tal bar apenas à noite, para jogar cartas ou snooker. E como o dono instalasse uma aparelhagem de karaoke, o estabelecimento adquiriu subitamente, dois dias por semana, uma grande clientela, infelizmente de moços que se sonhavam carreiras no mundo do fado ou, em casos mais graves, émulos de Freddie Mercury, e mocinhas que com frequência vestiam bem de coxas mas também ousavam cantar e, em algumas marés em que a barulheira amainava, emitir opiniões.
Numa das últimas vezes que lá pus os pés, inquiri junto de um responsável camarário, que estimava e calhava conhecer, por que razão quem mandava no trânsito insistia em infernizar a vida dos automobilistas, numa cidade que não é plana, não tem grandes concentrações senão as que a própria câmara incentivou em certas zonas por autorizar desnecessariamente a construção de prédios demasiado altos sem exigir lugares de estacionamento em quantidade suficiente, nem dispõe, embora pudesse dispor, de parques em quantidade suficiente para aquele efeito.
O homem, coitado, era de esquerda, razoavelmente culto (ainda que com opiniões um tanto controversas, como a de achar o século XX notável do ponto de vista das realizações artísticas) e inúmeras vezes me aconteceu em amenas cavaqueiras aceder ao mundo fascinante do amor à igualdade, ao colectivo, à mediania, à inveja social, à modernidade se caucionada por gurus do pensamento, e a um bom ramalhete de disparates de política económica que já então andavam no ar.
Respondeu-me que tudo isso era deliberado, para desincentivar o uso do automóvel. E falou-me nos transportes colectivos, na poluição, no bem que faz à saúde andar a pé, na bicicleta, que na altura ainda não se tinha tornado, como agora, artigo de moda, e na importação de combustíveis, até mesmo na competição absurda, mas real na nossa cidade, de carros de marca para efeitos de ostentação social...
Quanto aos transportes colectivos, disse-lhe o óbvio: que achava óptimo que fossem melhorados, e que os utilizaria quando pessoalmente os encontrasse mais vantajosos do que o meu carro, mas não antes. Quanto à poluição, que não estivesse em cuidados porque isso era um problema que tecnologicamente encontraria solução (e que, de resto, havia inúmeras cidades que tinham menos, e não mais, poluição do que no passado), e que de todo o modo não era premente na nossa cidadezinha. Quanto à saúde, que lhe propunha o negócio equitativo de não me preocupar com a dele, se retribuísse não se preocupando com a minha. Quanto à bicicleta (que eu, aliás, na altura usava com frequência, o que confirmava as suspeitas de alguns dos meus concidadãos de me faltarem uma ou duas aduelas) que lhe augurava problemas muito sérios do sistema cardíaco se ousasse pôr a barriga proeminente em cima de um veículo de tracção animal, no caso de o animal ser ele. Quanto à importação de combustíveis que o Estado nisso encontrava uma das suas maiores receitas. E quanto aos carros que cada um brilha como pode, e tem o direito de o fazer desde que com o que lhe pertence.
Acrescentei, finalmente, que eu não pretendia, nem tinha o direito, de dizer às outras pessoas como se devem deslocar, e menos ainda impor-lhes fosse o que fosse na matéria. E que era por isso que ele era de esquerda e eu não.
A tese nem convenceu nem caiu bem, mas ficamos, como já éramos, amigos - ambos tínhamos muito em comum, em particular um amor acendrado a finos muito gelados em copos velhos.
E a que vêm estas lembranças de há quase duas décadas? Bem, foram suscitadas por este artigo. A cidade não é a minha, nela não me sei deslocar senão com GPS, vou lá raramente, sei que o patético aparelhista do PS que ocupa a presidência a transformou num estaleiro para ganhar as eleições, fiado em que o munícipe o que quer é obra, e que a lógica dos melhoramentos é anti-automóvel, em favor do transporte colectivo e da bicicleta: li algures que se projecta, se é que ainda não existe, uma ciclovia até Vila Franca, o que inculca a esperança de poder um dia chegar a Condeixa, lá onde existe um monumento da autoria de Charters de Almeida, que Cavaco inaugurou in illo tempore. E como no topo da coluna tosca que o falecido projectou há um ninho de cegonhas, não parece rebuscado ter a esperança de que os dejectos vão parar à ciclovia, o que teria uma forte carga simbólica, ao mesmo tempo que reforçava o cunho naturalista do empreendimento.
Com o mal dos lisboetas posso eu bem, ainda que suspeite que não é inteiramente do bolso deles que saem os recursos para estes deslumbres. Mas que não se promova a construção de parques (em altura, o argumento da área ocupada, 15%, não só não impressiona como poderia não aumentar, crescendo todavia a disponibilidade de lugares), e que em vez disso se promova a bicicleta, numa altura em que o motor de explosão está perto de ser substituído pelo eléctrico, e em que o automóvel autónomo se deslocará mais depressa e com mais segurança, desafia o senso, a lógica e a liberdade.
