"Política de esquerda esta? Isto não é política de esquerda. Isto é tudo um putedo!", escreveu o Arnaldo Matos no seu editorial do Luta Popular Online A Classe Operária e o Momento Político Actual publicado no dia 11 de Outubro de 2015 quando se tornou evidente que a tentativa do António Costa, para sobreviver politicamente à derrota nas eleições em que tinha prometido ao seu partido ganhar por muitos, de formar um governo sustentado por todos os partidos de esquerda derrotados nas eleições mas que, somados, tinham mais deputados que a coligação que as tinha ganho, ia passar de última tábua de salvação do candidato derrotado a uma realização do socialismo.
E a opinião dele merece ser ouvida porque de esquerda percebe ele, e há muitas décadas, mesmo que possa estar ferida de alguma falta de objectividade vinda de quem formou um movimento para reorganizar o partido do proletariado cuja razão de existir, para atalhar razões, se fundamentou desde sempre na alegação de que o PCP não era comunista. PCP que, aliás, o MRPP sempre designou de social-fascista, mimo que o PCP lhe devolveu designando os seus militantes por radicais pequeno-burgueses de fachada socialista, e com juros quando conseguiu, primeiro, impedi-lo de concorrer às eleições para a Assembleia Constituinte de Abril de 1975, e depois encarcerar centenas de militantes no final de Maio do mesmo ano, tendo nessa altura a jovem democracia portuguesa conseguido acumular presos políticos em número que ultrapassava por muito o dos que a ditadura mantinha em Abril de 1974. De alguma forma dando razão à segunda parte do epíteto social-fascista.
E com este artigo o Arnaldo Matos lançou para a discussão pública a dúvida sobre se o governo que nessa altura estava em gestação iria mesmo ser um governo de esquerda, como toda a gente menos o MRPP assumia e parece continuar a assumir, ou um putedo, que os observadores mais atentos também reconheciam como uma hipótese com alguma probabilidade de se confirmar e que se tem vindo, efectivamente, a confirmar. Sendo que as categorias não são mutuamente exclusivas, porque pode-se exercer o putedo sendo-se de esquerda, apesar da superioridade moral inerente à esquerda, e pode-se ser de esquerda exercendo-se o putedo, havendo mesmo quem admita que quando se exerce o putedo há uma probabilidade muito elevada de também se ser de esquerda.
Não vou entrar numa discussão profunda sobre se o governo é de esquerda ou de direita, nem sobre o que distingue ser-se de esquerda de ser-se de direita, discussão longa, interminável até, e de que não sei o resultado final, pelo que seria incapaz de o decretar aqui.
Posso, no entanto, aflorar modestamente alguns aspectos dessa discussão sem grandes preocupações de rigor nem de abrangência exaustiva.
O governo, ou a maioria que o sustenta, tem inequivocamente dado a cara por um conjunto de causas que o senso comum, ou talvez o lugar comum, considera próprias e até propriedade da esquerda. Por exemplo, os direitos das minorias étnicas, mesmo que em tempo de campanha eleitoral não hesitem em chamar africanista a qualquer político de direita casado com uma mulher africana, ou rei-mago escurinho a quelquer africano que uma organização internacional nos mande para nos vigiar os desmandos financeiros, ou cigana a uma adversária interna do seu partido. E também os das minorias sexuais, mesmo que na festa do Avante os seguranças do partido dêem grandes cargas de porrada aos homossexuais que são apanhados a manifestar os seus afectos uns pelos outros em público, e em tempo de campanha não hesitem em chamar paneleiro a qualquer político de direita que não seja heterosexual. Estas excepções não fazem deles racistas ou homofóbicos, são apenas exercícios de fina ironia de quem, por definição, não é racista nem homofóbico. Vá lá, no limite dizem-no, não por pensarem, mas apenas por cairem na tentação de tentar agradar aos seus eleitores com uma visão mais tradicional destas causas fracturantes do que a das vanguardas de esquerda. Uma tentação em que é humano cair, até para aumentar a capacidade de captação de votos e, por essa via, reforçar as esquerdas.
Um governo de esquerda, portanto.
Também tem tomado posições claras numa série de causas que radicam na visão que se tem do Estado Social, e na escolha de qual das visões do Estado Social é mais própria da esquerda. Sendo que uma das visões possíveis é centrada no seu objectivo, o de garantir o acesso à educação e aos cuidados de saúde a todos, mesmo aos que não têm condições financeiras para os suportar, e a outra centrada no processo, ou seja, na preferência por os prestadores destes serviços deverem ser exclusivamente públicos, ou um misto de públicos e privados, ou exclusivamente privados.
Nesta última, o governo tem tido uma política inequivocamente de esquerda, ou seja, incorpora a visão que os sistemas de educação e de saúde do Estado Social devem ser exclusivament baseados em prestadores de serviços públicos, o que tem conduzido, por exemplo, à redução drástica do recurso a escolas privadas com contratos de associação, que permitem a frequência de escolas privadas a alunos da rede pública sem meios materiais para as frequentar e com custos para o Estado inferiores aos de abrir turmas em escolas públicas para os acolher, ou ao estrangulamento de prestadores de cuidados de saúde privados, por exemplo proibindo os estabelecimentos públicos de realizar determinados tratamentos, independentemente de o custo do tratamento ser suportado por dinheiro público ou por dinheiro privado.
Na primeira, as opções decorrentes da última, conjugadas com a importância de o governo aparecer ao eleitorado e às instâncias que nos dão a mão quando temos episódios de falência financeira como campeão do rigor financeiro, que tem motivado as célebres cativações, têm provocado estrangulamentos e ineficiências que colocam em causa o próprio acesso dos utentes aos serviços que o Estado Social lhes devia proporcionar, essencialmente nos serviços de saúde públicos que têm passado por situações caóticas por falta de meios para satisfazer a procura, e nas listas de espera intermináveis por consultas e cirurgias onde têm falecido à espera de tratamento milhares de utentes por ano. Ao privar, por causa das opções políticas de esquerda que tem tomado, os cidadãos de serviços e cuidados que o Estado Social lhes devia proporcionar, o governo não tem sido nada de esquerda, tem mesmo optado pelo caminho neoliberal de deixar o Estado Social rebentar pelas costuras e não acudir aos utentes, ao contrário do anterior que, ao procurar adequar o nível dos serviços prestados às possibilidades financeiras muito limitadas que tinha ao seu alcance, o salvou da ruptura por falência financeira e o impedu de entrar em colapso.
