Há uns meses tropecei numa entrevista de um tal Mamadou, assessor do Bloco de Esquerda, e dei-me ao trabalho de a comentar quase parágrafo a parágrafo. O homem é um choramingão que quer botar para render o seu palavreado de sociólogo à la Boaventura Sousa Santos, que estranhamente não cita. E acumula esta condição com a de racista preto, isto é, alguém que acha que a negritude justifica que o Estado (ou seja, os contribuintes, cuja esmagadora maioria é branca) se ocupe de criar legislação que proteja em especial a sua comunidade, para a compensar dos abusos de que foi vítima pelo colonialismo, a proteger dos reais ou imaginários que sofre agora, e a favorecer em relação a outros indivíduos em igualdade de circunstâncias mas que se dá o caso de não serem pretos ou ciganos. Ou seja, quer um tratamento negativamente discriminatório dos brancos. Sobre judeus, asiáticos e outras minorias não dizia nada, nem diz agora num artigo de opinião com que polui uma página do Público, um dos órgãos oficiosos da Geringonça.
O moço não é meigo, o que o torna simpático a meus olhos, e não se desse o caso de escrever em doutorês, e por isso às vezes não se entender o que diz, encará-lo-ia com mais tolerância. Trata José Manuel Fernandes, Helena Matos, Henrique Raposo e outros como "jornalistas-cronistas travestidos em ideólogos do quotidiano", e os historiadores João Pedro Marques e Rui Ramos como "tentando impor uma leitura higiénica do passado colonial racista para deslegitimar a possibilidade de o relacionar com as suas consequências no presente".
Estes e outros fazem uma "armada". E dela fazem parte, ó deuses, senadores da República como Pacheco Pereira e António Barreto.
Parece que também a propósito destes dois se pode dizer que "é abjecta a generalização segundo a qual, entre as comunidades negras e ciganas haveria sempre muita gente que, não só não cumpriria a lei, como representaria um custo social elevado para a sociedade. Só que ela impõe uma leitura do racismo como mera questão moral entre indivíduos e não uma questão profundamente política".
Boa, Mamadou. Que gosto que teria se te pudesse acompanhar quando afirmas que estes dois vultos fazem generalizações "abjectas". Mas não, meu querido: têm uma inclinação muito pronunciada para abundarem um em asneiras e o outro em banalidades; mas não dizem nada de abjecto, acontece-lhes acertarem, têm e merecem no espaço da opinião o lugar que nunca terás, e qualquer dos dois se diminuiria se se desse ao trabalho de rebater o que imaginas serem argumentos ponderosos, embora Pacheco o possa eventualmente fazer, com o medo pânico que têm as pessoas de esquerda de serem consideradas racistas.
"Quando José Pacheco Pereira diz que André Ventura tem razão quando acusa a comunidade cigana de 'viver de subsídios e acima da lei', quando Rui Ramos ou José Manuel Fernandes se insurgem contra o politicamente correcto e defendem que as declarações de Passos Coelho nada têm de xenófobas, quando João Pedro Marques se insurge contra a 'ditadura da memória', quando António Barreto diz que 'Portugal não é um país racista, mas há racistas', entre eles 'africanos e ciganos', o que está em causa é uma tentativa de deslegitimar a luta contra o racismo e a afirmação ideológica de que Portugal não é um país racista".
Portugal, a meu ver, não é um país racista; e, mesmo que o seja ou fosse, desde o momento que a legislação não estabeleça na ordem interna discriminações fundadas na raça ou pertença a qualquer grupo identificável por características culturais, religiosas ou outras, e desde que os serviços ou agentes do Estado ajam no cumprimento das suas obrigações sem discriminações baseadas naqueles critérios, dou-me por satisfeito.
Mamadou não dá, quer discriminações positivas a favor de negros e ciganos e a compressão do direito à livre expressão da opinião quando esta possa ser qualificada como racista ̶ é o que designa como "luta contra o racismo". Não é que o diga explicitamente, mas nem precisa: nada do que pensa ou diz passa de uma importação do palavreado de certa esquerda americana, onde a afirmative action aplicada à comunidade negra tem décadas e os riscos de perda de emprego por afirmações consideradas racistas são presentemente bem reais.
