Nos meus dois posts anteriores informei com humildade a que actividades dediquei a ponte e o feriado do 25 de Abril, num dia passeando na cidade com o nariz no ar, com a tranquila certeza de não topar com manifestações, porque já não há, e no outro carregando cestos de compostagem.
O meu verdadeiro 25 de Abril, porém, foi a 26, um dia memorável. O BPI, uma instituição daninha, trespassou-se para Espanha. E do novo gestor, Pablo Forero, que não conheço, posso dizer o que o palhaço Tiririca dizia de si mesmo, pedindo o voto: pior não fica!
O dia não foi perfeito: Fernando Ulrich, um ser pertencente à multímoda espécie humana, sobre cujas qualidades me pronunciei inúmeras vezes (aqui e aqui, por exemplo) recebeu uma indemnização de 465,5 mil euros, em vez das 100 chibatadas que mais adequadamente coroariam a obra que deixou em herança, para não falar do risco de continuar a poluir as instalações da sede com a sua presença remunerada; Santos Silva, uma conhecida rolha do regime, que pelo menos uma vez já honrei com a atenção que não merece, também junta uma prebenda às que já tem, ficando como presidente honorário e a presidir a uma nova comissão dedicada à responsabilidade social. Seria desejável que, em troca do estipêndio que decerto irá receber, e que o artigo, por pudor, omite, fizesse um voto de silêncio. Mas não, é de presumir que se venha a aliviar junto da comunicação social dos lugares-comuns que o tema da responsabilidade social haverá de inspirar naquela calculista cabeça - as rolhas, como é sabido, não afundam.
E falta ainda Lobo Xavier, um histórico do CDS que vai vice-presidir a não sei quê e que, da Quadratura do Circulo, um programa que por inércia continuo a ver, não cessa de gabar as virtudes da geringonça, os méritos de Costa, a habilidade política de Costa e a bondade dos novos caminhos que imprimiu ao país em geral, e à banca em Portugal. Sim, percebo.
Pode de tudo isto inferir-se que detesto esta gente? Claro que não, que ideia: eu, Ulrich, odeio, Santos desprezo e para Xavier guardo a secreta admiração que sempre tive por videirinhos.
Ou por ser burro e não saber, ou por ser aldrabão e esconder, ou, o que é mais provável, por conseguir acumular as duas qualidades em simultâneo, o primeiro-ministro António Costa recusa responder no parlamento a qualquer deputada da oposição quando lhe pergunte qual era o valor da dívida pública portuguesa no final de 2016. Na melhor das hipóteses é capaz de a pôr no seu lugar de mulher burra e propor-lhe responder-lhe à mesa a comer um peixinho grelhado, como se houvesse resposta a qualquer pergunta que fosse, mesmo que sobre a vida e a morte, que valesse o enxovalho de se sentar à mesa com um burgesso como ele. Não há, e não foi ele que lhe respondeu.
Felizmente, o Banco de Portugal tinha a resposta para lhe dar, e aos seus constituintes, e aos dos outros deputados: no final de 2016 a dívida pública portuguesa ascendia a 241.100.000.000 de euros, e eu vou soletrar para não vos obrigar a contar zeros, a duzentos e quarenta e um mil e cem milhões de euros. O número passa muito para além da capacidade do cidadão comum, e de alguns incomuns, entender a sua dimensão, mas é fácil explicá-lo numa dimensão mais inteligível para todos, pelo menos os que conseguem lá chegar por não terem sido sido toda a vida indigentes: cada português deve 24.110 euros por conta da dívida pública que os diversos governos se foram encarregando de fazer engordar.
Cá em casa, entre os três, já devemos um Porsche Boxter com alguns extras. Se o meu filho mais velho ainda cá vivesse, talvez ainda conseguíssemos chegar a um 911 muito bem regateado. Devêmo-lo, mas ainda não o recebemos. Nem nunca o vamos receber. Ficamos com as prestações para pagar. Foi assim como fazer muitas vazas a jogar para nulos.
E o que fazem o governo e os patetas que o sustentam politicamente, porque governa tendo perdido as eleições, para nos aligeirar o fardo desta dívida? Anda a rapar os tachos que tem à mão, e a fazer-se a alguns que não tem, para ir encontrando os tostões que ainda lhe sobram: atira-se às reservas do Banco de Portugal, atira-se à almofada financeira, troca dívida de longo prazo, que um dia há-de ser necessário reembolsar, por dívida de curto prazo, mais barata mas que está aqui, está a precisar de ser reembolsada. Anda a fazer equilibrismo na corda bamba dos mercados.
E gastar menos? Nada disso, está a aumentar, na medida do possível, ou do que lhe permitem as instituições europeias que deviam proteger os interesses dos contribuintes portugueses mas na circunstância actual têm mais com que se preocupar, os custos fixos incompressíveis, aqueles que nem um futuro governo eleito terá capacidade para reduzir por ficarem blindados à guarda do Tribunal Constitucional, os salários e os quadros da função pública. De modo que, por mais artifícios contabilísticos que eles façam e lhes deixem fazer, se está gorda, a dívida é para continuar a engordar sem apelo nem agravo.
Se agora só devemos um Porsche, e um mísero Boxter, com alguma sorte ainda em vida chegamos a dever um Aston Martin. Felizmente, acabado de fazer 60 anos, não tenciono pagar as prestações, que não chego lá, e deixá-las-ei em herança aos meus filhos e, quando chegarem, aos netos, e por aí fora.