Um governo de esquerda, nalgumas perspectivas, mas da direita neoliberal a destruir o Estado Social, noutras.
Há ainda outro domínio em que, sem se encontrarem raízes ideológicas para as diferenciar, a direita e a esquerda têm tido práticas que de facto as diferenciam, o da responsabilidade financeira. A esquerda tem agido como se o dinheiro aparecesse vindo sabe-se lá de onde quando fizer falta, gastando o que consegue como se não houvesse amanhã, e a preocupação eleitoral de manter os eleitores deleitados é um estímulo formidável a gastar muito, e a direita tem agido como se o dinheiro pudesse de repente deixar de aparecer, preocupando-se sempre com a sustentabilidade financeira, mesmo correndo o risco de zangar os eleitores. Neste domínio, o ciclo actual de crescimento económico, e o crescimento da receita fiscal e a redução das prestações sociais que tem proporcionado, tem dificultado a avaliação rigorosa das consequências das políticas de esquerda do governo. Apesar do esforço meritório de alguns analistas, e não posso deixar de salientar o trabalho incansável do Joaquim Miranda Sarmento, tanto nos artigos de opinião que publica no Eco, como no trabalho de colaboração com o Forum para a Competitividade, que nos vão avisando para o facto de o governo andar a aumentar despesa pública estrutural, aquela que é difícil ou impossível reduzir no futuro como os salários do quadro da função pública, à custa de receita circunstancial, a que decorre da conjuntura de crescimento económico que o ciclo abrandará mais tarde ou mais cedo, caminho que conduz inapelavelmente ao regresso do Diabo quando o ciclo inverter, a receita cair, e a despesa não puder ser reduzida, das políticas actuais continua a resultar crescimento económico, deficit público controlado, aumento moderado da dívida nominal e redução da dívida em percentagem do PIB. Não são visíveis nesta fase do ciclo as consequências que resultarão, e com a certeza da aritmética, das políticas de laxismo financeiro tradicional da esquerda, e muito menos as do governo actual.
Nesta fase do ciclo as políticas são de esquerda mas os resultados de direita.
Não está mesmo a ser fácil distinguir se o governo é de esquerda, como toda a gente pensa, ou de putedo, como o Arnaldo Matos, e não só o Arnaldo Matos, pensa.
Felizmente o dilema pode ser resolvido com uma clarificação preciosa da senhora vice-governadora do Banco de Portugal, antes, entre outras coisas, eurodeputada e candidata à Câmara Municipal do Porto, Elisa Ferreira.
Disse ela então em Maio de 2009 numa arruada da campanha eleitoral para a Câmara Municipal do Porto a que se candidatou quando era eurodeputada, com a infinita leveza que só está ao alcance dos verdadeiros pobres de espírito, e "sempre com um sorriso no rosto ... mostra que é de fácil conversa, ao tocar em assuntos desde a troca de receitas de culinária, ao tricô e até a viagens", coisas extraordinárias, como:
Depois de parar para tomar fôlego podemos contextualizar a frase "o dinheiro é do Estado, é do PS", que pretendia esclarecer que a obra apresentada pelo presidente da câmara em exercício, naquela circunstância o Rui Rio, como sendo dele só era possível porque tinha sido financiada pelo governo, nessa altura do José Sócrates, pelo que devia ser o governo socialista e não o presidente da câmara social-democrata a recolher os louros eleitorais da sua realização. Este é o argumento que a candidata apresentou e que lhe servia naquele contexto de campanha eleitoral autárquica.
Mas também que, e é esta a parte realmente importante do discurso porque contém em oito singelas palavrinhas os fundamentos teóricos da gestão financeira dos governos socialistas de há muitos anos para cá, o dinheiro do Estado gerido pelo governo socialista era do PS. É o sumário de um novo ramo da ciência económica, que podemos designar por Finanças Públicas Socialistas, que vou evitar abreviar por FPS para não estimular interpretações maliciosas da sigla.
É a teoria que fundamenta que os impostos europeus não são pagos com o dinheiro dos cidadãos, como explicou recentemente o primeiro-ministro António Costa, porque são pagos com dinheiro do Estado, do PS portanto, que generosamente abre os cordões à (nossa, pensam erradamente os desconhecedores desta teoria, mas na realidade a sua própria) bolsa para a Europa manter a capacidade de subsidiar as economias dos estados-membro, entre as quais a portuguesa.
É a teoria que fundamenta que o resgate de um banco in-extremis nos últimos dias do ano de 2015, em que durante 11 meses Portugal foi governado pelo PSD e o CDS, tenha sido contabilizado no deficit, transformando-o em deficit excessivo e feito prolongar por mais um ano a submissão do país ao procedimento por deficits excessivos, mas o resgate de outro banco no ano todo de governo socialista de 2017 tenha sido contabilizado ao lado do deficit, porque é importante prestar contas do dinheiro dos contribuintes, como era o dinheiro do Estado em 2015, mas desnecessário prestá-las do dinheiro dos socialistas, como é o dinheiro do Estado em 2017. É um assunto entre eles e os seus camaradas de partido.
É a teoria que concede à sua autora mérito suficiente para ser vice-governadora do Bando de Portugal, e até para mais, e vamos esperar pelo término do mandato do governador para ver se o governo lhe faz justiça.
Apesar de, no plano teórico financeiro, a asserção "o dinheiro é do Estado, é do PS" estar solidamente testada, e por seu lado sustentar teoricamente a gestão financeira dos governos socialistas, infelizmente não passou, ou ainda não passou, para o plano legal, o que, a acontecer, poderia ter aliviado o então primeiro-ministro José Sócrates do embaraço de mais tarde vir a ser constituído arguido e depois acusado de vários crimes justamente relacionados com a utilização do dinheiro do Estado como se fosse do PS, ou mesmo dele próprio. Talvez alguma reforma da justiça tornada possível por algum acordo de regime o possa livrar do embaraço de vir a ser condenado e de ter que cumprir pena judicial, já que da pena mais liberalizada e informal da prisão preventiva ninguém o livra de ter cumprido? Oxalá venha a acontecer, porque utilizar em seu próprio proveito o dinheiro que, no fundo, é do partido, não viola a ética republicana, não se pode considerar imoral e não devia ser penalizado.
