Tal como o assassino que, no final da leitura da sentença no julgamento em que foi condenado a onze anos e meio de prisão por ter morto um jovem à facada e em plena sala de audiências fez o gesto de atirar um beijo na direção da mãe da vítima, os socialistas que, mesmo debaixo do escrutínio de uma investigação judicial durante a qual até estiveram sujeitos a prisão preventiva andam a saltitar de casa de testa de ferro em casa de testa de ferro, ou debaixo do escrutínio intenso a que é sujeito qualquer primeiro-ministro nomeiam amigos ou até melhores amigos para representar o Estado em negociações de processos de privatização para assegurar aos interesses que eles representam profissionalmente a tomada de posição no capital das empresas privatizadas, andam a gozar com a sociedade como se se soubessem abrangidos por uma imunidade qualquer e o descaramento com que gozam às claras não lhes trouxesse o risco de virem a sofrer qualquer tipo de penalização.
Cabe à justiça representar os nossos interesses investigando-os com diligência e rigor, recolhendo provas sólidas dos crimes que eles cometem e não meros indícios, suspeitas e teses que originam títulos sensacionalistas nos jornais mas em tribunal não asseguram condenações, e apresentando em tribunal processos devidamente fundamentados para que se possa fazer Justiça condenando-os a penas de prisão efectivas correspondentes aos crimes que cometem.
Porque a justiça que simula condenações aplicando medidas meramente administrativas intoleráveis para quem considera a liberdade um valor supremo que só pode ser negado por sentenças judiciais como a prisão preventiva, e consegue condenações nos jornais alimentando-os com informação parcial que nos jornais parece conclusiva mas avaliada com o rigor exigível nos tribunais não é, a justiça populista que investe no justicialismo mediático sem fazer o seu trabalho de garantir a condenação de criminosos em tribunal, não os parece assustar sequer a título de os incitar a serem minimamente dicretos no crime.
A lata deles ao fazê-lo às claras não é mais do que a avaliação que fazem da competência do sistema judicial que não receiam. E se calhar a culpa é nossa, que lhes andamos a alimentar o populismo justicialista mediático em vez de lhes exigir resultados.
Na semana passada especulei aqui sobre quais podem vir a ser as consequências possíveis do anúncio pelo novo presidente brasileiro Jair Bolsonaro, não se lhe pode chamar medida política porque ele ainda não governa, de exigir alterações ao contrato entre os governos brasileiro e cubano ao abrigo do programa "Mais Médicos" que são consideradas inaceitáveis pelo governo cubano, pelo que conduz inevitavelmente à ruptura do contrato.
Fiz essa análise essencialmente na óptica mais relevante para analisar uma medida política de um governo, a que olha para as consequências dessa medida para os governantes que a tomam e para os governados que são afectados por ela, o presidente Bolsonaro e os brasileiros servidos por médicos cubanos, e cheguei à conclusão que a medida terá certamente consequências positivas para o presidente, e para os utentes dos médicos terá consequências que poderão ir da neutralidade, se não houver uma disrupção dos cuidados médicos a que têm acesso hoje em dia, à catástrofe humanitária, se perderem durante um período longo o acesso a esses cuidados. E esta distância entre as consequências mais positiva e mais negativa inspirou o título do texto "Roleta Russa".
Mas alguém me chamou a atenção, e bem, para o facto de ter discutido insuficientemente as consequências da medida para uma parte que por um lado é importante neste processo e por outro está sujeita a uma situação de alguma fragilidade, os médicos cubanos.
Os médicos cubanos, tal como todos os cubanos, vivem numa ditadura comunista. Não têm, portanto, a liberdade que nós temos, mas alguns dos mais velhos de nós já não tivemos, e ao não ter tido aprendemos a perceber bem a diferença entre tê-la e não a ter. E vivem num país com a ineficiência económica inerente ao socialismo. Ou seja, não são livres nem prósperos.
E, como faz parte da natureza humana tentar a sorte noutras paragens quando não se é livre nem próspero onde se está, são impedidos de sair para o estrangeiro para não fugirem, e só lhes são permitidas as saídas em circunstâncias excepcionais. Por exemplo, quando são enviados pelo governo para desempenhar funções no estrangeiro, como acontece aos médicos cubanos.
Uma das formas de os desincentivar de fugirem quando se encontram num país estrangeiro como o Brasil, não sendo possível vigiá-los e controlá-los permanentemente, é de não permitir que se façam acompanhar pelas suas famílias quando saem do país, tendo a noção que se fugirem, como lhes é relativamente fácil fazer, podem não as voltar a ver por elas serem impedidas de sair do país para irem viver com eles.
Isto tudo é importante neste contexto porque um dos motivos pelos quais aqueles a quem a medida, ou a sucessão de anúncios de ameaças e de promessas, do presidente Bolsonaro parece mais positiva do que negativa é justamente a falta de liberdade que vitima os médicos cubanos que estão no Brasil, e a possibilidade de lhes devolver a liberdade se se desligarem, como têm oportunidadede fazer se o presidente cumprir a promessa de os acolher no Brasil, das amarras que os prendem ao regime cubano. E, quer sejam oito mil e tal, quer sejam onze mil e tal, e há notícias a citar os dois números e não sei determinar qual deles é o real, libertá-los a todos seria um sucesso extraordinário, sem qualquer tipo de cinismo político.
O presidente Bolsonaro não se cansou, aliás, de repetir que os queria no Brasil, livres (com a possibilidade de ter as famílias a viver com eles) e com direitos (a receber directamente o salário em vez de receberem do governo cubano um salário que é substancialmente mais elevado do que o que têm em Cuba mas substancialmente mais baixo do que o de um médico brasileiro e do que o valor pago por cada um ao govero cubano). E de comparar a situação actual deles com a escravatura, no que tem sido um argumento de carga dramática muito forte dos adeptos da medida.
Que consequências é que esta intenção declarada do presidente Bolsonaro, que desencadeou a reacção natural e esperada do governo cubano de rescindir o contrato com o governo brasileiro e ordenar o regresso dos médicos cubanos, pode ter então para os médicos cubanos?
A primeira definição que é necessário precisar para proceder a esta análise é que uma medida política vale pelas suas consequências, e a consequência de uma medida é a diferença entre a situação prévia e a situação real que resulta da concretização da medida, e não a diferença entre uma situação prévia que carece de intervenção e uma situação ideal que ela pretende ou alega atingir.
Neste quadro, a consequência de uma medida destinada a libertar os médicos cubanos que não são livres como deviam não é necessariamente a desejada liberdade deles, mas a situação real em que se vierem a encontrar depois de a medida ser implementada.