Felizmente não acredito na ressurreição, porque não queria nada ser um português das próximas gerações...
No feriado do 25 de Abril, da parte de tarde, estive no meu quintal a transferir compostagem de um lado para outro, razão principal porque não ouvi os discursos. De toda a maneira, motivos de força maior desta natureza têm-me impedido há muito de os ouvir, salvo num ocasional resumo nas notícias e mesmo assim apenas aqueles, do lado direito do espectro, de onde pode, em momentos de sorte ou acaso, vir alguma coisa não direi memorável, mas ao menos apropriada e justa.
As portas que Abril abriu foram duas que valem a pena, a da liberdade de expressão e a da possibilidade periódica de despedirmos quem nos pastoreia (na realidade a motivação não era abrir porta nenhuma mas fechar a da guerra colonial, porém deixemos esquisitices); e outras que melhor fora terem continuado fechadas, como as da cave onde se guardava o ouro do Banco de Portugal, a do défice, do calote, do crescimento anémico, da dívida pública sem precedentes, da estrangeirização das grandes empresas e dos bancos, da destruição quase total dos capitalistas de substância e portanto da capacidade de investimento indígena, da moeda própria (que era uma válvula de segurança que protegia a economia do excessivo asneirol das decisões de política económica), e a da infantilização de uma parte considerável dos cidadãos, que é hoje incapaz de conceber a sua vida sem depender do Estado para o ordenado, a pensão, a saúde, e até mesmo as regras de comportamento nos aspectos comezinhos do dia-a-dia, cada vez mais opressivas.
Não é impossível, ainda que pouco provável, que o défice real (isto é, sem aldrabices) venha a estancar; que o calote, ou seja, o quarto resgate, não venha a materializar-se; e que o crescimento, à boleia do crescimento dos outros e do turismo, pareça durante algum tempo menos tíbio. Mas, digam os liberais o que disserem, não é a mesma coisa sermos explorados por empresas monopolistas nacionais ou estrangeiras, porque no segundo caso os lucros não ficam cá; não é garantido que a gestão bancária internacional seja menos inepta que a portuguesa, nem que o BCE seja menos parasitário, ou mais lúcido, ou mais competente, que a filial portuguesa, que aliás mantém e manterá a mesma gordura que tinha quando servia para alguma coisa; e que, finalmente, os cidadãos tão ferozmente europeístas não mudem de opinião se a UE, por se estar a esfarelar ou outra razão, deixar de pingar. Porque ela pinga, pinga todos os dias, e é com esse bodo, do qual já se espatifaram desde 1986 incontáveis biliões, que se sustentam milhares de parasitas, se investe alguma coisa, e se juntam tostões do Orçamento do Estado para o país se cobrir de realizações que, com a devida propaganda, levam o cidadão a acreditar que é apenas uma questão de tempo até ficarmos como a mítica Dinamarca.
A formação da opinião, porque é feita geralmente por dependentes directos ou indirectos do mesmo Estado, que entretanto deixou ele próprio de conceber a sua perpetuação fora do quadro da União Europeia, é quase sempre de índole europeísta e esponjosa, no sentido de absorver e veicular quanta ideia moderna igualitarista, burocrática, revolucionária nos costumes, e estatista nas escolhas, anda no ar internacional.
Na prática, Portugal é menos independente dos poderes de Bruxelas ou Frankfurt (não falo de Estrasburgo porque aí se acolhe a secção dos treteiros pagos a peso de ouro para aceitarem fingir que mandam ou representam alguma coisa) que o Montana dos de Washington; e os únicos verdadeiros patriotas que restam são quase exclusivamente uns senhores que só o são porque já não há URSS para liderar o movimento comunista internacional, caso em que seriam abjectos agentes a soldo de uma potência estrangeira. Estes, em conjunto com os filhos e netos de Maio de 68, que se distinguem dos primeiros pelo acne, o práfrentex dos costumes, e a doença infantil da revolução, têm por ambição transformar Portugal numa Venezuela um pouco menos miserável, com um pouco mais de história e de hábitos de civilização. E entretanto vão vivendo com um conforto razoável, à sombra dos jogos que a democracia que desprezam, e do PS que oportunisticamente os usa, lhes proporcionam.
Este nó será desatado daqui a vinte meses ou vinte anos: a casta dirigente europeia não quer nenhuma reforma que lhe diminua os poderes, e por isso contará as derrotas, como o Brexit, como um incentivo para reforçar a integração, e as vitórias, como a possível de Macron, como a confirmação do bem fundado do seu caminho. E o bom povo português no momento próprio comerá a erva que tiver que comer, e apertará o cinto em quantos furos forem necessários, ao mesmo tempo que se tiver um culpado que possa plausivelmente designar o cruxificará, e cairá de joelhos perante o salvador da circunstância, se houver, ou desatará à batatada, se não aparecer.
Pode ser assim ou de outra maneira mas entretanto é preciso viver. E regresso aos discursos porque tropecei na notícia sobre este, da candidata do PSD à câmara de Lisboa, e, movido pela curiosidade, fui ouvi-lo.