Mas, regressando à discussão inicial, isto é de esquerda ou de direita?
A resposta foi dada por Margaret Thatcher num discurso que fez em Outubro de 1983 no congresso do Partido Conservador.
Sendo a Margaret Thatcher inequivocamente de direita, e sendo claro que para ela o dinheiro do Estado é dos contribuintes, fica também claro que o PS, que considera que o dinheiro do Estado é seu, é de esquerda. E fica igualmente claro que toda a governação socialista que faz do dinheiro público seu é de esquerda, de uma esquerda que inspirada simbolicamente em Karl Marx, o que pode ser comprovado no facto de os militantes do partido se tratarem entre si por camaradas e de ser dirigido pelo secretário-geral e não pelo presidente, segue na prática a teoria económica enunciada por Elisa Ferreira: o Marxismo-Ferreirismo.
O governo socialista é, pois, de esquerda e, ao mesmo tempo, um putedo.
Por mim, podemos encerrar a discussão e passar esta conclusão para a acta.
Simpatizo com Rio. O homem é teimoso, despreza os jornalistas, está-se nas tintas para o futebol, não tem paciência para sensibilidades, embirra com magistrados e arrumadores de automóveis, é a favor de superavits, borrifa-se para os barões e diz ao que vem em linguagem chã.
A que vem ele então? Ao que se sabe, vem a favor da regionalização (agora crismada de descentralização), da reforma do Estado e da Justiça, da chupice de fundos europeus, e doutras matérias não especificadas em que sem um acordo dentro do Centrão as coisas emperram.
Temos a burra nas couves, porquanto:
A regionalização foi amplamente derrotada num referendo em 1998. Transferir competências para as regiões e os municípios, sem um novo referendo, é uma traição democrática, por muito que se ache que o que a Constituição diz na matéria, e um acordo de maioria qualificada entre partidos, é o suficiente para fazer de conta que o referendo não existiu. É provável que Rio, que é ideologicamente um básico (digo-o sem acinte), não se impressione excessivamente com este argumento, por achar que as formas contam pouco, e a realidade muito. Engano dele: a democracia vive de formas, e ignorá-las a benefício do que se considera um bem maior não pode senão, a prazo, dar maus resultados. Hoje acha-se que o resultado de um referendo pode ser ultrapassado por estar obsoleto; e amanhã um referendo sobre outra coisa qualquer será destratado pelo eleitorado por constatar que os partidos, quando lhes der jeito, o ignoram.
Acresce que o assunto de modo nenhum é pacífico. Rio acha que os autarcas, por estarem mais próximos das populações, administram melhor que a parasitagem lisboeta, e serão com mais facilidade fiscalizados. Eu acho que sem impostos locais a competição entre regiões e municípios se transformará rapidamente num campeonato de despesismo, e que o PS jamais concordará com competição fiscal entre municípios, quando nem sequer a aceita dentro da EU entre Estados.
Por outras palavras: o país suporta uma quantidade imensa de boys, e de serviços inúteis ou daninhos, em Lisboa; a regionalização que o PS, e a esquerda em geral, subscreverão, é a multiplicação de terreiros do Paço pelas regiões, e da gestão demagógica do homúnculo Medina, pelos municípios. Rio quer isto?
A Justiça precisa de ser reformada. Já precisa e tem vindo a ser reformada há décadas. Rio, aparentemente, quer rapidez, previsibilidade das decisões, e não se sabe bem o quê da magistratura do ministério público; o PS quer rapidez, decisões que não ofendam os valores do politicamente correcto que varre o mundo bem-pensante, e que a magistratura do ministério público respeite a inimputabilidade dos políticos em geral, e dos do PS em particular.
As sucessivas reformas da Justiça tiveram sempre, porque tinham que ter, a mão do PS, e não há um magistrado, um sindicalista (estas duas categorias, infelizmente, são acumuláveis), um político, um funcionário, um jornalista, um advogado, um comentador, um cidadão, que ache que a Justiça está melhor. Aparentemente, Rio confia que uma demente voluntariosa, ex-bastonária da Ordem dos Advogados, tem ideias para a reforma da Justiça que merecem consideração, e que da conjugação dessas ignotas ideias com as que podem brotar das coudelarias jurídicas do PS pode nascer uma reforma com pernas para andar. A sério?
Da reforma do Estado nem é bom falar. Que qualquer reforma, se se quiser ir pelo caminho da séria diminuição da dívida pública que Rio deseja, tem que meter bedelho na Educação, no Serviço Nacional de Saúde, nos serviços públicos inúteis ou daninhos, nos direitos adquiridos, no poder dos sindicatos, na revogação de legislação intrusiva da liberdade económica, e no despedimento de funcionários.
Rio parece não compreender que o Estado não se reforma porque o Estado é o PS, mesmo quando o PS não está, incompreensivelmente, no Poder; que o partido maioritário é o dos dependentes, directa ou indirectamente, do Estado; e que a geringonça criou uma realidade nova, que é esta: podemos sair do marasmo se e quando a chamada direita esmagar a geringonça; não podemos, se fizermos acordos com parte dela.
E quanto aos fundos europeus? Não parece difícil chegar a um consenso: os lugares de poder serão distribuídos entre PS e PSD; seja com novos impostos europeus, seja com outro processo qualquer, a Europa será espremida até onde der; é desta que os fundos retirarão Portugal da cauda da Europa, é desta que Portugal se aproximará do pelotão da frente, é desta que Portugal convergirá aceleradamente, e é desta que, como de costume, os fundos servirão para financiar investimento público não reprodutivo, formação profissional de gente que finge que ensina inutilidades a gente que finge que as aprende, e empresas que farão concorrência desleal às que ficaram a ver navios, e cujo destino nunca saberemos qual será porque todo o processo será inteiramente opaco.