Mao, um dos maiores criminosos do século passado, morreu em 1976, e não há hoje qualquer dúvida sobre a monstruosidade do seu regime. Apesar disso, há ainda maoístas bicicleteiros. E escrevem nos jornais.
Todos gostaríamos de viver num país onde a desigualdade na distribuição de rendimentos é baixa, como a Suécia, abstraindo o clima e as pessoas para quem prefere o português e os portugueses, se bem que nem todos gostassemos de viver num país de desigualdade igualmente baixa, como a Ucrânia. Mas, para níveis de produção de riqueza semelhantes, é melhor um país com menos desigualdades, nomeadamente no domínio da igualdade de oportunidades que permite aos mais capazes e competentes contribuirem para o progresso colectivo sem serem impedidos, empobrecendo a sociedade, por origens sociais desfavoráveis.
Desde que se iniciou o ajustamento, e podemos, para abreviar sem desgastar a conversa com discussões sobre quem conduziu Portugal à circunstância de, em última instância, emitir um pedido de assistência financeira internacional, nem de quem negociou e formulou com os parceiros internacionais o programa de assistência, porque não vale a pena discutir questões de Fé com quem crê que o ajustamento foi obra da vontade de quem o implementou, considerar que o ajustamento se iniciou quando entrou em funções o primeiro governo de coligação PSD-CDS presidido pelo Pedro Passos Coelho em 2011, e se desencadeou a grave crise económica e social que sempre acompanha os ajustamentos, e também não vale a pena gastar tinta, porque também é uma questão de Fé, a discutir se a crise foi da responsabilidade do governo que conduziu Portugal ao ajustamento, ou do que o tirou da crise ao longo do, e graças ao, ajustamento, que o governo foi acusado de aumentar as desigualdades, sacrificando os pobres para beneficiar os ricos.
A observação das medidas mais significativas que afectaram o rendimento, nomeadamente os cortes nos salários da função pública e nas pensões públicas, não sugere intuitivamente que a desigualdade tendesse a aumentar, nomeadamente por todos os cortes terem salvaguardado os funcionários e pensionistas com rendimentos mais baixos, ainda que com limites de salvaguarda tristemente baixos, nécessité oblige, e terem sido fortemente progressivos com os rendimentos, nomeadamente nas pensões, em que os cortes atingiram 25% na parte que excede 4.611 e 50% na parte que excede os 7.000 euros por mês, sendo que os cortes nos salários da função pública, que atingiram 10% nos salários superiores a 4.200 euros, já vinham, nem toda a gente gosta de se lembrar, do tempo do governo socialista anterior, do José Sócrates.
Mas a esmagadora maioria dos observatórios, centros de investigação, académicos, partidos de esquerda, proto-partidos de esquerda, organizadores de manifestações de esquerda, para não falar no braço armado da esquerda na comunicação social, os jornalistas, e da sua tropa de elite, os comentadores, desataram a berrar, e ainda não se calaram, que as desigualdades aumentaram de modo gritante durante o ajustamento, com o complemento implícito ou explicitado que aumentaram por vontade do governo, por razões ideológicas de neoliberalismo, provavelmente para oferecerem uma mão-de-obra aflita e barata à exploração capitalista que permitisse aos capitalistas uma maior acumulação de riqueza. Tudo ilustrado com fotografias de gente a dormir nas ruas, nem todas tiradas em Portugal. A agitprop do costume.
Ainda há poucos dias foi lançado pela insuspeita Fundação Francisco Manuel dos Santos, anteriormente liderada pelo menos insuspeito, porque reconhecidamente mais crítico do governo anterior e nada crítico do actual, académico Nuno Garoupa, mais um relatório, o "Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal: 2009-2014", resultado do projecto Portugal Desigual, coordenado pelo académico Carlos Farinha Rodrigues, um "especialista" em desigualdades, coordenador científico do Observatório das Desigualdades do ISCTE-IUL, e visita frequente do esquerda.net, que afirma que a desigualdade aumentou em Portugal durante o ajustamento, e que os mais pobres foram mais afectados pelo ajustamento que os mais ricos.
Uma vez o relatório apresentado, e dada a tradicional competência dos jornalistas portugueses para sintetizarem um relatório nas palavras de ordem proferidas pelos seus apresentadores, passou a ser universalmente aceite que
Mas terá aumentado?
O Índice de Gini é o indicador universalmente considerado mais representativo para quantificar a desigualdade na distribuição dos rendimentos de uma população, nomeadamente por entrar em conta com os rendimentos de toda a população, e não apenas com amostras, ou uma parte, ou os extremos da distribuição.