Posto isto, qual e a situação prévia que carece de intervenção?
É o facto de os cuidados médicos serem assegurados a um número cuja estimativa varia entre notícias mas que não deve ser inferior a vinte milhões de brasileiros por médicos cubanos ao abrigo do programa "Mais Médicos" , e de estes médicos receberem salários indignos para os padrões brasileiros e serem sujeitos a limitações inaceitáveis à sua liberdade, nomeadamente ao não serem livres de levar as famílias com eles para o Brasil, numa condição que uma retórica activista dos direitos humanos e sociais define como "escravos" com os familiares "reféns" do regime cubano. E serão mesmo?
Escravos? Já vimos que livres não são, como ninguém é numa ditadura, comunista ou de outra orientação ideológica qualquer. Mas para poderem ser honestamente considerados escravos seria preciso, em primeiro lugar, que fossem forçados a trabalhar contra a sua vontade.
Ora estes médicos trabalham no Serviço Nacional de Saúde cubano onde têm emprego assegurado e candidatam-se a vagas nas missões no estrangeiro para onde, quando as suas candidaturas são aceites, são enviados. E porque é que se candidatam a missões no estrangeiro em vez de continuarem nos seus portos de trabalho de origem? Porque, mesmo recebendo menos do que os médicos brasileiros e muito menos do o governo cubano recebe pelos serviços prestados por eles, recebem muito mais do que no SNS cubano. Estes médicos estão no Brasil porque querem e porque têm interesse pessoal, nomeadamente a nível salarial, em lá estar. Escravos não são.
Explorados? Os médicos colocados no Brasil recebem apenas um terço, vamos tomar esta fracção por fidedigna mas, mesmo que não seja, não tem grande relevância determinar o montate exacto, do que o governo cubano recebe pelos serviços que eles prestam. Isto é exploração? Se nos esforçarmos por olhar para a situação numa óptica trabalhista podemos dizer que sim. Se olharmos à nossa volta para a economia de mercado em que temos a sorte de viver, pode ser que não.
Eu iniciei a carreira profissional numa multinacional de informática onde, se eu passasse um dia completo a prestar assistência a um cliente e a empresa lhe facturasse as oito horas do trabalho prestado por mim, recebia por esse dia de trabalho meu mais do que me pagava de salário mensal. Eu sentia-me explorado? Não, ganhava muito bem e até sentia uma certa vaidade por ver como o meu trabalho era tão valorizado pelos clientes que apoiava. As empresas de serviços numa economia de mercado compram a mão-de-obra a preços de mercado e vendem os serviços a preços de mercado, e mesmo que os trabalhistas vejam nisto uma perversão, é o melhor que se arranjou até agora para proporcionar vidas mais decentes a mais trabalhadores. O governo cubano não faz muito diferente ao oferecer a médicos cubanos com salários inferiores a cem euros por mês a oportunidade de se candidatarem a ganhar várias vezes mais no Brasil, e a oferecer ao governo brasileiro serviços de médicos por um valor competitivo com o que o governo brasileiro teria que oferecer a médicos brasileiros para aceitarem ocupar as vagas nos locais pobres e remotos onde os médicos cubanos trabalham. Havendo aqui intervenientes que não são agentes numa economia de mercado, todos participam neste negócio bem informados sobre as suas condições e livres de decidir participar ou não, pelo que não se pode dizer que este negócio viole as exigências de uma economia de mercado, nem que a exploração a que é sujeta uma das partes seja diferente da exploração a que é sujeito qualquer trabalhador numa economia de mercado.
Reféns? Em Cuba, como na generalidade dos países comunistas, toda a gente é refém, toda a gente é impedida de se deslocar ao estrangeiro a não ser em circunstâncias excepcionais e normalmente acompanhada de funcionários com responsabilidade pela sua vigilância, e nomeadamente por não os deixar fugir.
E as famílias dos médicos também. São impedidas de sair mas não são ameaçadas de represálias no país no caso de o seu familiar fugir. Simplesmente continuarão a ser impedidas de sair, e ele de entrar para não se deixar recapturar, o que significa que uma fuga de um pode ter como consequência a impossibilidade de voltar a ver a família. Isto não faz deles vítimas de qualquer forma de discriminação comparativamente com qualquer outro cubano a trabalhar no estrangeiro ou em Cuba. São apenas, todos eles, vítimas do comunismo.
Acresce que entre os onze, ou oito, mil e tal médicos do contingente cubano no Brasil há cento e cinquenta, entre um e dois por cento, que têm a ambição declarada de não regressar a Cuba, tendo para isso instaurado processos na justiça brasileira.
Tudo junto, quais são as consequências para os médicos cubanos desta intenção de medida política do novo governo brasileiro com o objectivo confesso de os libertar?
Para os cento e cinquenta que querem ficar no Brasil isto é a oportunidade de libertação, tanto mais que o presidente Bolsonaro já prometeu publicamente que os acolherá no Brasil. Em boa verdade não seria necessário provocar a rescisão do contrato com o governo cubano para os libertar, bastaria conceder-lhes dupla nacionalidade ou o estatuto de refugiado político e contratá-los directamente para trabalharem no SNS brasileiro.
Para os que, mesmo sem terem até agora iniciado qualquer procedimento formal para tentar permanecer no Brasil, desejem aproveitar esta oportunidade para permanecer, a mesma consequência. É a oportunidade de libertação, mas não seria necessário o governo brasileiro rescindir o contrato com o governo cubano para os libertar.
Para os médicos cubanos que, por ter rescindido o contrato com o governo brasileiro, o governo cubano mandar regressar antecipadamente a Cuba, é uma oportunidade de ganhar melhor e juntar dinheiro para eles e para as famílias durante uma missão no estrangeiro para a qual se candidataram e conseguiram ser escolhidos que é terminada prematuramente. Vão perder dinheiro. E vão conquistar alguma liberdade ao libertarem-se desta escravatura a que estão sujeitos no Brasil com as famílias reféns em Cuba? Não, vão continuar a ter a mesma falta de liberdade que têm e sempre tiveram e as famílias vão continuar a ser impedidas de viajar como sempre foram e são enquanto eles estão no Brasil. Se eram escravos e as famílias reféns, vão continuar a ser escravos e as famílias reféns. Terão danos e não terão quaisquer benefícios a compensá-los.
Tudo junto, a rescisão do contrato com o governo cubano para colocar médicos no Brasil ao abrigo do programa "Mais Médicos" vai beneficiar um número de médicos cubanos previsivelmente muito reduzido, e cujo problema se poderia resolver com medidas alternativas directamente dirigidas a eles, e vai prejudicar financeiramente e no percurso profissional todos os outros sem lhes incrementar em nada a liberdade. Para eles a bala da Roleta Russa está mesmo na câmara.