No fundo, Rio apenas substituiu Passos porque este não adivinhou a retoma na Europa e no mundo, nem o crescimento explosivo do turismo, nem a falsificação dos orçamentos do Estado durante a sua execução, nem a benevolência das instituições europeias aflitas para inventar sucessos, nem uma senhora Merkel a lutar pela sobrevivência, e por isso descredibilizou-se prevendo a chegada de um diabo que não veio.
Passos suicidou-se temporariamente por causa do seu engano insustentável, e com o suicídio quis preservar o PSD e a direita. O papel de Rio deveria ser fingir que é muito diferente, sendo no essencial igual.
Rio saberá disto? Se sim, o estado de graça com o PS durará pouco; se não, é um dirigente a prazo.
Vieira da Silva é um prestigiado político reconhecido como especialista em assuntos de segurança social, justa fama adquirida no tempo em que era ministro do Trabalho no primeiro governo de José Sócrates, de saudosa memória. No segundo governo do mesmo estadista foi ministro da Inovação e Desenvolvimento e, após um intervalo de quatro anos em que desperdiçou os seus talentos no Parlamento, como deputado, na sequência de um mal-entendido com os credores que provocou a quase falência do país e o exílio interno do PS, regressou à pasta que lhe pertence por direito, onde se ocupa novamente de garantir as pensões dos actuais e futuros reformados.
Isto é maneira de dizer. Que na verdade havendo vários modos de garantir a sustentabilidade da segurança social não há nenhum que faça ganhar votos. E como Vieira da Silva é um dos principais aguadeiros para a conservação e engrandecimento dos votos no PS e a ideia de estadear na oposição lhe parece contranatura, inventou o engenhoso processo de anunciar a salvação da segurança social, de cinco em cinco anos, para os próximos trinta, e ainda distribuir uns aumentos no momento certo, e na quantidade mínima, para contentar o eleitorado.
O sistema tem funcionado com geral satisfação, salvo o ocasional resmungo de um ou outro jovem com algumas luzes de aritmética e inexplicavelmente preocupado com um futuro que, como é sabido, a Deus pertence.
Infelizmente, há um bancozeco, o Montepio, que está a precisar inconvenientemente de ser salvo, e isto quando é público que o governo corrente resolveu os problemas da banca, sector que hoje respira saúde, salvo pelo detalhe dos resultados magríssimos e das carteiras de crédito duvidosas. A própria Caixa Geral de Depósitos está em vias de se tornar rendível pelo expediente imaginativo de assaltar as contas dos clientes enquanto a Autoridade Tributária, e os restantes serviços do Estado, se certificam que é na prática impossível guardar as poupanças no colchão.
Entra aqui Vieira, que superintende na Santa Casa, um organismo lisboeta que detém o monopólio legalmente imposto de vários jogos em todo o país, e que por isso tem uma enorme abundância de receitas e reservas. Compreende-se: as pessoas jogam, em tempo de crise, porque querem deixar de ser pobres; em tempos bons, porque querem ser ricas; e sempre porque têm muito amor a Lisboa.
O cofre está lá e, na opinião do ministro, o investimento em património imobiliário e obras de arte não é de natureza muito diferente da de outros investimentos, nomeadamente na área financeira, que aliás a Santa Casa já pratica.
Bem visto. O banco abicha os cem ou duzentos milhões, sobram mais dois lugares gordamente pagos para boys do PS e as contas públicas não são afectadas. A Santa Casa não pertence a ninguém e, por conseguinte, é nossa, tal como a Caixa, razão pela qual se vier a ser necessário mais dinheiro aparecerá.
A história vem contada aqui e, como é costume com a banca, é uma grande embrulhada. Mas não precisamos de nos inteirar dos detalhes, sabemos como acabará - podemos confiar em Vieira.
No último domingo a revista do Expresso trazia um extenso ensaio de Henrique Raposo, informando que “o autor está a preparar uma biografia política e intelectual de Vasco Pulido Valente”. O ensaio era, portanto, uma antevisão das linhas gerais de interpretação da vida e obra a que a biografia vai obedecer.
Estranhei. Porque VPV ainda não acabou, que se saiba, a carreira e a vida, e, não sendo deslocada a tentativa de o biografar, ficaria certamente enriquecida se tivéssemos tido direito a uma interpretação autêntica, isto é, se o objecto do trabalho tivesse sido inquirido sobre o que de si pensa, mormente naqueles passos que lhe definem o carácter, no seu envolvimento directo na acção política nas décadas a seguir ao 25 de Abril, no que acrescentou à historiografia nacional, e na importância que atribui à influência que terá exercido nos actores principais da nossa vida política e em pelo menos duas gerações de leitores de jornais.
Não há qualquer referência a uma tentativa de entrevista, que portanto presumo não tenha existido. Ter o objecto de estudo vivo e não o aproveitar é a meu ver um desperdício. E do que conheço de VPV acho pouco provável que se dê ao trabalho de vir a terreiro inteirar a mole dos seus admiradores do seu ponto de vista, dizendo e provando com a sua verve corrosiva e inimitável que Henrique Raposo tresleu, exagerou, omitiu, e sobretudo não percebeu.
Num certo sentido, ainda bem que não haverá qualquer reacção; que, se VPV voltar a escrever, os seus leitores querem uns, e temem outros, sobretudo ouvi-lo sobre a originalidade da geringonça (crisma dele, aliás, que Paulo Portas divulgou), o que vê de paralelo com outras alianças espúrias do nosso passado, o que há de ilusório no actual clima de optimismo acéfalo, e o retrato ácido da gente que nos pastoreia.
Vamos ao texto:
Henrique Raposo começa por fazer um retrato impressionista do Portugal salazarista em que o biografado nasceu. Pessoalmente, poria algum vinho no vinagre da descrição, que me parece demasiado tributário de uma experiência de vida alentejana que suponho enferma de algum ressentimento, mas estou certo não confere necessariamente com a contemporânea de outras regiões. Este pano de fundo, seja ou não rigoroso, serve para concluir que “criado nesta gaiola dourada, Vasco nunca se demarcaria da patine snobe e cínica em relação a Portugal. Não era por acaso que “os indígenas” era a sua expressão de eleição para descrever os portugueses”.