Em Portugal, durante o ajustamento de 2011-2014, a desigualdade teve pequenas oscilações de reduzido significado estatístico para se situar em 2014 num patamar historicamente baixo, com excepção do único ano de 2009 em que tinha tido um valor mais baixo que em 2014.
O relatório agora publicado até menciona o Índice de Gini, que no entanto varreu para debaixo do tapete através da escolha do único ano de início que permitia sugerir que aumentou, ainda que ligeiramente, até 2014...
As conclusões do relatório que passaram pacífica e acefalamente para a comunicação social são todas baseadas em indicadores estatísticos parcelares que não representam a desigualdade na distribuição de rendimentos por toda a população portuguesa, mas desigualdades entre segmentos específicos da população, por exemplo, entre os 10% mais pobres e os 10% mais ricos ignorando todos os outros 80%, a esmagadora maioria da população.
(Além de sofrer de vícios metodológicos que podem ser desmontados com explicações fastidiosas que aqui não há espaço para aprofundar, mas de que se pode apontar, a título de exemplo, que o impacte da crise num grupo, por exemplo os 10% mais pobres, não se mede comparando os rendimentos dos 10% mais pobres no início do período com os dos 10% mais pobres no fim do período, que não são os mesmos, mas a evolução ao longo da crise dos rendimentos dos mesmos 10% que eram os mais pobres, ou de qualquer outro grupo para que se deseje medir o impacte, no início do período.)
Qualquer relatório de investigadores ou académicos que, com base noutros indicadores que não o Índice de Gini, e é possível calculá-los de todas as formas e feitios, para todos os gostos, e sustentando todas as conclusões, chegue à conclusão que a desigualdade aumentou em Portugal durante o ajustamento é falso, e é uma análise feita à medida de uma conclusão encomendada previamente, ou seja, um mero caso de desonestidade mental. Dizer que a desigualdade aumenta quando o Índice de Risi diminui é equivalente a dizer que fica mais calor quando a temperatura diminui.
Fica mal à Fundação Francisco Manuel dos Santos, mas é a consequência de dar guarida e palco a académicos mais comprometidos com as suas agendas políticas privadas do que com a ciência, e fica mal aos jornais, mas sobre a competência para informar e isenção destes não vale a pena derramar lágrimas, para não correr o risco de se ficar desidratado.
Há tempos, Passos Coelho perguntava, exasperado, como se esperava que houvesse estrangeiros dispostos a investir em Portugal quando o governo assentava numa aliança com comunistas (disse isto ou coisa parecida, não tenho vagar para procurar).
O comentariado caiu-lhe, previsivelmente, em cima. Passos é odiado, e não apenas detestado, pela esquerda, porque não é da variedade de direitistas de faz-de-conta, como Cavaco (este, se fosse sueco, seria socialista, se lá se admitem socialistas cabeçudos que nem falar sabem), ou Marcelo (que seria igualmente socialista, se fosse francês e lá se admitissem - creio que sim - socialistas incontinentes verbais). E é igualmente abominado por muita direita que lhe execra as profissões de fé, de resto raras, social-democratas, e a acção governativa, que foi insuficientemente reformadora e que, pelo menos numa certa perspectiva, talvez não inteiramente justa, das coisas, privilegiou o aumento de impostos e não o corte na despesa.
A estas duas correntes há que acrescentar personalidades avulsas e revulsivas, como Pacheco Pereira e Manuela Ferreira Leite, ou homúnculos que inexplicavelmente poluem o espaço de opinião pública, como Pedro Marques Lopes ou Marques Mendes.
Por mim, tenho vindo a ganhar respeito ao homem, porque lhe aprecio a teimosia, até mesmo no asneirol ocasional, e porque se é depositário de um ódio tão persistente do establishment esquerdista, isto é, quase toda a gente, e isto sem que nunca ninguém lhe tenha vislumbrado inclinações antidemocráticas, algum mérito terá de ter.
Gente ingénua supõe, porque a comunicação social veicula a ideia, que a doce Mariana é uma azougada filha-família da revolução romântica, a quem sobra em voluntarismo o que falta em senso; que a actrizinha de segunda escolha que se espraia em considerações sobre quanto assunto está na ordem do dia do debate político, e que lidera nominalmente o BE, tem no caco mais do que uma recauchutagem serôdia e colada com cuspo de quanta doutrina marxista aflige a humanidade vai para cem anos; e que o Bloco é um partido social-democrata radical, que pretende curar os males e os desequilíbrios do capitalismo por via fiscal, sem todavia pôr em causa a propriedade privada dos meios de produção e as poupanças, qualquer que seja a sua forma, nossas porque as ganhamos, ou recebidas de ascendentes que quiseram legar à prole o que sobrou de exacções fiscais anteriores.