Talvez seja oportuno lembrar duas ou três coisas simples:
i) Racista é aquele que acredita que determinadas características físicas como a cor da pele ou o formato dos olhos indiciam por si alguma forma de superioridade ou inferioridade. Mas não é racismo achar que por uma multiplicidade de factores históricos, geográficos, circunstanciais, umas sociedades evoluíram mais do que outras na sua tecnologia, nas suas instituições e na sua cultura. A civilização romana era mais adiantada que a dos Hunos; a dos colonos europeus mais do que a de tribos canibais ou na Idade da Pedra: e os valores do Ocidente na configuração actual (igualdade dos cidadãos perante a lei e entre os sexos, respeito do direito de propriedade, liberdade de opinião, democracia, etc.) são superiores, por exemplo, aos de sociedades presas a teocracias medievais. O relativismo cultural não existe nem para a lógica nem para o senso; só existe para a historiografia de esquerda e para projectos totalitários acoitados em campus universitários e para partidos políticos que querem actualizar o marxismo;
ii) Ou se respeita o direito à livre expressão da opinião ou não. Se quisermos proibir afirmações de racistas, ou de comunistas, ou de negacionistas do holocausto, ou de quem ache que os americanos não foram à Lua, não só não desaparecem os crentes de tais teorias disparatadas como acumulam, se pertencerem a um grupo suficientemente numeroso, com a condição de mártires. Para não falar em quem decide, por exemplo, o que se entende por racismo. Mamadou acha que deve ser ele e os amigos dele. E acredita que, por ser preto, tem uma particular autoridade para navegar em tais águas moralistas. É por isso, aliás, que ataca Gabriel Mithá Ribeiro com particular virulência ("...os miseráveis préstimos de um colonizado mental, que, na sua jactância inflamada..."), a quem decerto só não chama traidor porque não se lembrou;
iii) Se eu fosse ou me considerasse racista (não sou, e sei-o porque a ideia de ter netas pretas ou chinesas não me é antipática) di-lo-ia, desassombradamente. E não reconheceria o direito a um Mamadou qualquer, nem muito menos a um comunista (que defende modelos de sociedade necessariamente bárbaros, e portanto inferiores) de me autorizar ou proibir de pensar e dizer fosse o que fosse. De resto, fiscais do pensamento e da palavra é o que mais há por aí, até na direita democrática, Deus lhes perdoe, e todos se distinguem por quererem proibir a expressão disto e daquilo, seja o racismo, seja o que classificam de blasfémia, seja a ideia de que os americanos não foram à Lua, seja qualquer outro disparate em que a credulidade de uns, a ignorância de outros, a fé de muitos, o medo dos outros, e a inveja de bastantes, sirvam para dar largas ao pequeno ditador que quase todos trazem dentro de si.
Deve estar mais ou menos por estes dias a fazer mais ou menos não sei quantos anos um dos episódios mais enigmáticos e emblemáticos do Processo Revolucionário em Curso, o PREC, a entrevista concedida pelo Álvaro Cunhal à jornalista italiana Oriana Fallaci.
[Antes de mais, cabe aqui agradecer ao blogue Porta da Loja, cujo trabalho de investigação recolheu o que há disponível para documentar esta importante entrevista, a cópia da versão integral que foi publicada na revista Paris Match de 28 de Junho de 1975, e sugerir a consulta directamente no blogue às imagens da entrevista, que se conseguem ampliar de modo a ficar perfeitamente legíveis, em Francês, o que para a rapaziada do meu tempo eram favas contadas mas agora é uma língua morta, mas é o melhor que consegui arranjar]
[Mais útil ainda, acabei de descobrir noutro blogue, o Curiosidades de Imprensa e Afins, a estrevista publicada em Português no Jornal do Caso República de 27 de Junho de 1975, de que sugiro a leitura no blogue, onde as cópias das páginas do jornal podem ser ampliadas para um tamanho de letra legível]
A entrevista foi muito importante e muito elucidativa mas, acima de tudo, muito surpreendente, porque, sendo certo que o Álvaro Cunhal foi, podemos dizer que com o António de Oliveira Salazar com alguma benevolência para este último, porque é muito mais duro sê-lo na oposição do que na situação, o político português mais profissionalizado e profissional do século XX, nesta entrevista ele afirmou com uma candura inédita na sua longuíssima carreira o que toda a gente sabia mas ele nunca tinha dito ao público nem podia dizer naquela altura: que estava cá para implantar a ditadura. Porque o fez? Não sei, eu nem sequer sou um intérprete especialmente informado da personalidade e da biografia do Álvaro Cunhal, mas posso especular que, perante uma mulher com uma personalidade forte e fascinante, não resistiu ao instinto do macho ibérico desafiado na sua coutada de se mostrar ainda mais forte e fascinante do que ela tentando impressioná-la através da gabarolice, apresentando-se como o Dono Disto Tudo que tinha estado muito perto de ser mas, naquela circunstância, estava a travar um combate de vida, se perdesse, ou morte, se ganhasse, para continuar a pretender ser. Felizmente para nós, e também para ele, perdeu e o combate acabou por ser de vida para nós, para ele, e para generalidade dos, mas infelizmente não todos, que o combateram. Porque, se o tivesse ganho, muita gente teria morrido mais cedo, e ele próprio não teria certamente chegado vivo à bonita idade a que chegou.