Significa isto uma grande trapalhada do presidente Bolsonaro que anunciou uma medida política voluntariosa com a intenção declarada de proteger os médicos cubanos que estão a trabalhar no Brasil mas que acabará por prejudicar a esmagadora maioria deles, para além de prejudicar milhões de utentes?
Não.
Como eu tinha avisado na semana passada, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações populistas, mas não é a que motiva realmente as reivindicações.
Quando o programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo Dilma em 2013 o então deputado federal Jair Bolsonaro exigia ao governo que não permitisse a vinda de familiares dos médicos cubanos que o governo brasileiro autorizava no contrato.
O deputado justificava essa exigência insinuando que a autorização para os médicos cubanos virem acompanhados de familiares resultaria numa verdadeira invasão do Brasil por milhares de agentes do governo cubano, que ele estimava em setenta mil. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não era certamente o bem-estar das famílias dos médicos cubanos, agora designadas por reféns do regime cubano a quem ele exige que lhes permita viajarem para o Brasil, era, pelo contrário, impedir que entrassem no Brasil.
Mas ele entretanto podia ter mudade de ideias, e ter evoluído de uma preocupação securitária talvez paranóica para uma sensibilidade social ao bem-estar dos médicos e das suas famílias negado pelo regime cubano. Podia, mas não mudou.
Ainda em 2016, já tinha caído o governo Dilma, ele exigia a sujeição dos médicos cubanos a um exame à Ordem dos Médicos brasileira para comprovarem as suas competências e, deste modo, o governo brasileiro poder expulsar alegados "médicos" que eram na realidade agentes ou militares cubanos colocados no Brasil para provocar o caos no país depois de ocorrer um atentado islâmico. Se a preocupação dele era fundamentada ou uma teoria da conspiração delirante não é importante avaliar aqui. Mas a preocupação não eram certamente com os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, era, pelo contrário, a de encontrar um modo de os expulsar do Brasil.
Resumindo, encontramos aqui bem tipificados alguns ditados portugueses.
Se a ambição de quem formulou ou concorda com as medidas propostas pelo presidente Bolsonaro para proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos é realmente proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, o melhor é deixar estar como está, porque o que está em curso não os vai proteger, vai-os penalizar sem lhes oferecer em contrapartida qualquer incremento de liberdade. "De boas intenções está o Inferno cheio".
Mas a ambição real destas medidas não é proteger os direitos laborais e sociais dos médicos cubanos, e provavelmente também não será neutralizar uma conspiração imaginária de agentes cubanos no Brasil, será certamente a de iniciar um ciclo de reversões simbólicas de medidas simbólicas do governo pêtista para sinalizar aos brasileiros que o Brasil está a mudar, e para melhor. "Gato escondido com o rabo de fora".
E num balanço global isto vale os custos que terá? Para os médicos cubanos no Brasil, não.
O Senhor Eucalipto da esquerda à esquerda do PS, uma espécie de crescimento rápido que seca tudo à sua volta com doses maciças de populismo mediático carinhosamente regado e estrumado pela comunicação social portuguesa, com especial destaque para a que é financiada por generosos capitalistas mecenas da silvicultura científica como o doutor Pinto Balsemão ou os herdeiros do engenheiro Belmiro de Azevedo, e que substituiu no parlamento por árvores jovens que ainda não chegaram a criar raízes profissionais, e provavelmente nunca as virão a criar, as velhas árvores autóctones das espécies "operários", "camponeses" e alguns "intelectuais" que populavam anteriormente esta região situada do lado esquerdo do parlamento para quem os vê de frente, e do direito para quem está sentado nas bancadas, decidiu escrever uma carta aberta ao primo.
O que diz a carta não estou em condições de vos revelar porque é um conteúdo reservado para assinantes do jornal que a publica, um dos que citei acima, e eu não adquiri esse privilégio. E ainda que o tivesse não o revelaria por respeito à privacidade devida à correspondência entre membros de uma mesma família, neste caso a dos eucaliptos, como não revelaria o conteúdo de cartas abertas trocadas entre giestas ou entre carvalhos, com ou sem "u" para parafrasear um conhecido poeta português.
Porque o conteúdo é privado, mas também porque não tem interesse nenhum, limitando-se que deve certamente a repetir a cassete das teorias da conspiração genéricas dos populistas e específicas desta seita específica, a da denúncia dos grandes interesses capitalistas, dos académicos comprados por eles e dos políticos submissos com medo de os travar. Como se costuma dizer, não há inimizades como as que se cultivam no seio da família.
O Brasil tem mais de 11 mil médicos cubanos que, como é habitual, não são contratados individualmente mas através de um protocolo celebrado com o governo cubano, o programa "Mais Médicos" , e com direitos laborais e sociais limitados pelo seu patrão, o governo cubano que, entre outras condições contratuais, lhes paga um salário várias vezes inferior aos honorários que recebe do governo brasileiro pelo serviço que eles prestam e lhes limita, nomeadamente, a liberdade de movimentos, e a das suas famílias. É a gestão socialista dos recursos humanos, assunto que considero fascinante por vários motivos e constituiu mesmo o tema do primeiro texto que publiquei neste blogue.
O programa "Mais Médicos" foi lançado pelo governo brasileiro Dilma em 2013 acompanhado de uma intensa campanha de propaganda mediática a título de fazer chegar a assistência médica a populações desfavorecidas em regiões remotas para onde era difícil recrutar médicos brasileiros, incluindo reportagens apoteóticas à chegada do contingente de médicos cubanos a cada aeroporto brasileiro. E alguma utilidade tem para além do fogo-de-vista mediático, por ter feito chegar médicos a zonas efectivamente desprovidas deles.
É aliás semelhante a um protocolo celebrado com muito menos circo mediático entre o governo português Sócrates e o governo cubano em 2009 para acolher médicos cubanos em Portugal, também para colocar em zonas onde de facto era e é difícil recrutar médicos portugueses, que actualmente abrange umas dezenas de médicos, perto de cem. E também sujeitos a condições salariais e sociais típicas de um regime socialista, recebendo de salário poucas centenas de euros dos mais de quatro mil que o governo cubano cobra por cada um, para além das despesas de alojamento suportadas pelas autarquias, e sendo cada grupo de quatro médicos coordenado por um chefe de missão cuja função primordial é a vigilância dos restantes membros. A sua presença em Portugal foi essencialmente contestada pela Ordem dos Médicos que, numa reacção corporativa típica e expectável, alegava que eles estavam sujeitos a um regime de quase-escravatura, a preocupação com o bem-estar dos outros é sempre a primeira que se deve evidenciar quando se fazem reivindicações corporativas populistas, e que se pagasse a médicos portugueses quatro mil euros por mês o governo conseguiria recrutá-los para essas regiões, a verdadeira motivação para a sua reacção.