Foi o último de entre os dos representantes dos partidos, e enquanto procurava não pude evitar ouvir partes do impressionante chorrilho de banalidades com que cada um entendeu útil assinalar a data. Com o de Teresa pasmei: Portugal não tem um problema de impostos a menos, tem um problema de impostos a mais; não tem um problema de evasão fiscal, nem de offshores, tem um problema de falta de capital para evadir; não tem um Fisco ineficiente, tem um Fisco terrorista; não tem corrupção a mais por os locais terem uma especial propensão para a corrupção, tem corrupção a mais porque o polvo do Estado, que patrocina, subsidia, autoriza, proíbe, atrasa, licencia, legisla diarreicamente, está por toda a parte; e tem uma desconfiança do cidadão em relação à classe política porque o instituto do enriquecimento ilícito, que poderia servir para a diminuir, evitando o arrastar inadmissível de casos como o de Sócrates ou Dias Loureiro, é apresentado como devendo ser aplicável à generalidade dos cidadãos, o que nem o Tribunal Constitucional, um órgão caracteristicamente de esquerda, pôde aceitar. O PSD é isto: socialistas mais sérios e mais competentes do que os genuínos, com um spin muito menos eficiente e mais escrúpulos na manipulação da comunicação social ̶ mas iguais na essência.
Toda a legislação para combater abusos dos grandes serve, em Portugal, para perseguir os pequenos, sempre que implique inversões do ónus da prova, diminuição de direitos e reforço dos poderes da Administração. Diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras, e digo eu, para ilustrar o ponto, que 500 palavras, se verdadeiras e sentidas, como estas aqui, mais do que um ensaio. E é no dia da liberdade que sai um discurso destes?
Portugal é, por razões que aqui não cabem, um país de esquerda. Essas razões creio não ter dificuldades em percebê-las, mas por que motivo pessoas do PSD e do CDS defendem (e põem em prática, quando no poder) ideias que a esquerda coerentemente subscreve é atitude cujo racional me escapa. Será para ganhar eleições?
Se é, trata-se de um equívoco. O eleitorado, e bem, acaba sempre, a prazo, por preferir os originais às cópias. E não vale a pena ser governo, mesmo que seja apenas duma câmara, para se fazer o contrário daquilo que se acredita ser o bem comum. Ou então acha-se que o bem comum é o mesmo quando a informação de que se dispõe é a mesma, como entendia o infeliz Cavaco, que se fartou de ganhar eleições porque as circunstâncias históricas lhe correram de feição e acreditava genuinamente - lá está - nas tolices que expelia.
O Partido Socialista já foi o partido de gente
agora, desde que o António Costa tomou o partido à bruta, mas de quem nasce bruto não se pode esperar diferente, é um partido de fantoches e ventríloquos, patetas em funções de responsabilidade sem preparação nem dignidade para as assumir e que não sabem o que hão-de dizer a papaguear o que lhes dizem para dizer outros patetas em funções de responsabilidade sem preparação nem dignidade para as assumir e que também não sabem o que hão-de dizer mas têm ascendente sobre os primeiros para os fazer dizer aquilo que lhes mandam dizer. Nivelados pelo chefe, e exibindo como única competência a de tentarem ser tão ordinários como ele.
Um esgoto a céu aberto.
Vivo, desde 1975, num sítio que dantes ficava na periferia da cidade. Antes disso, e salvo umas ausências esporádicas de uns quantos anos no Porto, morei numa freguesia rural e em várias casas, duas delas na praça mais antiga, então decrépita e hoje reabilitada.
Comecei a minha vida profissional na Câmara local, e por lá fiquei quase onze anos.
Quer dizer que deveria ser um arreigado bairrista, mas não: sempre a minha vidinha me interessou muito, a do país bastante, a do mundo alguma coisa e a do concelho quase nada. Vou a ponto de confessar, compungido, que se o Vitória de Guimarães fosse para a segunda divisão (que agora se chama de Honra, possivelmente pela sua clamorosa escassez) o facto só me aborreceria por ter de aturar a sentida tristeza de alguns amigos; e que dispensaria as honras pacóvias de que os meus conterrâneos se ufanam (capital europeia disto e daquilo) se elas não tivessem palpáveis vantagens para o comércio, a cujos interesses não sou, em abstracto, alheio, e para a conservação do património.
Há uma dúzia de anos saio de casa e viro à esquerda, salvo seja, em direcção ao concelho vizinho, onde trabalho; e como o bar onde durante mais de vinte anos ia ao fim da tarde conviver com parte das forças vivas da terra fechou, pouco menos seria ignorante da vida da terra se vivesse em Phnom Penh.
Aos sábados de manhã, vou, há mais de vinte anos, ao outro extremo da cidade, com frequência a pé, à mesma esplanada, pacificamente considerada um lugar fino; e aí lia o Público, quando Vasco Pulido Valente ainda lá escrevia, e leio agora o correio, a blogosfera, o facebook, o Alberto Gonçalves (VPV mudou de dia e de jornal) e coisas várias.
Hoje lá fui pachorrentamente, fumando; e, ao passar na rua da Rainha, reparei neste prédio. Pasmei para o cartaz, que anuncia a instalação de "residências para investigadores". E, como fiquei curioso, ao chegar ao destino apropriei-me da agenda cultural do mês, publicação municipal profusamente distribuída cuja leitura habitualmente evito, por razões de higiene, a ver se encontrava notícia do empreendimento. Nada: a agenda em questão, aliás, não se chama assim, dizendo singelamente na capa "Guimarães Arte e Cultura", sobre fundo de fotografia desmaiado em azul ciano de uns piolhosos com ar fortemente artístico.