Snobismo é uma atitude de superioridade afectada, e nunca VPV se comportou, ou escreveu, com a pretensão de ser um português típico fosse em que sentido fosse, como nunca se distinguiu por poupar nas suas objurgatórias alguma classe social ou personalidade em particular. Preenche portanto a primeira condição da definição que escolhi; mas não a segunda. Porque a superioridade, por ser natural (e advinda não, como crê Raposo, da origem social mas de uma vasta cultura adquirida com esforço) para não ser evidente precisava de ser hipócrita. Quanto ao epíteto de “indígenas”, cujo uso recorrente tenho visto ser-lhe assacado como prova de uma irrefragável arrogância, se não desprezo, ofereço a minha interpretação: há uma tradição portuguesa de patrioteirismo, que se traduz na permanente manifestação de crenças sobre a nossa quase sempre imaginária superioridade, que quem quer que detenha algum púlpito da opinião ou da influência pública impinge ao ouvinte. Convém zurzir o lombo dos portugueses lembrando as nossas insuficiências, para as corrigir; e de pouco adianta passar a mão pelo pêlo do nosso optimismo infundado, porque disso há, e sempre houve, muito. Chamar aos portugueses indígenas é isto: não estou aqui para vos lisonjear os preconceitos nem para vos afagar o amor-próprio.
Prossegue Raposo: “Vasco nunca se confrontou a fundo com o trauma clássico desta geração: a descoberta indignada da pobreza e o voraz sentimento de culpa que se segue, raiz da mente revolucionária”.
Ignoro se este confronto teve ou não lugar, o próprio é que saberia dizer. Mas há que dar graças por não se ter transformado em mais um comunista, como sucedeu à maioria dos intelectuais da sua geração. Porque em 1975 não estivemos demasiado longe de inscrever no rol das nossas desgraças colectivas a já então obsoleta evolução para uma sociedade comunista, e de um intelectual de peso a remar para essas águas é que não precisávamos. A interpretação segundo a qual esta recusa em aderir aos ares do tempo se filiava numa origem de classe colide com o facto, que o ensaio relata, de “os pais serem comunistas”, donde resulta que a explicação porventura mais justa é a de aceitar que VPV já então tinha considerável indiferença às modas de pensamento dos seus pares, e a particular lucidez que à maior parte deles escasseava.
“Em segundo lugar, o desejo de fugir à guerra do ultramar. António Barreto e Medeiros Ferreira, por exemplo, exilaram-se para escapar à guerra. A solução de Vasco foi diferente: a cunha, um favor em forma de atestado médico que surgiu de forma natural e sem qualquer pedido expresso por parte da família.
A lógica snobe da sociedade funcionou”.
Não sei nada sobre as origens sociais de Medeiros Ferreira ou António Barreto, não conheci um nem conheço o outro, e portanto não estou em condições de afirmar que, se tivessem tido a mesma oportunidade, escolheriam ainda assim o exílio. Igualmente desconheço como funcionavam as coisas na upper class lisboeta. Sei porém que, na minha região, a influência social contava para quase nada; corrupção e moeda sonante é que eram o livre passe, para quem pudesse. Sem querer fazer a injúria a Henrique Raposo de pôr a história, cuja fonte imagino venha a aparecer na biografia, em dúvida, confesso-me surpreendido.
Prosseguindo: “Nestes anos 60 e 70, V.P.V. foi assim o nosso Orwell ou Camus, ou seja, foi aquele intelectual que tentou quase sozinho restabelecer a ligação entre a esquerda e a liberdade, entre a esquerda e um módico de tolerância e de honestidade. Não é possível sublinhar em demasia esta coragem de V.P.V., porque também não é possível sublinhar em demasia a esmagadora hegemonia que a vulgata marxista tinha sobre as cabeças desta geração”.
Este parágrafo inicia uma digressão, digamos assim, substantiva pelo papel de VPV na nossa história contemporânea. E se fosse este o fecho do ensaio bem poderíamos dizer para os nossos botões: ah, o grande homem tem defeitos, que novidade.
Porém, a digressão é bruscamente interrompida assim: “Contudo, a luta contra o neorrealismo também lhe deixou um vício intelectual que está ligado ao meio social daquela Lisboa minúscula e oitocentista: o snobismo”. E: “Ao falar de Sttau Monteiro, V.P.V. falou de si mesmo. Até se pode dizer que este é o seu epitáfio, o resumo da sua persona. Está ali tudo. Está ali a recusa dos mitos da esquerda marxista — facto que acabou por defini-lo enquanto rebelde da esquerda durante décadas e décadas. Está ali a figura de um homem antissalazarista com raízes na esquerda, sem dúvida, mas que tinha uma pose snobe, nunca escondendo uma certa repulsa pelo povo e pelo igualitarismo democrático; uma espécie de Gore Vidal das Avenidas Novas…”
Mesmo que esta análise tivesse qualquer sombra de consistência, seria incongruente com a descrição que o próprio Raposo faz da importância intelectual de VPV porque considera como epitáfio características de feitio e comportamento que são naturalmente adjectivas. Mesmo aqui, porém, e dando de barato a repulsa, há uma confusão de planos: não há qualquer contradição entre a defesa do regime democrático enquanto sistema que reconhece o consentimento dos governados, expresso periodicamente num processo aberto de liberdades garantidas, como sendo a principal fonte do exercício do poder, e a constatação de que a maioria não tem gosto, nem discernimento, nem formação, que imponham que se lhes siga os ditames. Se não fosse assim, aliás, ver-nos-íamos obrigados a preferir o último sucesso no hit-parade dos drogados da moda ao Requiem de Mozart; a pendurar religiosamente na parede uma litografia do menino da lágrima; e a conciliar o sono lendo a última obra-prima de um qualquer contemporâneo albardado de prémios em vez dos clássicos.