O que disse de importante o Álvaro Cunhal nesta exibição desenfreada de fanfarronice?
Ou seja, e isto continua a ser tão actual no século XXI como nos anos 70 do século XX, que a tolerância dos comunistas pela democracia liberal e pelas liberdades democráticas não passava de um estágio temporário, de um compasso de espera estratégico, no caminho para o socialismo, que as larga logo que deixem de lhe ser úteis (e tenha força para as largar).
Se ele se quis mostrar um galã à fascinante jornalista italiana, acabou por se mostar um facínora, e os poucos que ainda não tinham percebido com as sucessivas intentonas e inventonas, prisões e deportações, fechos de jornais e nacionalizações, que o Portugal do PREC estava nas mãos de bandidos altamente organizados que instrumentalizavam o poder militar e do qual só se conseguiria livrar, também, recorrendo à violência, perderam qualquer ilusão. E a partir daí, não necessariamente por causa de, mas provavelmente com alguma contribuição de, foi o Verão Quente, o só por cima do meu cadáver, as invasões e destruição de sedes do PCP por meios violentos como incêndios e bombas, as mocas de Rio Maior, na sociedade civil, ao mesmo tempo que os partidos democráticos faziam o seu trabalho de construção de equilíbrios no campo político, nomeadamente com os militares não-comunistas, diplomático, negociando apoios com as grandes democracias mundiais que já estavam dispostas a deixar este pequeno país marginal cair nas mãos do comunismo internacional, e popular, organizando manifestações maiores do que as dos comunistas que dominavam a rua.
O resultado deste processo conhecêmo-lo, e Portugal acabou mesmo por se transformar numa democracia do tipo das que existem na Europa, e a história chegou mesmo tornar irrelevante o qualificativo Ocidental quando toda a Europa se libertou das ditaduras comunistas que governavam a Oriental. Mas nunca chegámos a descobrir ao certo o que teria acontecido se os comunistas tivessem mantido o controlo do PREC e tivessem passado do degrau da democracia liberal para o da ditadura do proletariado. E ainda bem que não descobrimos.
O que diria Cunhal numa entrevista subsequente se tivesse ganho? Nunca soubemos, mas temos agora uma oportunidade de perceber. A Vanezuela está há muitos anos a atravessar um Processo Revolucionário em Curso que correu com alguma tranquilidade, o que não significa que não houvesse presos políticos, alguns assassinatos, censura e apropriação dos meios de produção e comunicação social pelo Estado, enquanto o dinheiro do petróleo o alimentou. Mas, como é sabido, o socialismo dura até se acabar o dinheiro dos outros, e com o petróleo mais barato e o controlo da economia pelo Estado a economia simplesmente ruiu, e com ela a sociedade. Mas não o sistema político socialista.