Um portento, o livrinho de quarenta páginas, fora o encarte, com 30, específico do "Centro Cultural de Vila Flor". Logo na capa listam-se alguns dos organismos que, além daquele Centro, se ocupam da cultura dos munícipes: são eles a "Plataforma das Artes e da Criatividade", a "Casa da Memória", o Centro da Criação de Candoso", o "Espaço Oficina", a "Fábrica Asa", o "Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura" e finalmente o "Laboratório das Artes".
Espiolhando a Internet encontram-se notícias do que se faz nestes organismos; e alguns já visitei com a secreta, e desiludida, esperança de não confirmar os meus preconceitos. Dou, pela leitura da Agenda, alguns exemplos:
No Grande Auditório vai uma peça de Máximo Gorki, assim apresentada, juro: "Veraneantes é uma tapeçaria de desejo e frustração que autopsia a nossa impotência perante o desenrolar da vida". Deve tratar-se, imagino, de um tapete estragado a embrulhar o cadáver de um cavalheiro que se suicidou em razão de problemas de índole sexual. Passo.
Estreia absoluta de "Vespa", de Rui Horta, um solo interpretado pelo próprio, após 30 anos de ausência do palco. "Vespa é uma peça sobre uma cabeça a explodir, sobre o que nem sequer falhámos porque nos coibimos de cumprir. Na dupla condição de voyeur, a do outro e a de si próprio, o público compõe o tétris do personagem em cena, desafiando a sua própria concepção do registo público e privado". Não li o resto, e portanto não estou em condições de explicar o que Rui se propõe fazer em palco (nem possivelmente estaria mesmo que lesse porque nem sequer o primeiro parágrafo entendi). Não obstante, a referência aos trinta anos de ausência lança sobre o artista uma luz favorável, por não ser impossível que tenha estado em meditação num mosteiro budista. Mesmo assim, o risco é demasiado grande: passo.
Há muito mais: Numa coisa chamada "Bufos", um tal José Almeida Pereira, com a participação de Cristina Mateus e Max Fernandes, propõe-se "contra a fugacidade do tempo incitar a imaginação do observador e convidá-lo a demorar-se no espaço sensível da sua subjectividade para escapar à luz estroboscópica das imagens". Ainda li mais um bocadinho, a ver se não seria um ménage à trois com luzes psicadélicas, caso em que o assunto mereceria alguma ponderação, mas parece que se trata de pintura: "O que se coloca diante de nós são simples espectros, pequenos vestígios, rastos de um conjunto de imagens que teimam em permanecer para sempre na memória". Uma coisa destas ficar na memória não parece um perigo muito plausível, mas a prudência aconselha a não menosprezar a ameaça: passo.
No meio da cangalhada, há uma ou outra coisa com interesse: teria sido capaz de ir ver a Orquestra de Guimarães, para ouvir Mendelssohn, desde que arranjasse um lugar na coxia, para o caso de a orquestra em questão, que não conheço, ter som de cana rachada, e poder dar à sola discretamente. E é com certeza impossível que ninguém faça, nesta floresta de organismos, obra de mérito e trabalho respeitável. De resto, este esparramar de dinheiro com o que se toma por cultura, e esta abundância de vacuidades, não são um exclusivo da terra, nem português.
Mas não preciso de ver contas para saber que tudo isto dá prejuízo; e não se requerem grandes rasgos de lucidez para perceber que o fio condutor destes organismos é a criação de empregos públicos e o sustento de artistas que o mercado não alimenta.
Pessoas que o poder nomeia para terem empregos permanentes na vaca marsupial pública, e que escolhe para terem apoios e subsídios que são negados a outros, como se houvesse outro critério que não seja a filiação partidária e o amiguismo. E isto numa amálgama pornográfica (no caso de Guimarães) com a recuperação do património, que tem sido feita com sucesso, critério e resultados.
Conservar e restaurar o património é função do Estado. Patrocinar o ensino da música ou das artes plásticas, também. Mas a produção artística - não. É claro que o Estado pode ocasionalmente comprar peças de Arte contemporâneas, para efeitos de arranjo ou enriquecimento de espaços, como sempre fez; assim como mandar fazer edifícios, quando necessário, não sendo indiferente que seja o arquitecto A ou B a projectar. Isto mesmo tendo presente que a única maneira segura de investir em Arte contemporânea seria a de pagar com promissórias a validar em 100 anos, no caso improvável de os nossos trinetos subscreverem o que sobre Arte se pensa agora.
Mas no nosso país falido, muito mais do que num país normal, o rateio dos dinheiros públicos deveria estar ao abrigo de equívocos. Quem quer pintar que pinte, quem quer representar que represente, quem quer escrever que escreva, quem quer esculpir que esculpa, quem quer compor que componha. Mas quem quer mamar que espere - espere pelo restauro dos monumentos a cair, dos acervos de museus e bibliotecas que se deterioram e não crescem, pelas obras nas escolas que não se fazem. Espere, em suma, pela cultura que não tem voz e por isso não berra, não reclama, não faz reivindicações nem, graças a Deus, exposições, workshops e agendas culturais.
Então os seis investigadores da Rua da Rainha, para cujo alojamento se vai gastar à cabeça para cima de um milhão de Euros, vão investigar o quê? Isso é segredo, o que a notícia diz é que vão "interagir" com a população local.