Abstenho-me de comentar com detalhe o resto do ensaio porque duvido que alguém tenha a paciência de me seguir até ao fim. Mas por toda a parte se nota a mesma mistura de observações pertinentes (“V.P.V. ficou sempre ao lado daquela desconfiança liberal que parte do pressuposto de que o Leviatã não é pessoa de bem até prova em contrário”) com picardias escusadas (“Glória” é um pastiche queirosiano”, como se Eça alguma vez se tivesse dedicado ao género biográfico-histórico).
Todavia, o modo como o cavaquismo e o Independente são retratados merece ainda atenção porque aí se retomam as teses do snobismo e se descreve a tónica anti-cavaquista do jornal e as diatribes de VPV como “inaceitável desprezo pelo “homem de Boliqueime”.
Isto é extraordinário: a Henrique Raposo não ocorre que Cavaco Silva representasse, como de facto representou, uma oportunidade perdida para a modernização do país, que via como uma massa informe a moldar a golpes de fundos europeus e voluntarismos dos seus colegas economistas (nem todos – todas as semanas tanto os esquecidos Leonardo Ferraz de Carvalho como Alfredo de Sousa se entretinham a desmontar o edifício das ilusões cavaquistas), sem nenhuma consideração pela história do país e pela realidade. E que o ridículo a que todas as semanas eram expostas as personagens gradas daquela época, a começar por Cavaco, não decorria das suas meias brancas nem do estilo canhestro: este era o pretexto para salientar o abismo saloio entre a promessa (desta é que vai ser, Portugal está no pelotão da frente, como salientava Cavaco no seu português de workshop foleiro que imaginava inspirado) e a realidade lúcida do enterro do PREC, alguma modernização da sociedade, e um módico de sanidade das contas – e já era muito.
Passo em claro a alegação de que os queirosianos, qualificação que o próprio VPV, suponho, não enjeita, se condenam e nos condenam à inevitabilidade do nosso atraso; e não digo nada, porque teria que dizer muito, sobre a alegação de que não podemos aprender com Eça nada que preste sobre o séc. XIX português, e sobre o carácter actual de alguns tipos que criou.
Nas palavras de Raposo: “Claro que isto impedia a criação de um discurso marcado pela esperança e pela redenção colectiva através do sucesso e da melhoria das condições de vida. Era e continua a ser uma narrativa que deixa o país num vórtice perpétuo, é como se Portugal fosse o James Belushi de “Groundhog Day”, um país preso no mesmo dia medíocre que se repete todos os dias, um Purgatório sem saída, um Purgatório onde a escadaria até ao Paraíso é uma impossibilidade”.
Por outras palavras:
Não digamos nunca, como VPV sempre disse quando ouvia cantar as sereias do optimismo acéfalo, “sei que não vou por aí”. Não sejamos negativos, nem hipercríticos, e de cada vez que nos acenarem com o milagre da convergência tenhamos fé.
Agora mais que nunca, que a maior dívida da nossa história, as grandes empresas que desapareceram, os bancos que já não são portugueses, a administração pública pletórica, a dependência abjecta de uma EU periclitante, e um eleitorado que não cessa de pedir mais ao Estado, isto é, a sociedade que temos ao cabo das últimas décadas, são o cimento que haverá de garantir o nosso renascimento, se não tivermos a desdita de ter outro VPV com a banca montada de derrotista.
Eu sou do tempo em que os militares barbudos que andavam pelo país a alfabetizar as populações ensinando-lhes os princípios básicos do socialismo não punham os pés no Alto Minho. Com razão ou sem razão, os minhotos partiam do princípio que a finalidade dos comunistas era expropriar-lhes as terras. Provavelmente os governantes da época nunca o terão chegado a proclamar preto no branco, nem sequer o truculento Vasco Gonçalves, mas o facto de terem deixado os comunistas ocupar e expropriar os grandes latifúndios do Alentejo, e não só do Alentejo, não constituía uma prova sólida em contrário da hipótese. Na dúvida os minhotos optavam por uma prudente atitude de eles que venham, mas só entram por cima do meu cadáver, destruiram com violência algumas sedes do PCP, racharam algumas cabeças, e a mensagem foi percebida e nem os soldados barbudos nem os comunistas lá apareceram a fazer ocupações. Nem faziam falta, que a sociedade civil minhota não precisava deles para nada.
Mas isto era no tempo e que eu tinha 18 anos, e o mapa de resultados das eleições, entre as de 25 de Abril de 1975 para a Assembleia Constituinte e as Autárquicas de 1 de Outubro de 2017, nomeadamente no Minho, evoluiu e ganhou tons de rosa onde não os tinha.
Evoluiu o mapa, e evoluiram as mentalidades.
Em 2018 o primeiro ministro socialista diz coisas sobre a propriedade privada como "Os municípios têm todo o poder para entrar nas propriedades privadas e fazerem o cus [os leitores mais atentos à pureza ortográfica que me perdoem mas, aderindo parcialmente, se não ao Acordo Ortográfico, pelo menos aos seus princípios de ortografia segue pronúncia, é assim que se escreve] proprietários não fizeram. E mais. Têm o direito de tomar posse daquelas terras e de se cobrarem, seja pela venda do material lenhoso, seja pela exploração daquelas terras, das despesas que tiverem por conta dos proprietários que não fizeram o que têm que fazer até ao próximo dia 15 de Março.", que não me lembro de alguma vez terem sido ditas por um primeiro-ministro no tempo do PREC, e no tempo do PREC teriam sido mais do que suficientes para os minhotos racharem cabeças e rebentarem com sedes, se fossem ditas por comunistas mais voluntariosos no local, ou, quem sabe? organizarem uma invasão militar de Lisboa, se fossem ditas pelo primeiro-minstro.
Traduzindo, as palavras do primeiro-ministro têm sempre que ser traduzidas para Português para serem devidamente interpretadas, os proprietários têm até 15 de Março para limparem de matos os terrenos em redor das casas e em redor dos agregados habitacionais, quer os terrenos lhes proporcionem rendimentos para pagar a limpeza, quer não, quer os proprietários tenham dinheiro para a fazer, quer não, e se não o fizerem as autarquias têm legitimidade, e um encorajamento do primeiro-ministro, para tomar posse dos terrenos privados para fazerem elas a limpeza e não os devolverem até extrairem deles rendimentos que paguem o custo da limpeza, que pode ser no dia de São Nunca.