No meio deste processo de degradação do que antes era mantido pelo dinheiro do petróleo que deixou de chegar de fora, o regime venezuelano cometeu o mesmo erro que os sectores mais progressistas das forças armadas afectos aos comunistas tinham cometido em 1975: aceitou organizar eleições livres, ou tão livres quando possível num regime que mantém os opositores mais notáveis na cadeia (em 1975 era o MRPP que estava quase todo na cadeia e foi impedido de se candidatar) e controla toda a comunicação social. E o resultado foi o mesmo: as forças de direita ganharam as eleições com uma maioria esmagadora e conquistaram mais de dois terços dos lugares no parlamento, suficientes para, entre outras coisas, alterar a constituição e reconfigurar o regime, democratizando-o no sentido de o aproximar de uma das tais democracias que existem na Europa com liberdades democráticas e, como lhes chamava o Cunhal, no que parece um exercício de humor por toda a organização económica socialista se basear sempre em monopólios do Estado, monopólios.
Como é que o regime venezuelano resolveu este problema bicudo? Recorrendo a um truque jurídico genial. Os juízes do Supremo Tribunal, o Constitucional lá do sítio, que tinham sido nomeados pelo regime socialista e seriam gradualmente substituídos ao longo da legislatura, à medida que os seus mandatos fossem terminando, por novos juízes escolhidos pela nova maioria de direita [atenção, isto não significa que os juízes portugueses não sejam totalmente isentos e independentes do poder político e dos partidos, assunto que não me interessa desenvolver aqui], demitiram-se em bloco e foram substituídos, in-extremis, ainda pelo velho parlamento de esquerda imediatamente antes da tomada de posse do novo parlamento com maioria de direita, para mandatos com a duração da legislatura, desse modo blindando o supremo contra a entrada de juízes designados pela nova maioria que tinha acabado de ser eleita. Com o supremo completamente seguro em boas mãos, todo o poder legislativo do parlamento, que tinha legitimidade constitucional até para mudar o regime, foi esvaziado. E o regime, aprendendo com o erro de ter permitido realizar eleições mais ou menos livres, entrincheirou-se e radicalizou-se.
Como?
Tendo-se o PCP também entrincheirado e tendo feito durante o PREC mais ou menos tudo o que deve ser feito para assegurar a tomada do poder e que, noutras revoluções como a venezuelana, resultou, e tendo a oposição venezuelana também feito mais ou menos o mesmo que fez a oposição democrática portuguesa durante o PREC, não é fácil perceber porque é que a revolução bolivariana na Venezuela foi um sucesso que permitiu mesmo a eternização, que talvez se venha a revelar efémera mas até este dia é sólida, do poder pelos socialistas e a portuguesa foi um fracasso em que o poder acabou por desaguar nas mãos dos democratas?
Não tendo recebido a graça da Fé, o mais sobrenatural em que eu consigo acreditar é na mão invisível que nos faz chegar a comida ao prato apesar de o talhante só querer enriquecer à nossa custa, e sendo completamente incapaz de formular uma hipótese em que o divino possa ter tomado um papel determinante na derrota dos comunistas e na vitória da democracia na revolução portuguesa, só posso mesmo especular que elas se devem à resistência, incluindo armada e até terrorista, mas essencialmente da atitude de intolerância anti-comunista absoluta da maioria do povo português, às mocas de Rio Maior?
Se calhar foi, e se calhar podemos ter esperança de, se um dia outras formas de revolução socialista nos montarem um cerco, nem que seja por via da imposição pela força do politicamente correcto, elas voltarem a ser retiradas das estantes onde actualmente estão expostas como objectos decorativos para voltar a defender a, não há que ter receio nem hesitação a usar este termo, Liberdade.
E, quase a terminar, volto a lamentar que a Constituição da República Portuguesa, por um erro estúpido decorrente do medo em que se vivia na época em que foi redigida, tenha proibido no nº 4 do Artigo 46º, não todas as organizações que perfilham ideologias totalitárias, mas apenas a que perfilham a ideologia fascista, abrindo as portas da permissividade a todos os fascismos que têm outras designações, a começar pelo fascismo socialista.
E acabo com uma sugestão. Da próxima vez que os proprietários das mocas de Rio Maior as retirarem da estante para lhes limparem o pó e as voltarem a expôr, talvez valha a pena relembrarem uma das frases mais actuais da entrevista ao Álvaro Cunhal:
PS: e por falar nisso, os estatutos do BPI sempre se blindaram? A Altice sempre vai ser impedida de transferir trabalhadores? Just asking...
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