Não deve ser para apurar o destino que a Câmara dá ao IMI que rouba. Isso já sabemos.
Morreu uma adolescente de 17 anos num hospital do Serviço Nacional de Saúde por ter sido contagiada com sarampo, doença para a qual não estava imunizada por não ter sido vacinada, no decorrer de um internamento por uma doença menos grave e não letal, a mononucleose.
O SNS é regularmente apontado pelos seus responsáveis como um dos melhores do mundo com base em estatísticas e comparações várias e, relativamente ao sarampo, é mesmo classificado pelo próprio Director-Geral de Saúde, um dinossauro da burocracia que já enterrou mais ministros do que a viúva negra maridos, talvez por ao longo das últimas décadas ter conseguido com sucesso ser ele o porta-voz das boas notícias no domínio da saúde, por exemplo, o espectacular dispositivo de resposta à gripe A, e delegar nos ministros as más notícias, por exemplo a fortuna gasta em milhões de vacinas para a gripe A que foram adquiridas mas nunca ministradas, como motivo de inveja lá fora.
O DGS foi, prontamente como lhe é tradicional, o primeiro a reagir, apontando as baterias à falta de vacinação, e tendo mesmo sugerido, depois deixou cair à medida que se apercebeu que tanto a tutela como o poder político não estavam para aí virados, a obrigatoriedade da vacinação.
E estava dado o mote, a culpa não era da falta de condições para proteger os doentes contra o contágio por outras doenças nos estabelecimentos do SNS, mas da recusa de vacinação, tanto dos doentes que contagiam os outros, como dos que se deixam contagiar. Esta linha de argumentação é brilhante e está destinada ao sucesso garantido, até porque basta dar o pequeno salto de associar a falta de vacinação à recusa de vacinação, e esta a crenças próprias de seitas religiosas ou atitudes naturalistas de hippies retardados, para iniciar uma guerra ao obscurantismo pelo iluminismo, e qual de nós não adere entusiasticamente a uma guerra em que se sente elevado pela superioridade civilizacional e moral, que no entanto a Zita Seabra explicou cristalinamente que justifica as maiores barbaridades, que tão bem sabe? E assim se iniciou mais uma cruzada contra o obscurantismo da falta de vacinação.
Montada a pira de lenha no pelourinho para o julgamento na praça pública pelo burocrata-mor, foi imediatamente regada com gasolina por médicos mediáticos, e quem aparece primeiro ganha pontos no campeonato do mediatismo, como o pediatra Mário Cordeiro com tiradas a dar títulos como "O movimento antivacinas é idiota e é uma afronta aos mortos" ou "Pais que não vacinam filhos são negligentes e deviam ser responsabilizados". Já havia um embrião de sentança, os pais destas crianças com sarampo são idiotas e deviam ser criminalizados. E os burocratas e os médicos ilibados, digo eu que é uma consequência lógica da anterior.
Mas, mesmo nos tribunais da opinião pública que tendem a ser muito mais expeditos a dissipar as dúvidas e a chegar a sentenças definitivas do que os tribunais de justiça, chegam a ouvir-se testemunhas, e chegou a vez aos jornalistas. A jornalista do Expresso não teve dúvidas em denunciar que "Mãe da rapariga de 17 anos é antivacinas..." mas, pior ainda, "...e adepta da homeopatia", informação que lhe tinha sido passada por fonte médica. Estava dissipada qualquer dúvida sobre a pertença destes pais às forças do obscurantismo. Que andamos todos a combater, digo eu. A notícia foi posteriormente actualizada com informação prestada por familiares dos pais que explicaram que a jovem não tinha sido vacinada contra o sarampo na altura prevista por indicação médica, por ter feito um choque anafilático grave em reacção a outra vacina, mas o título da notícia, que é a única coisa que interessa, não foi alterado num milímetro, e ficou para a posteridade que "Mãe da jovem que morreu com sarampo é antivacinas". Podia-se, pois, passar à execução da pena e pegar fogo à pira e aos pais.
E foi o que aconteceu. No pelourinho das redes sociais, no julgamento dos pais que recusam vacinar os filhos pelos cidadãos que defendem a vacinação, aqueles pais foram condenados ao ridículo do obscurantismo desalmado que lhes fez matar a própria filha. Assunto arrumado.
A alegação de que não tinham vacinado a menina por indicação médica depois do choque anafilático não foi considerada relevante pelos membros do júri, que somos todos nós. Provavelmente foi uma desculpa esfarrapada para fugirem às responsabilidades. E apareceram logo médicos a esclarecer que, mesmo com o choque anafilático anterior, os pais poderiam à mesma ter vacinado a menina, nem que a internassem num hospital para lhe dar a vacina e controlar os efeitos da reacção alérgica num ambiente medicamente controlado. Aliás, a desculpa era desinteressante por transferir a responsabilidade dos pais para a pediatra da menina, e nem o DGS nem os médicos mediáticos gostarem muito de apontar o dedo a outros médicos quando o podem apontar a pais obscurantistas.
E a quem saiu a sorte grande neste julgamento mediático?