Ou seja, exactamente aquilo porque os minhotos no tempo do PREC estavam dispostos a defender a sua propriedade, se necessário recorrendo à força das armas. Vamos a caminho do socialismo.
E os minhotos?
Os minhotos estão mansos. Tenho muita pena.
Podia vir aqui opinar sobre a recomendação ontem divulgada do cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, aos católicos recasados de viverem em continência, e especular sobre quantos se terão conformado a obedecer a esta recomendação que nem anacrónica chega a ser por simplesmente anti-natural, mas a entrevista ao padre Feytor Pinto, sacerdote igualmente respeitável, ainda antes do cair do dia a autorizar-lhes a fornicação desfez as condições para se fazer um teste à obediência à autoridade deste grupo de católicos, e vou opinar sobre a odebiência à autoridade noutros meios.
Eu, tinha 17 anos acabados de fazer quando aconteceu o 25 de Abril de 1974, cresci num mundo onde o conformismo e a obediência à autoridade eram valores da direita, e, com a informação disponível, o inconformismo e o desafio à autoridade da esquerda. Poucas semanas de revolução foram suficientes para perceber que a última parte estava redondamente errada, mesmo sem atender aos casos extremos e patológicos de autoridade que já tinha havido, incluindo genocídios, e continuava a haver mas eu ainda não conhecia, e os ainda mais extremos que ocorreram depois, incluindo genocídios. Pelo que é um local bom para se procurarem casos ilustrativos da autoridade e da obediência.
Um dos episódios mais ricos para ilustrar o conformismo e a obediência genéticos da esquerda foi a substituição, a 31 de Agosto de 2013, da deputada Ana Drago, essa mesma que no parlamento tinha gestos de aparente inconformismo, como dar palmadas na mesa quando não estava de acordo com o orador, pela então assessora do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda e co-autora com o professor Francisco Louçã de livros sobre a necessidade de repudiar a dívida, Mariana Mortágua.
O Estatuto do Deputado determina que quando um deputado eleito renuncia é substituído pelo primeiro candidato não eleito da mesma lista no círculo que o elegeu. Em caso de impedimento temporário deste, e apenas enquanto durar o impedimento, o lugar é ocupado pelo candidato seguinte, e por aí adiante, até esgotar a lista de candidatos.
Em 2011, o BE tinha conseguido eleger três deputados no círculo de Lisboa. Quando Francisco Louçã renunciou, foi substituído pela 4º candidata, Helena Pinto, como determina o estatuto.
Já quando a deputada Ana Drago renunciou ao seu mandato, a primeira candidata não eleita da lista de candidatos eleita pelo BE no círculo de Lisboa, a 5ª da lista, Rita Maria Oliveira Calvário, engenheira agrónoma, 33, declarou um impedimento temporário para assumir o cargo, que foi aceite pela direcção do grupo parlamentar, determinando a subida do candidato seguinte, o 6º, Francisco Alves da Silva Ramos, escriturário, 55. Que também declarou um impedimento temporário. Tal como o 7º, Bruno Reinhold de Moraes Cabral, cineasta, 30, a 8ª, Beatriz Gebalina Pereira Gomes, professora, 40, a 9ª, Heloísa Maria Pereira Perista, socióloga, 48, o 10º, André Aurélio Marona Beja, enfermeiro, 33, a 11ª, Maria Deolinda Marques Dias Martin, 54, a 12ª, Maria José Vitorino Gonçalves, professora bibliotecária, 55, e o 13º, José Manuel Marques Casimiro, rectificador, 53. Até chegar à 14ª candidata, Mariana Rodrigues Mortágua, economista, 24 (em 2011, 27 na altura da ocorrência), a primeira da lista que aceitou o fardo de servir a Nação como deputada. Ou deu àquela lista de candidatos uma coisa má e contagiosa e tiveram todos impedimentos ao mesmo tempo, ou montaram uma grande aldrabice para contornar a lista votada pelos eleitores e eleger antes o candidato escolhido pela direcção do partido. Mas pronto, a colaboradora do Francisco Louçã lá trepou pela lista acima até chegar a deputada, como tinha sido determinado pela direcção coordenação do partido e foi respeitosamente obedecido pelos nove deputados eleitos conformistas que renunciaram ao lugar de deputado ainda antes de chegar a tomar posse.
O esquema da fraude eleitoral em pirâmide é mais simples de explicar e de fazer do que o esquema da fraude fiscal em pirâmide. E tem outras qualidades. Não é criminalizado. Não desencadeia a indignação dos pastores das redes sociais, e muito menos, a dos seus fiéis seguidores. E permite dar a volta ao voto do povo e promover os amigos. E, a melhor das suas qualidades, não exige mais do que uma equipa conformista e disciplinada pronta a deturpar o resultado das eleições e a sacrificar a possibilidade de tomar posse como deputada eleita para obedecer às ordens da autoridade partidária.
Mas, por mais que os bloquistas se esforcem por, debaixo de uma capa pública de inconformismo, dar provas de obediência cega à autoridade dos chefes coordenadores, está para nascer quem ultrapasse o Partido Comunista Português em obediência cega à autoridade.
E na Assembleia Municipal do Porto desta semana a CDU acabou de bater o recorde nacional de substituição de deputados municipais ao fazer ascender o 30º membro da lista de candidatos eleita ao grupo de três deputados municipais que têm lugar na Assembleia Municipal, através, não de nove, mas de vinte e sete substituições.
Por mais que o BE se esforce, e o BE pode estar na eminência de ocupar responsabilidades governativas no próximo ano se o António Costa não conseguir nas eleições uma maioria absoluta e não se interessar pelo apoio do PSD para sustentar uma solução governativa, tem muito que aprender no domínio da disciplina e da obediência com o PCP, que exibiu nesta substituição o triplo do conformismo que o BE tinha exibido na outra.
E a direita? A direita que em tempos assumia o mote Deus, Pátria, Autoridade?