Um dos sinais distintivos dos populismos é o recurso sistemático a medidas simbólicas, mais motivadas pela mensagem que fazem passar, e quanto mais facilmente passa a mensagem mais eficazes são, do que pela eficácia social, que no limite até pode ser contrária à intenção declarada. Foi para isso, para dar um exemplo, que o BE apresentou logo no primeiro dia desta legislatura em que a esquerda recuperou a maioria parlamentar que não tinha desde 2011 a proposta de eliminar a taxa moderadora para o aborto, cujo efeito prático é nulo, por a taxa ter nessa altura um valor meramente simbólico de 7,50€ e apenas abranger a minoria de cidadãos com rendimentos que não os isentam de taxas moderadoras, mas que serviu para o BE sinalizar que agora quem manda aqui somos nós.
No Brasil o governo mudou e o novo presidente também tem a preocupação de recorrer a medidas de forte carga simbólica, no caso dele anti-comunista, para mostrar que o tempo do petismo acabou e que quem manda ali é ele.
E uma das medidas que elegeu para exibir este simbolismo foi o programa "Mais Médicos". Que, aliás, é uma escolha feliz no domínio da carga simbólica, por ser uma medida do governo Dilma e por envolver o regime cubano.
Além de manifestar, ou de dar voz a manifestações de, dúvidas àcerca das qualificações profissionais dos médicos cubanos, que no Brasil, ao contrário de Portugal, não são obrigados a fazer um exame na Ordem dos Médicos para ficarem habilitados para o exercício da Medicina, também denunciou as condições laborais a que estão sujeitos pelo governo cubano. E a pretexto de garantir a qualidade do serviço prestado por eles e de exigir para eles direitos laborais e sociais que não têm, o presidente Bolsonaro anunciou que vai reformular o programa para passar a exigir que os médicos cubanos façam um exame para poderem exercer Medicina no Brasil e vejam os seus direitos laborais e sociais ampliados, recebendo por inteiro o salário pago pelo governo brasileiro e tendo liberdade para trazerem as suas famílias para o Brasil. Nada de radicalmente diferente do que foi reivindicado em Portugal pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, e certamente com a mesma preocupação pelos direitos deles e pelo bem-estar dos seus utentes.
Às ameaças anunciadas de imposição de alterações ao protocolo o governo cubano respondeu declarando-as inaceitáveis e ameaçando por sua vez rescindi-lo e fazer regressar os médicos a Cuba.
E à ameaça do governo cubano de fazer regressar os médicos a Cuba o presidente Bolsonaro respondeu com a promessa de acolher como refugiados todos os que queiram ficar no Brasil.
E é nisto que se está.
Sendo que, se desta circunstância resultar uma grande parte dos médicos cubanos aceitar o acolhimento no Brasil como refugiado, não haverá uma disrupção no serviço que prestam às populações em áreas carenciadas de assistência médica e o presidente Bolsonaro terá uma vitória política de monta, nomeadamente no domínio simbólico da luta contra o comunismo no continente americano, sem penalizar os utentes.
Se a maioria dos médicos obedecer à ordem do seu governo de regressar a Cuba, por motivos que só cada um poderá conhecer mas pode haver vários plausíveis, nomeadamente o bem-estar e a segurança das suas famílias que ficam em Cuba, poderá haver uma disrupção na prestação dos serviços de saúde que poderá ser dramática para as populações servidas por eles, mas o presidente terá uma saída airosa alegando, como já alegou, que foi o governo cubano, comunista, a rescindir unilateralmente o protocolo, ou seja, que abandonou estas populações.
Para o presidente Bolsonaro poderá ser uma grande vitória ou uma pequena vitória. Para as populações servidas pelos médicos cubanos poderá ser um pequeno contratempo ou um grande drama.
Tem todos os ingredientes de uma roleta russa.
Há hoje uma doença, que afecta comentadores, políticos e articulistas tidos como de direita, que consiste na mania de ficarem em cima do muro do centrismo. Nota-se em relação, por exemplo, às causas fracturantes, ao feminismo na versão MeToo, como a Trump, Bolsonaro e a certos políticos neonacionalistas da antiga Europa comunista.
O muro está muito sobrecarregado. E quem o ocupa está lá porque, julga, vê melhor para os dois lados. Mas deveria lembrar-se que do muro pode cair-se; e do chão não.
Este equilibrismo decorre do horror a ser considerado fascista, ou extremista, ou reaccionário. Ou seja, decorre da chantagem da esquerda, que há décadas detém o monopólio das classificações do opróbrio, das quais porém exclui a mais infamante de todas, que seria o ser tachado de comunista, se a história da doutrina e das suas realizações pretéritas e presentes fosse bem conhecida.
Mas há mais: todo o discurso de esquerda repousa na ideia da superioridade moral, vertida nos anseios pela igualdade (como se outra que não a perante a lei não desse necessariamente origem a violências, esbulhos e exacções), pela justiça social (interpretada como se toda a diferença material, conquistada ou herdada, fosse ilegítima), pela engenharia de costumes (como se toda a tradição devesse ceder o passo às crenças das franjas mais inovadoras da sociedade, portadoras do facho da modernidade) e pelo determinismo histórico (a história tem um sentido, e esse é o da superação do capitalismo, não para algo que ainda se não conheça, mas para fórmulas que se conhecem bem demais).
Isto é tudo evidente, para quem não tenha a cabeça feita pela propaganda sufocante do bem-pensismo. Não é tão evidente o peso das relações pessoais: à força de conviver e debater com comunistas e bloquistas, que enquanto pessoas não são melhores nem piores do que as com ideias decentes, acaba-se por achar que uns e outros são adversários como quaisquer outros. Não são: comunistas e bloquistas defendem, com graus diferentes de hipocrisia (esta decorre de se apresentarem sempre como querendo melhorar o capitalismo, que todavia querem destruir), modelos alternativos de sociedade. E nestes não cabem os que estejam dispostos a resistir, o que faz com que, objectivamente, comunistas e bloquistas sejam inimigos dos democratas, não adversários. Pessoalmente, conto com alguns espécimes de quem sou sinceramente amigo, mas sem ilusões: na minha sociedade eles têm lugar; na deles eu não teria.