Ao Ministério da Saúde, que, com todos ocupados a discutir o obscurantismo dos pais, ninguém questionou seriamente sobre como é possível um doente ser internado num hospital com uma doença benigna e sair de lá para o cemitério com uma doença mortal que apanhou por contágio no hospital onde era suposto ter sido tratado da doença que levou e protegido de contágios de outras doenças. Mas esta é uma daquelas perguntas a que não interessa procurar resposta, para não estragar o ambiente de descrispação em que, graças a Deus, ou ao presidente e ao primeiro-ministro, vivemos.
Sabe-se que o governo resulta de um imaginativo golpe de rins do PM, que trocou uma possível luta de faca nos dentes dentro do PS, decorrente da sua surpreendente derrota eleitoral, pelo poder de distribuir lugares no governo e no aparelho do Estado, que garante o sossego e a unanimidade das hostes. Fê-lo com o expediente simples, e inesperado, de atrelar comunistas a uma maioria parlamentar.
A jogada não havia sido prevista, e menos ainda discutida, na campanha, e não tinha precedentes. E como o PCP sempre se distinguiu, desde há quarenta anos, pela sua adaptação meramente tática à democracia parlamentar, que aliás nos seus textos doutrinários continua a desprezar; nem se nota qualquer quebra de disciplina entre o seu pessoal político, que é inteiramente recrutado nas suas coudelarias privativas, que asseguram a opacidade e a reprodução do pessoal político por cissiparidade - são todos iguais: resulta que trazer comunistas para o poder não foi cousa pouca.
Acharam muitos, e eu também, que um governo destes não podia durar: António Costa, e com ele a camarilha dirigente do PS, não tem, sobre o governo do país, ideias substancialmente diferentes das que tinha Sócrates; a negociação permanente com o PCP e as vedetas bolivarianas do BE só podia reforçar o pendor despesista, estatista e terceiro-mundista da situação; e a UE cedo cortaria cerce as veleidades no derrapar da despesa, no aumento do défice e na continuação do financiamento.
O Orçamento confirmou as presunções: era inexequível sem agravamento do défice, não continha medidas sérias de reforma do Estado que facilitassem o crescimento e, cria-se, Bruxelas não o deixaria passar.
Mas deixou, com reservas e vigilância. O Orçamento foi o segundo golpe de rins de Costa, e desta vez duplo: aldrabou os patrões europeus pelo expediente de garantir o cumprimento das metas, custasse o que custasse, com a consciência de a UE não querer, por estar ela própria periclitante, dar as mesmas provas de intransigência que deu aquando do programa da tróica; e obteve aprovação dos seus parceiros apresentando-lhes um orçamento incompatível com as metas que traçava, que depois adulterou comprimindo as despesas mais caras à esquerda, aumentando os impostos que a mesma esquerda considera mais injustos, e dando um bodo fiscal às empresas, sob a forma de perdão fiscal e reavaliações. Para garantir o apoio da massa dos votantes retocou pensões e salários da função pública, mesmo ficando sempre aquém da propaganda que uma imprensa obsequiosa veicula, e estancou a redução de pessoal empregado no Estado.
Com isto, mais cativações e aldrabices menores, às quais de resto os governos da democracia sempre recorreram, apresentou o menor défice da democracia. Não foi, claro: O Conselho de Finanças Públicas acha que não, mas o que o eleitor vê e ouve todos os dias não é aquele Conselho, nem os discursos cépticos de economistas sérios, nem a Oposição que ainda há pouco deprimia toda a gente por não prometer um futuro radioso. O que vê é o optimismo nas declarações oficiais, a taxa de desemprego que baixa, a paz nas ruas que a CGTP garante e os bancos que recomeçaram a dar crédito ao consumo.
Jogada de mestre. Tão de mestre que eu, se fosse comunista, começava a perguntar aos meus botões se não estava a pagar caro demais o apoio: as sondagens mostram que o PS sobe nas intenções de voto e Costa, se tiver uma maioria absoluta, não hesitará em reverter, à menor pressão europeia, as cedências que já fez aos bandos à sua esquerda, porque não tem mais norte do que seja o interesse público do que as galinhas, que entendem que aquele interesse é onde estiver o milho.
Entretanto, a dívida pública continua a derrapar. E suponho que os Centenos, Trigos Pereira, mais a vasta floresta de académicos e funcionários que servem o poder do dia, muito devem coçar as pensativas cabeças sobre como aldrabar este indicador, que não cola com o resto. Se houver alguma maneira, encontrá-la-ão. E têm para isso suporte teórico: não é verdade que a economia vive da confiança e das expectativas? Pois então, dourar os números é, bem vistas as coisas, quase um dever patriótico. Sê-lo-ia, também, o trabalho de explicar como é possível que a dívida pública cresça mais do que o défice, mas os economistas ditos de direita têm-se poupado, que eu saiba, a esse excessivo trabalho, decerto por não terem acesso a números que estão escondidos nalgumas gavetas.
Estamos assim. E como a população só vê ao perto, e não tem nem quer ter óculos para ver ao longe; como a Europa finge que é míope, porque corrigir as dioptrias causaria de momento alguma perturbação noutros órgãos; e como a comunistada ou foi apanhada na sua própria armadilha ou aposta que quanto pior a prazo, melhor:
Portugal hoje está um torpor, tanto que Costa pode talvez durar. Para mim, isto é uma grande maçada, não tanto por estar excessivamente preocupado com as futuras e garantidas desgraças dos meus concidadãos - têm o que merecem - mas porque me enganei.