Em obediencia à autoridade a direita anda pelas ruas da amargura. O melhor que se pode arranjar por estes dias é o Pacheco Pereira a denunciar e lamentar "o sector que emergiu à volta de Passos e Relvas e depois ganhou outros mentores, que se comporta como dono do aparelho, e que fará tudo para não o perder" que em vez de "fazer críticas ou discutir orientações" pretende "organizar grupos e frações para manter o poder interno". Fracote, nem parece coisa do militante comunista (no sentido estrito de militante e lato de comunista, que não meramente o de obediência à URSS) que mesmo com o 25 de Abril de 1974 não saiu da clandestinidade porque não estava seguro de ter sido mais do que uma revolução burguesa, e só saiu da clandestinidade depois do 11 de Março de 1975, quando finalmente sentiu a tranquilidade de viver em democracia popular liderada inequivocamente pelos comunistas.
A direita, em matéria de Autoridade e Obediência, tem tudo para aprender. Se quiser ser igual à esquerda.
Pedro Correia, pessoa que estimo por muitas e boas razões, insurge-se aqui contra a seguinte disposição do Estatuto dos Magistrados Judiciais (nº 1 do art.º 16º):
Os magistrados judiciais não podem ser presos ou detidos antes de ser proferido despacho que designe dia para julgamento relativamente a acusação contra si deduzida, salvo em flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a três anos.
E escreve: “Esta norma é obsoleta, colide com o princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei e já devia ter sido revogada. Mas graças a ela dois desembargadores, entretanto constituídos arguidos evitaram a detenção e continuaram hoje a desenvolver a sua actividade normal, ao contrário do que sucedeu aos restantes indiciados na Operação Lex”.
Esta argumentação é ligeira, mas recolhe surpreendente unanimidade: no mesmo post cita-se Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça, e um deputado, ambos abundando no mesmo sentido. Nas redes sociais o sentimento (nas redes sente-se muito e pensa-se pouco) é também esse: quem é que eles se julgam, os juízes, para se eximirem a malhar com os ossos na cadeia como se fossem mais que os outros?
Sucede que os juízes não são a única categoria de cidadãos que goza de privilégios em material criminal – também os têm, por exemplo, o presidente da República e os deputados. E esses privilégios não apenas não são uma originalidade portuguesa como são vulgares em sociedades democráticas e Estados de Direito. Deverá portanto haver boas razões para a existência de derrogações ao princípio geral de igualdade dos cidadãos perante a lei.
Os juízes, como se sabe, são irresponsáveis e independentes – julgam segundo a lei e a sua consciência as pendências que lhes cabem em sorte, que não podem recusar, e das suas decisões não cabe recurso para a opinião pública, nem para o Facebook, nem para o senhor ministro da Justiça, nem sequer para o senhor presidente da República, menos ainda a ONU, por muito que as decisões ofendam algum valor que o comentariado ache digno de particular protecção, como sucedeu ainda recentemente num caso de violência doméstica, mas para outras instâncias também integradas exclusivamente por juízes.
Não é difícil perceber que para ser independente um juiz não deve ter medo das consequências para si das suas decisões e que por isso não deve hesitar em afrontar os poderes do dia, sejam os governantes, os magistrados do ministério público, as polícias, os comentadores com influência na opinião, e todos os outros poderes de facto que pululam por aí, quando entenda que no caso concreto a lei é mais correctamente aplicada se de um modo que ofenda algumas pessoas com poder, ou a própria opinião pública.
Não faltam exemplos históricos de direitos pessoais ofendidos por decisões judiciais que cederam ao clamor daquela opinião, uma rameira influenciável e volúvel. E mesmo que muitos juízes imaginem que a majestade da Justiça e a deles próprios é uma e a mesma coisa, e que por isso tratem os réus sem respeito, as testemunhas com arrogância e os advogados com displicência, nem por isso o bem público ficaria mais bem servido se o juiz fosse apenas mais outro funcionário, de quem nos podemos queixar ao chefe.
A defesa última que tem um cidadão contra os outros, a opinião pública ou o Estado é o tribunal. E é preciso que o juiz não esteja preocupado com as susceptibilidades do seu colega do ministério público, o que achará o agente de polícia, que está a depor, sobre o teor da sentença que irá proferir, o que vão escrever ou dizer os pensadores que pastoreiam a opinião, e o que vai pensar a malta anónima que, em maiúsculas e execrável português, se alivia das suas indignações nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais.
Os privilégios em matéria criminal dos juízes são instrumentais, isto é, protegem-nos a eles para nós estarmos protegidos, e portanto a derrogação do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei serve para garantir que o cidadão que no tribunal acusa ou é acusado seja… igual perante a lei a qualquer outro.
Quer o meu amigo Pedro duas boas causas, e duas boas perguntas, que suscitam os casos recentes na Justiça? Uma é a da razão pela qual se encara com tanta displicência a necessidade da prisão preventiva para investigar crimes, para cidadãos que não sejam juízes; e outra por que motivo não sabemos exactamente quem foi o magistrado demente que resolveu assaltar os computadores do ministério das Finanças por causa de uma acusação ridícula que levou os cidadãos desprevenidos a pensarem que não podia ser só aquilo, tinha que haver coisas mais graves.
Em Portugal pode uma juiza de quem já foi provado em tribunal que um solicitador subornou para comprar uma sentença, e por se ter provado o crime o solicitador foi condenado a pena de prisão, se bem que a juiza nem sequer tenha sido submetida a julgamento porque o Supremo Tribunal de Justiça não considerou as provas que o condenaram a ele suficientemente credíveis para sequer a levar a ela a julgamento e arquivou o processo, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça? Pode.
Em Portugal a magistratura funciona como uma corporação que protege os seus mesmo quando são apanhados a cometer crimes, mesmo crimes no exercício das suas funções de magistrados? Cada um que tire as conclusões que a sua consciência lhe ditar e que profira a sua opinião em público se considerar que em Portugal e liberdade de expressão é suficientemente respeitada para a poder proferir em público sem receio de ser penalizado por ela.
Em Portugal a magistratura confronta judicialmente cidadãos poderosos? Já confronta judicialmente cidadãos poderosos como governantes socialistas, grandes banqueiros ou dirigentes desportivos mas, no domínio de confrontar judicialmente magistrados judiciais, ainda tem tudo para provar. E não é pouco.
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