A forma temporária de que hoje se reveste o progresso esquerdista é o reforço dos poderes do Estado e o aumento do esbulho fiscal. As duas tendências vão na mesma direcção: é preciso que a sobrevivência fora do Estado, e sobretudo contra ele (isto é, contra quem o representa) não seja possível; e é necessário que ninguém acumule recursos que lhe permitam investir ou que só o possa fazer se puder contar com a benevolência dos poderes públicos.
É por este conjunto de razões que as taxas de IRS, para rendimentos que nem sequer podem ser considerados altos senão por comparação com a modéstia generalizada, se aproximam de 50%; que a maior parte dos contribuintes nada paga a este título; que do remanescente qualquer consumo origina 23% de imposto; que certos impostos, como o IRS ou o IVA, são pagos ou adiantadamente ou sem nenhum facto tributário real que lhes subjaza; que para certos bens, todavia essenciais à actividade económica, como os combustíveis, o imposto anda pelos 60%; que existe uma gigantesca floresta de taxas sem qualquer relação com o serviço que teoricamente remuneram; que as multas para um extenso e crescente catálogo de infracções são demenciais; que se falsifica a relação entre o cidadão e o Estado pelo expediente de fazer crer que são as empresas que pagam a maior parte da segurança social (não são, ficariam exactamente na mesma se essa responsabilidade fosse do trabalhador, com os salários aumentados em igual montante ao que resulta da taxa da responsabilidade do empregador); e que o sistema fiscal é uma absurda moxinifada só inteligível a especialistas, e às vezes nem a estes dada a instabilidade e diarreia legislativas, com a única constante de os impostos aumentarem sempre em valor e ocasionalmente diminuírem em relação ao PIB, até ao dia em que este se retrai por uma qualquer crise, caso em que a punção fiscal passa para um novo patamar.
É aqui, na evolução do papel do Estado, que entronca o enriquecimento ilícito (agora crismado de “injustificado”). Este é um velho cavalo de batalha de toda a esquerda e toda a direita envergonhada: quem é que ousará dar a impressão, por causa de esquisitices ligadas a conceitos jurídicos e civilizacionais que poucos entendem, de defender o enriquecimento “injustificado”?
Ninguém defende. E todavia, o problema não é, nem nunca foi, o de defender ilícitos, é o de saber a quem incumbe prová-los.
Ninguém tem dúvidas que se um indivíduo for acusado de um dos crimes da extensa lista do Código Penal, ou legislação avulsa, quem acusa tem de provar. Teoricamente, o acusado pode até fechar a matraca que nem por isso o crime se dá como automaticamente provado.
O Tribunal Constitucional acha que com o enriquecimento injustificado o problema não é diferente, em acórdão cuja leitura não recomendo, dada a extensão e a prolixidade pedante. Acha bem, a meu ver. Todavia, há quem assim não entenda e, ó surpresa, é um corifeu do comentariado de direita. E então, que diz João Miguel Tavares?
Começa por afirmar que “os senhores deputados estão tão interessados em reforçar a transparência como eu estou em arrancar os dentes do siso”, e isto porque “está prometido um novo código de conduta dos deputados, regras mais apertadas quanto à exclusividade de funções e a regulação do lobbying”, e esses preciosos diplomas não há maneira de saírem.
A Tavares, que opina sob o signo do simplismo, não ocorre que tais matérias não sejam fáceis, desde logo porque a exclusividade, se levada ao extremo, pode convir ao PCP, cujos deputados são funcionários do Partido, e cujos lugares estão na disponibilidade da direcção, mas se aplicada aos outros não fará mais do que estreitar o leque dos potenciais candidatos a deputados. Nem toda a gente estará interessada em suspender as suas carreiras para se dedicar ao trabalho parlamentar, a troco de uma remuneração que não é competitiva com o que ganham muitas pessoas capazes e bem sucedidas, e isto durante anos, para no final voltar ao ponto em que estava, como se o mundo e o mercado estivessem em suspenso, à espera do regresso.
De resto, o mesmo comentador já se terá por certo queixado da falta de ligação à vida real de muitos deputados e do carreirismo de outros, porque é o que toda a gente diz, com o cenho franzido de preocupação e o dedo acusador espetado, contando com aguerrido e indignado apoio nas redes sociais. A exclusividade melhora esses aspectos? Não, e pelo contrário reforçaria o stock de advogados, funcionários públicos, professores com vínculo e jotinhas.
Quanto à regulação do lobbying, ela não se aplica, que eu saiba, a deputados, que já estão impedidos de o praticar. A menos que o conceito abranja a defesa de certas empresas, actividades, organismos e regiões, caso em que eu temeria pelo futuro do queijo limiano e da CGTP.
O lobbying será regulado, sim. E a regulação será inteiramente inútil, na minha opinião, porque com as nossas tradições em matéria de cunhas, na versão soft, e de tráfico de influências, na hard, a única maneira de combater a corrupção é diminuir o peso do Estado regulador e empreendedor. Isso vai suceder com governos de esquerda? Não, absolutamente. E com governos de direita? Sim, um poucochinho.
Aqui chegamos ao prato de resistência, assim: “E, no entanto, poucas coisas são tão importantes quanto a criminalização do enriquecimento injustificado, reclamada por quase todos os sectores da Justiça, com a excepção (óbvia) da Ordem dos Advogados. É verdade que o Tribunal Constitucional chumbou as propostas anteriores devido à inversão do ónus da prova, já que o crime era (erradamente) aplicável a qualquer cidadão. Mas o Parlamento pode ultrapassar essa objecção se centrar o crime na falta de veracidade das declarações de património e rendimento, obrigatórias para titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos”.
O chumbo do TC não ficou a dever-se à aplicabilidade da inversão do ónus a todos os cidadãos, mas sim ao facto de anular a presunção de inocência, que é um princípio estruturante do nosso direito penal. A excepção, “óbvia”, da Ordem dos Advogados, a Tavares não faz impressão, mas faz-me a mim. Porque são os advogados quem defende os cidadãos injustamente acusados, não as polícias, nem as magistraturas, nem a opinião pública, nem as redes sociais, nem os Tavares deste mundo.
Acresce que, com geral satisfação da parte invejosa, igualitarista e justicialista da sociedade, já existe essa inversão no domínio do Direito Fiscal. E saberá Tavares que ao abrigo dela se acusam empresários cujas vidas são destruídas enquanto os processos se arrastam em tribunal até à eternidade, que nem sempre se pode sequer aceder à Justiça porque para isso é necessário pagar ou apresentar garantias, que os funcionários interpretam abusivamente disposições legais para alargarem os seus poderes enquanto são premiados porque o abuso é elogiado e as acusações delirantes incentivadas?