A União Europeia, o PCP, o Bloco, a maioria dos eleitores e eu - somos muita gente a ser enganada. Este homem ou é um génio, ou um crápula, ou um crápula de génio.
Génio não creio, porque lhe falta esta estatura.
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É preciso mais do que um bocado de lata para um banco que, quando é mal gerido, e, quando o é, é-o pelo facto de ser público e seguir recomendações ou ordens da tutela, e as tutelas socialistas não se têm furtado a fazer-lhe recomendações e a dar-lhe ordens em nome do financiamento dos sectores estratégicos da economia, das pequenas e médias empresas, e dos empresários amigos dos governantes socialistas, tem a garantia de reposição do capital em falta por extorsão dos contribuintes, e acabou de ser recapitalizado por uma das maiores operações de extorsão dos contribuintes da história de Portugal, que delapida o capital, quando o tem e quando não o tem, em sedes majestáticas e fundações culturais que não cumprem função cultural nenhuma mas dão patine ao nome aos gestores que as fundam, competir pela consignação de 0,5% do IRS com pequenas organizações não governamentais que cumprem funções sociais e humanitárias notáveis e imprescindíveis nas áreas onde o Estado, e é melhor não falar da banca para não desatar a dizer palavrões, falha redondamente, até porque canaliza o dinheiro dos contribuintes para capitalizar bancos públicos e não lhe sobra para acudir às necessidades do estado social que são deixadas para trás, e agora já nem chega para manter o Metro, o INEM e os hospitais em funcionamento, e que se vêem permanentemente aflitas e gastam grande parte das suas energias e do tempo de quem as mantém vivas à procura financiamento para as suas actividades sociais e humanitárias.
Não, o meu IRS consignado não vai para a Fundação CGD Culturgest, vai para o Banco Alimentar, como poderia ir para outras organizações não governamentais igualmente generosas, esforçadas e meritórias. Para os banqueiros pedintes mando, e convido todos a mandarem, manguitos.
Podemos portanto ficar descansados: Uma vez por ano teremos direito a saber quanto dinheiro foi transferido para as Ilhas Caimão, e as do Canal, e poderemos sonhar com esses lugares inacessíveis aonde os famosos e os poderosos se deslocam nos seus aviões privados, ou no mínimo nas suas viagens em primeira classe, para se encontrarem com outros plutocratas em festas babilónicas onde mulheres esculturais com menos roupa ainda que princípios se cruzam com jovens atléticos, igualmente proficientes no court de ténis e nos tálamos vagos momentaneamente de maridos.
Jornalistas agudos explicarão porém que a maior parte do dinheiro se destinou a transacções comerciais, sendo os paraísos fiscais locais onde os credores chineses, ou sauditas, ou de outras nacionalidades, exigem, decerto por razões suspeitas, ser pagos; e, para quem for além dos cabeçalhos, explicarão que na realidade os paraísos em questão são em geral lugares pouco aprazíveis e as empresas lá sedeadas meras caixas de correio.
Resta que o propósito da lei não é, como não era o do despacho anterior de Sérgio Vasques, uma das sinistras figuras que ocupou o lugar de secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, exercer qualquer espécie de fiscalização: dizer aos cidadãos todos os anos quanto dinheiro saiu do país para destinos onde os seus donos não são esbulhados demencialmente contribui zero para a fiscalização da evasão fiscal; mas ajuda muito à ideia de que os paraísos fiscais não deveriam sequer existir, como pensa o PCP e se esganiça a dizer o BE; e predispõe o público para a ideia de que o contribuinte é dono apenas do que a autoridade democrática entende que pode conservar do que é seu, sendo tudo o mais um roubo.
É isto que explica que pouco importa que os secretários de Estado deem aulas na Católica ou sejam até do CDS: todos acham que a medida do seu sucesso é o aumento do esbulho; que a riqueza cresce pelo efeito de a transferir para o Estado; que, a despeito das evidências, se todos pagarem o que "devem" todos pagarão menos; e que a diminuição dos direitos dos contribuintes é um mal necessário, em nome do bem maior que é o combate à evasão fiscal. Combate tão importante que já hoje se dá como pacificamente aceite que a inversão do ónus da prova, inadmissível em processo penal para o crime de furto, ou outro qualquer, é rotineira para o mesmo crime se praticado por qualquer funcionário por excesso de zelo, deficiente interpretação da lei ou enquadramento dos factos tributários.
Não é o mesmo crime, dirá por aí algum jurista, porque não foi praticado para benefício próprio, mas sim o da comunidade. E isto se aceita com naturalidade, sem perceber que os maiores crimes do século passado foram cometidos em nome de um bem maior. Ontem a igualdade material dos cidadãos ou a pureza racial, hoje a justiça fiscal. Um progresso, sem dúvida, porque ninguém morre, a não ser talvez de fome, porque as mesmas regras que permitem perseguir ricos, que se podem defender, não o permitem aos pobres, porque a defesa é cara.
Daí que a autoridade fiscal possa impunemente, se estiver para aí virada, enviar cartas a exigir o pagamento de impostos já pagos a milhares de contribuintes, e estes se vejam coagidos a pagar de novo se não tiverem o papelinho que prove que pagaram; ou que existam duas fiscalidades para empresas, as que têm e as que não podem ter aconselhamento fiscal.