A receita do BE tem provado ser mais popular que a dos comunistas, porque promete o mesmo mundo igualitário sem a carga imensa do desastre económico e humanitário que foram e são todos os regimes comunistas.
O movimento comunista internacional histórico tem um representante, o PCP, que defende naturalmente quanto regime decrépito nasceu faz décadas, como o norte-coreano ou o cubano; e o BE guarda o seu apoio, e a sua solidariedade, para a Venezuela chavista, para o Syriza, ou para o Podemos que um demente espanhol lidera, porque são modernos, empunham firmemente a bandeira das causas com que alguma gente nova sonha fazer o céu na terra, parecem isentos de violências e terrores, e ainda não foram verdadeiramente testados (salvo o venezuelano, donde o silêncio cúmplice até que se possa afirmar que a CIA fez cair o regime, ou que Maduro não tinha as excelsas qualidades de Chavez).
É isto que explica o apoio embaraçado do PCP a Angola e as críticas veementes que o BE dedica aos atropelos aos direitos de cidadãos angolanos; e é isto que explica o sucesso eleitoral do BE ̶ não são comunistas, credo, eles em tendo poder porão os ricos na linha e teremos finalmente investidores que querem apenas genuinamente criar riqueza e postos de trabalho, mas não lucros senão os que distribuem em prémios comedidos pelos trabalhadores, gestores beneméritos que salvam empresas sem que ganhem mais do que o quartil superior de um leque apertado de salários, herdeiros mas apenas dos álbuns de fotografias da família, ricos por se deslocarem em carros de gama média e não utilitários, além de terem nos casos mais salientes uma quintinha para férias, e de forma geral cidadãos obedientes a um Estado igualitarista e perfeitamente livres de guardar tudo o que não suscite a cobiça do vizinho e pensar tudo o que os mandarins do pensamento não achem sexista, racista, imperialista, machista, fascista e uma extensa, e crescente, lista de outros istas.
Na prática, não há qualquer diferença entre a soturna, e sinistra, cartilha de Jerónimo e o discurso da simpática, desempoeirada e até (para mim, que sou sexista e tenho muito mais inclinação para prestar atenção à carinha - e ao resto - de Mariana do que às tolices que vai expectorando) encantadora pasionaria de Alvito e das marchas LGBT. E isto mesmo que, surdamente, os comunistas autênticos detestem os bloquistas, as suas sapatilhas de marca, a sua indisciplina e o seu relativo sucesso.
Porque é equivalente eliminar os ricos, isto é, os que assim são considerados depois de os verdadeiros terem sido destruídos no PREC, e de os poucos que ainda sobram ou renasceram terem prudentemente o grosso dos seus cabedais a bom recato, expropriando-lhes os bens e nacionalizando-lhes as empresas; e ir lentamente, por via fiscal, taxando não apenas os rendimentos mas também o capital, começando por taxas ou limiares que não pareçam confiscatórios e ir aumentando ̶ como a rã que não salta se mergulhada em água morna e se vai adaptando ao aumento de temperatura até que morre cozida.
Quererá mesmo o PS ser “alternativa ao sistema capitalista”? E até que ponto? ̶ pergunta Mortágua, e as fotografias mostram um Galamba, o rebo de serviço do PS, embevecido.
Olha, filha, querida, se a dúvida é essa estou em condições de esclarecer: O PS está com Costa porque Costa inventou uma receita inusitada para salvar a pele, e isso deu-lhe poder para distribuir tachos; e correrá asinha com ele logo que a estrela se lhe apague. O PS de hoje parece liderado pelo BE e sê-lo-á na exacta medida em que isso permita a Costa fazer aprovar a legislação que a Europa possa fingir que não está a ver onde conduz. No teatro europeu representa-se uma peça de teatro, e a plateia não veria com bons olhos que se empurrasse um actor desastrado: é preciso que ele caia pelo seu pé.
Caia em breve, ou mais adiante, o PS, anticapitalista não é. E logo que haja oportunidade isso mesmo te dirá um Francisco Assis, um Sérgio Sousa Pinto ou até uma das rolhas que, desde Guterres, servem com devoção a causa socialista e o líder do dia, desde que devidamente acolhidos no quente regaço do Orçamento de Estado. Depois é claro de uma travessia do deserto, porque quanto mais tempo durar este governo mais créditos políticos (e débitos em metal sonante) terá o seguinte.A boa pergunta é portanto: esta primavera esquerdista, e a tua celebridade, durarão até te aparecerem as primeiras rugas?
Acho pouco provável. Razões pelas quais não aconselho uma basezinha tonificante, mas recomendaria um creme. Para as espinhas.
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