Tavares não sabe. Eu sei. E sei também que provar o acusado que não fez isto e aquilo é com frequência ainda mais difícil do que a prova do acusador. E que a verdadeira razão porque o desastre da inversão do ónus da prova não chegou à opinião pública é que o empresário não quer, porque isso lhe diminui o crédito, que se saiba do que é acusado; os trabalhadores não sabem, porque a informação apenas lhes causaria ansiedade; os advogados não têm interesse em divulgar porque isso iria prejudicar o seu cliente, nem outra maneira de reagir que não seja o caminho deliberadamente eriçado de escolhos da impugnação ou recurso; os juristas mais cínicos porque a legislação abstrusa, obtusa e abusadora lhes aumenta a clientela; os católicos, que são mais ou menos quase toda a gente, porque acreditam que de toda a maneira é mais difícil entrar um rico no reino dos céus do que passar um camelo pelo buraco de uma agulha; e os comunistas e primos sortidos porque acreditam ou fingem acreditar, e disso convenceram toda a gente, que empresário quer dizer gatuno – salvo prova em contrário que o próprio tem de fazer. E todos, como é normal quando o Estado se transformou num monstro iníquo, porque acreditam que os problemas apenas acontecem aos outros – a eles não porque são virtuosos.
Fecha Tavares com um tropo grandiloquente: “Mas o Parlamento pode ultrapassar essa objecção se centrar o crime na falta de veracidade das declarações de património e rendimento, obrigatórias para titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos. As próprias Nações Unidas têm alertado para a necessidade de criminalizar o enriquecimento injustificado, e qualquer pessoa compreende que existe uma desproporção gigantesca entre a facilidade com que um político inocente comprova a licitude dos seus rendimentos ao Ministério Público e a dificuldade que o Ministério Público tem em comprovar a ilicitude dos rendimentos de um político corrupto”.
Ponhamos de lado a invocação disparatada das Nações Unidas, uma associação escrava das suas maiorias de Estados anti-democráticos, retrógrados e terceiro-mundistas, liderada nominalmente por um papa-açorda e coio de organizações enxeridas, corruptas e lunáticas. Quer Tavares que as diferenças entre as declarações de património e rendimentos no início e no fim dos mandatos, ou periodicamente, sejam fiscalizadas exaustivamente por um organismo especializado (por exemplo o Tribunal de Contas, desde que provido dos meios materiais e humanos) e que, nesse contexto, e para esse grupo delimitado de pessoas detentoras de imperium, possa exigir a inversão do ónus de prova quando haja manifesta evolução desproporcionada?
Nada a opor. Mas não é disso que Tavares, singelamente, está a falar. O que quer é, batendo no peito assumidamente de direita, poder pertencer orgulhosamente à parte dela dita civilizada, que é a que a esquerda tolera. Fazia melhor em dar uma vista de olhos ao que, já em 2009, dizia Francisco José Viegas, num texto hoje em parte desactualizado por entretanto a gente que está sentada em cima do muro a que me referia acima ter consentido no avanço aparentemente imparável do combate à evasão fiscal, e da justiça social, e da equidade, e de todos os outros bolos com que se enganam tolos.
Acabados de ressuscitar e chegados directamente da caverna onde hibernavam desde os tempos da revolução dos capitães em que o Otelo queria acabar com os ricos, ao contrário do Olof Palme que queria acabar com os pobres, uns assanhados que defendem a revolução do capitão contra todos os inimigos andaram a espirrar nas redes sociais ódio ao cantor Caetano Veloso porque quando vai a Paris se hospeda num hotel e come foie-gras, sugerindo-lhe que para ser coerente "devia partilhar a riqueza com os pobres que defende".
Sendo que, com uma carreira profissional de sucesso em que ao longo de mais de 50 anos vendeu milhões de discos e actuou em milhares de concertos, o Caetano Veloso é um homem bastante rico.
E que "defender os pobres" não significa neste caso defender a revolução comunista, a expropriação colectiva dos meios de produção e a ditadura do proletariado, que nunca se lhe ouviu defender, não significa sequer "odiar os ricos", que nunca se lhe viu odiar, mas apenas não ter aderido à revolução do capitão Bolsonaro. Ser um reaccionário.
E não terá aderido, e aqui só posso especular, talvez por ter sido preso político e exilado da ditadura militar que o capitão Bolsonaro louvou genericamente e criticou especificamente por ter torturado e matado menos do que devia? Não sei dizer, mas parece-me um motivo atendível para ele considerar o capitão uma besta sem sentir necessidade de perder algum tempo a documentar-se sobre os discursos recentes e o programa eleitoral dele para perceber bem se é mais autoritário ou mais liberal.
Em todo o caso, a má notícia para estes comunistas ressuscitados é que no Brasil, como em Portugal, já há redistribuição de riqueza, através da fiscalidade, que apesar de ser governado por socialistas há 15 anos a taxa máxima do imposto sobre o rendimento, de 27,5%, é bastante moderada comparativamente com as da generalidade dos outros países, mesmo os capitalistas, e que há poucas esperanças de conseguirem redistribuir toda a riqueza dele sem primeiro levarem a cabo com sucesso uma revolução mais socialista do que a que levou a cabo o Partido dos Trabalhadores ao longo dos últimos 15 anos. No máximo podem ambicionar a que o novo governo aumente as taxas máximas de imposto para lhe ficar com metade, ou mais, do rendimento que aufere.
Como prémio de consolação deixo-lhes uma canção do Caetano Veloso. A obra dele, pelo menos, podem-na partilhar, ao contrário da riqueza acumulada, que tem dono.
Exmo. Senhor Anónimo:
Notei a V/ carta de 23 de Outubro pºpº, recebida anteontem, sobre o assunto em epígrafe [Necessidade de actualização do Comprovativo de Identidade e Assinatura].
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VV. Exªs têm o desplante de me notificar para comparecer num dos vossos balcões/lojas para o efeito de exibir o meu Cartão de Cidadão, que “se encontra expirado”. Ou seja, acham normal que vá perder tempo e dinheiro a um dos vossos estabelecimentos para o efeito de cumprir uma exigência meramente burocrática, ao abrigo de um diploma legal, a Lei 83/2017, cuja disposição pertinente não invocam (nem poderiam, tal disposição não existe).