Abençoado mundo novo: perseguem-se os ricos porque o são, com a legislação que os pobres sancionaram por inveja e ressentimento; e os segundos com os mesmos instrumentos porque o Estado é insaciável ainda que não imprudente ao ponto de atacar todos, ou sequer a maioria, da mesma forma, nem ao mesmo tempo. Para isso usa outras formas, que são as taxas e os impostos indirectos embutidos nos preços.
A Assembleia aprovou e Marcelo promulgou sem reservas e sem surpresa: seria decerto muito pouco afectuoso da parte dele ter uma opinião diferente da da maioria da opinião pública, que lidera em estima na exacta medida em que a serve com abjecto seguidismo; daqui a um ano haverá uma listinha no Expresso, que terá tanta utilidade como a que tiveram os Panama papers; e o inquérito rigoroso que se ia fazer aos 20 maraus que tiveram o arrojo de pôr dinheiro ao fresco sem serem fiscalizados entre 2011 e 2014 terá o mesmo destino que tiveram todos os outros inquéritos rigorosos que o Estado manda fazer a si próprio. De resto, o papel do incidente já está cumprido: confortou as pessoas na ideia de que os paraísos fiscais são cavernas de Ali-Babá, quem para lá transfere dinheiro ladrões, e quem supervisiona o processo corruptos.
Provas não são precisas porque a acusação está feita. E, no caso de Paulo Núncio, com uma certa justiça poética: o homem é sério mas burro. Só um burro prossegue políticas socialistas com a esperança de que os seus, que não são socialistas, o aprovem porque são seus, e os socialistas porque são socialistas; só um patarata suspende a publicação de umas listas inócuas na prática, salvo na sua carga ideológica, que provavelmente não percebe, sob pretexto de não alertar os infractores; e só um ignorante julga que o aumento da receita fiscal pela via da diminuição dos direitos dos contribuintes (e pela transformação do cidadão comum em fiscal com o engodo de prémios sorteados) seria, mesmo no contexto da troica, alguma obra que ajudasse seriamente, a prazo, na recuperação do país.
A investigadora Raquel Varela, uma das mais ilustres pastoras de almas no Tempo Novo depois de ter feito parte da vanguarda ideológica dos indignados e dos okupas que se rebelaram nos anos da troika contra o neoliberalismo e o capitalismo desregulado, decidiu agregar numa única tese quase todo o conhecimento que existe, explicando de uma só penada o desemprego estrutural e o assistencialismo familiar e Estatal, o lumpen-proletariado, Trump, a Cornucópia e a juventude, dando-lhe o sugestivo título de Trump em Torremolinos.
Não dominando a ciência da Tudologia, não ouso desafiar a ligação encontrada pela investigadora entre todas estas coisas, e deixo a análise dos fundamentos teóricos e dos aspectos metodológicos que conduziram à formulação das conclusões da publicação aos que a dominam. Só tomo nota que a autora não deixa de fazer menção ao lumpen-proletariado, uma brilhante construção do socialismo para arrumar de vez com a dúvida que alguma contra-revolução ainda tinha sobre a adesão entusiástica do povo à revolução socialista e que alguns retrógrados ainda hoje persistem em ter, explicando que os que não aderem são lumpen-proletariado e, portanto, casos perdidos que não contam para a média daquilo que é o verdadeiro povo, e que hoje se aproxima mais dos pós-doutorados em ciências sociais do que dos operários e camponeses, soldados e marinheiros, e muito menos dos que não são sindicalizados, ou sindicalizados mas em sindicatos amarelos da UGT. O lumpen-proletariado é a água que se pode sacudir do capote revestido de Scotchgard para a revolução socialista seguir em frente com o povo a segui-la.
Mas percebo alguma coisa da ciência dos títulos, e o título Trump em Torremolinos é notável a todos os títulos.
Em três palavrinhas apenas remete Donald Trump para o domínio dos selvagenzinhos que exportamos regularmente nas férias da Páscoa para vandalizar hotéis do sul de Espanha. Tocada a campainha, as glândulas salivares entram em acção e os cães de Pavlov aliviam-se da ansiedade com a certeza de um petisco na iminência de chegar. E os leitores da investigadora Raquel Varela também. Assunto arrumado.
Mas um título tão brilhante, por eficaz a atingir os resultados pretendidos, merece ser investigado. O trabalho de campo da minha investigação cientifica recorreu ao método de contar o número de ocorrências da palavra "Trump" na tese através da ferramenta informática "Personalizar e controlar o Google Chrome -> Localizar... ", e revelou que a palavra aparece 3 vezes:
A análise revela que a tese tem um nível de polivalência notável. Podiam-se substituir as 3 ocorrências da palavra "Trump" por "Putin", ou "Assad", sem alterar em nada o seu sentido. Se se retirasse a palavra "ONU" da frase, qualquer lançador de bombas seria elegível para chegar ao título da tese. Deixando-se limitar pelo preciosismo, "Trump" não seria ele próprio elegível, uma vez que lançou bombas mas os corpos não foram enterrados pela ONU.
Mas isso não interessa.O verdadeiro conteúdo da tese está no título, e o título não precisa do texto para se fazer entender. Pelo menos pelo lumpen-intelectual que consome títulos da investigadora Raquel Varela à procura de campainhas que lhe diminuam a ansiedade da dúvida e a substituam pelo conforto da certeza que o Donald Trump é dos maus, e que eles, e ela, são dos bons.
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