Não se encontra o Cartão em apreço caducado, porque foi tempestivamente renovado. E do facto dei em devido tempo, porque me foi pedido, informação, esclarecendo que o número permanecia o mesmo. Acrescento agora que a minha assinatura continua igual, porque não fui entretanto vítima de qualquer acidente de índole vascular ou outra que me tivesse alterado a escrita, e que eu próprio guardo as feições com que tenho vivido desde a primeira e todas as várias vezes que perdi tempo com inutilidades no vosso balcão de Fafe.
Fui ler a lei que referem (em diagonal, que tem 191 artigos que só por si terão feito o ganha-pão de milhares de burocratas e parasitas sortidos), que se destina a combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo (o que bastava para considerar grotesca e até insultuosa a invocação de uma tal lei para me obrigar a incomodar-me para exibir um documento a um funcionário cujo tempo decerto poderia ser destinado a actividades mais úteis), e apenas encontrei um artº, o 23º, que remotamente poderiam invocar, quando reza, na alínea d): “Existam dúvidas sobre a veracidade ou a adequação dos dados de identificação dos clientes previamente obtidos”.
Claro que VV. Exªs não têm dúvidas, nem razão para a as ter, apenas inventaram uma maneira cómoda para os vossos serviços, e incómoda para os clientes, de passarem a imagem, imagino que para a entidade de supervisão, de grande empenho no referido combate.
Mas como pudicamente solicitam que que me desloque a um vosso balcão, mas logo a seguir formulam ameaças, e portanto o que estão a fazer é exigir, informo o seguinte:
Estou disponível, em qualquer dia e hora, para receber um funcionário vosso, na minha residência ou no meu local de trabalho, para lhe exibir o meu Cartão de Cidadão actual, exactamente igual ao anterior que serviu para abertura da conta, salvo na data de validade, que é agora 25/09/2022.
Recebam VV. Exªs, como habitual, de cumprimentos, quanto baste.
José xxxxx xxxxxxxx xx Meireles Graça.
CC nº xxxxxxxx
Contribuinte nº xxxxxxxxx
Travessa xx xxxx xxxxx, nº xxx, xxxx-xxx Guimarães.
O Blasfémias, um dos melhores blogues portugueses, abriu uma secção Alt-Right com uma linguagem panfletária e uma relação aberta com os factos que não é habitual nos outros participantes do blogue.
Um dos artigos publicados recentemente a propósito das eleições brasileiras continha a frase "...Endeusaram Haddad, um bandido com mais de 100 processos judiciais activos por corrupção e branqueamento de capitais..." que me suscitou, mais pela quantidade do que pela qualidade, alguma curiosidade. Curiosidade neste contexto significa duvidar da veracidade de alguma coisa que pareça boa demais para ser verdade ao seu público alvo, entenda-se, e provavelmente má demais para ser verdade a outros públicos adversos a este.
De modo que encetei um diálogo com a autora do artigo para a questionar sobre a veracidade desta estatística, perguntando-lhe se era capaz de enumerar os mais de 100 processos a que se tinha referido.
Ela simpaticamente disponibilizou-me um link para o resultado de uma pesquisa pelo nome "Fernando Haddad" no Portal de Serviços do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que de facto devolve uma lista de 118 processos.
Mas depois de dar uma vista de olhos pela lista verifiquei que, além de Fernando Haddad, que é o nome completo do candidato às eleições presidenciais do Brasil citado no artigo do blogue, também continha processos relativos a outros nomes como Rui Fernando Haddad, Fernando Nami Haddad, Luiz Fernando Haddad, Fernando Bittencourt Haddad, Antonio Fernando Haddad Marques, Fernando Haddad Garcia, Fernando Azzi Haddad, Fernando Paro Haddad, Jose Fernando Cherubini Haddad, Fernando Haddad Favero, José Fernando Haddad, Jose Fernando Haddad Ferreira, Fernando Antonio Haddad, Fernando Jorge Haddad, Fernando Ferreira Addad, Fernando Luiz Haddad e Fernando Haddad de Lima.
O motivo é simples, e não é preciso ter ensinado Bases de Dados numa universidade no milénio passado para o compreender. A pesquisa por "Fernando Haddad" devolve todos os registos que contêm "Fernando Haddad" no campo pesquisado, e não apenas os que contêm apenas "Fernando Haddad". Neste caso até se dá o caso de ser possível pesquisar no portal os processos que referem apenas Fernando Haddad, assinalando a opção de pesquisa "Pesquisar por nome completo", e o resultado fica limitado a 28 processos.
Chamei à autora a atenção para este facto e ela prontificou-se a corrigir o erro factual no artigo.
E também me explicou onde é que tinha recolhido a informação sobre os mais de 100 processos do Fernando Haddad e o modo de os enumerar através da pesquisa no portal do tribunal: num vídeo disponível no Youtube.
Neste vídeo, publicado no dia 12 de Outubro entre as duas voltas da eleição presidencial brasileira em formato de aula, ou webminar, está a começar o Web Summit e temos de aprender esta novilíngua, o autor esclarece os alunos sobre a quantidade e qualidade dos processos judiciais sobre o candidato Fernando Haddad, interroga inclusivamente a sua motivação para concorrer a eleições que lhe poderiam conferir imunidade judicial se as ganhasse, sugere consultas no Google para perceberem melhor a tipificação dos crimes de que ele é indiciado e para recolherem informação em notícias de jornal sobre os casos específicos que originaram os processos, em resumo, ensina-os a fazer activismo nas redes sociais subordinado ao tema "Haddad criminoso".
E mostra detalhadamente o modo de acesso ao portal do tribunal e de lançamento da pesquisa, sem sequer se esquecer de lembrar os alunos de escreverem "Haddad" com dois "dd". No minuto 2:46 diz furtivamente que também podem assinalar a opção "Pesquisar por nome completo", se quiserem, sem se deter a explicar em que medida esta opção altera os resultados, e continua a aula, podendo os alunos mais atentos ter reparado que ele assinalou a opção, e aos mais distraídos ela ter-lhes entrado por um ouvido e saído pelo outro.
A ligeireza do tratamento da questão do nome pode ter sido uma falha pedagógica, se o professor pretendia esclarecer os alunos sobre a sua importância e não foi capaz, ou um caso de pedagogia da falha, se pretendia mesmo que os alunos não se apercebessem do que estava em causa para posteriormente não virem a ter o cuidado de ser rigorosos na aplicação prática dos princípios ensinados, ou seja, que propagassem boatos mesmo sem dar por isso.
A verdade é que houve alunos que não tiveram e, por não terem tido, divulgaram um boato em vez da notícia que pretendiam divulgar. Também o podem ter divulgado tendo a noção que pecava por exagero relativamente à base factual, mas é matéria sobre a qual não vale a pena especular por só cada um deles saber a verdade.
Pelo que desto caso se podem tirar duas conclusões:
Este artigo de Luís Aguiar-Conraria parece cheio de senso comum, mas senso é precisamente o que não tem. E como Conraria é socialista mas com frequência zurze no asneirol mais evidente do governo PS, foi objecto de apreciação favorável nos meus lados. Trata-se todavia de uma peça de propaganda embrulhada em raciocínios capciosos. Vejamos:
“Ou melhor, pensava que seria aprovado [o orçamento], rejeitado por Bruxelas e que, quando Portugal tivesse de fazer as devidas alterações, o PCP se recusaria. Enganei-me, portanto”.
O PCP andava atarefado, quando o autor nasceu em 1974, a ocupar o aparelho de Estado e o da comunicação social. É sabido que acumulou nestas meritórias tarefas grandes sucessos e que foi de vitória em vitória até à derrota no 25 de Novembro de 1975. Os outros partidos queriam uma democracia ocidental, portanto com liberdade para a existência de partidos comunistas, e o PCP sobreviveu intacto. Ao PS, por outro lado, convinha um PCP relativamente forte, para poder apresentar-se como o partido charneira do sistema e manter à distância a concorrência. Isso, mais o pendor esquerdizante do eleitorado da época, explica por que razão as revisões da Constituição tardaram e foram (ainda hoje são) insuficientes.
O PCP passou a ter como tarefa a manutenção, e se possível o reforço, da sua influência no aparelho do Estado, em particular a Educação, na esfera sindical e nas empresas públicas.
Tem tido sucesso: não há nenhum outro partido comunista em democracias ocidentais com tanta influência nas políticas públicas. Imaginar que este partido agarrou a mão oportunista que Costa lhe estendeu sem medir bem as consequências e que sairia ao fim de uns meses sem nenhum ganho palpável só se compreende com um absoluto desconhecimento do que o PCP foi e é. No que toca ao passado, a ignorância só é compreensível se sobre o apogeu da comunistada naquela época nada tivéssemos lido e andássemos de bibe; e no que toca ao presente apenas se continuarmos a andar.
“A solução mais fácil teria sido formar um governo minoritário à imagem do de Cavaco Silva em 1985. É provável que o PS se abstivesse no primeiro orçamento. É altamente improvável que o segundo orçamento alguma vez conseguisse passar. Voltávamos aos tempos de instabilidade, com a agravante de ser extraordinariamente improvável que as eleições fossem esclarecedoras. Enquanto uma fórmula governativa estável não fosse encontrada, a instabilidade inerente facilitaria a criação de movimentos populistas. Não que o nosso sistema político não precise de uma regeneração, mas, idealmente, não será esse o caminho”.
A estabilidade é útil e necessária quando sirva para promover políticas úteis, mas não é, nem se percebe porque houvera de ser, um valor em si. O PS estava disponível para respeitar as instruções de Bruxelas; o PSD e o CDS também. Com isso adquirido, as clivagens só poderiam ser sobre a forma de as respeitar sem comprometer o crescimento económico, e é absurdo imaginar, para quem não seja socialista, que a solução lógica e respeitadora da nossa tradição eleitoral seria pior que o patético governo que temos.
Luís não explica quais seriam os contornos da necessária regeneração do nosso sistema político. Mas não é difícil imaginar: será algo em que tenha protagonismo e lugares, em conjunto com outros pensadores que são muito críticos da direita, muito compreensivos com a esquerda, nada comunistas, muito europeístas, e imensamente modernos e lúcidos.
“Uma solução menos fácil, mas que era a preferida pelos líderes da PàF e pelo Presidente da República da altura, era ter um governo “pafiano” com o apoio do PS, que até poderia estar representado no governo. Esta solução, apesar de preferida, seria a pior possível. Com grande probabilidade, grande parte do eleitorado do PS sentir-se-ia traído e procuraria alternativas à esquerda. O Bloco de Esquerda não perderia a oportunidade de se tornar ainda mais populista para captar os votos dos descontentes. Tal como aconteceu em vários outros países, havia o risco de o Partido Socialista implodir. Sendo o PS um dos pilares da nossa democracia, as consequências seriam imprevisíveis”.
O PS poderia implodir? Olha que bênção. E os herdeiros seriam frei Anacleto Louçã, a Sarah Bernhardt do teatrinho das Visões Úteis e as manas Mortágua? A sério?
“Com a geringonça, conseguiu-se não só um governo estável, em que o essencial dos compromissos europeus foi cumprido, mas alcançou-se mais do que isso. O BE e o PCP sujeitaram-se à realidade. E se não é de esperar que o PCP, dada a sua matriz ideológica bem definida, mude, é bem possível que o BE faça o caminho dos Verdes alemães. Este é um aspecto muitas vezes frisado por Nuno Garoupa no programa que tem comigo (e com outros) na Rádio Renascença, Conversas Cruzadas. Na Alemanha, os Verdes começaram por ser um partido anti-sistema de esquerda, que gradualmente se tornou num partido confiável. Neste momento, é até o partido que mais tem crescido na Alemanha e é cada vez mais claro que sem ele a esquerda não voltará a recuperar a chancelaria. Em conversa privada, Garoupa pôs mesmo a hipótese de que ‘o Bloco percorra em 20 anos o caminho que levou 40 aos Verdes alemães”.
Que o BE se “sujeitou à realidade” não se duvida, se com isso se quer dizer que hoje procura, de forma com frequência cómica na sua evidência, acaparar uns lugares no governo e, mais tarde, nas empresas públicas. Aburguesaram-se, benza-os Deus, e se herdassem o eleitorado do PS isso quereria dizer que seriam o PS com outro nome, outras caras e outras toilettes. Ou seja, ficávamos na mesma, salvo talvez com um pouco mais de retórica fracturante e toilettes mais modernas.
Agora, que ao PCP tenha sucedido o mesmo implica acreditar que desistiu do comunismo, do colocar de pedras no xadrez do poder, e dos seus objectivos primários e secundários. Ou o autor não sabe o que diz, mas devia, ou sabe, e deveria abster-se de, para branquear a tropa repugnante que nos pastoreia, dar estes tratos de polé à história e à realidade.
“António Costa domesticou o principal foco de populismo em Portugal, o Bloco de Esquerda, transformando-o num partido institucional. Daqueles que se curvam perante a realidade. Ou seja, politicamente, a geringonça não se limitou a cumprir o que prometeu: fez bem mais do que isso”.
Viva Costa, o estratega Costa, o incomparável Costa, o genial Costa. Meteu o PCP e o BE no bolso.
Não foram só aqueles dois infelizes partidos.
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