Hoje foi aprovado em Marraquexe o Pacto Global das Nações Unidas para as Migrações Seguras, Ordeiras e Regulares.
O pacto é um conjunto de recomendações carregadas de boas intenções sobre a dispensa de um tratamento humano aos migrantes que os signatários se comprometem a respeitar sob o risco de, não o fazendo, o terem subscrito sem depois terem sido consequentes nas suas acções. Ou seja, é o compromisso de no futuro fazerem o que entenderem não estando sujeitos, no caso de incumprirem, a uma penalidade mais grave do que lhes atirarem à cara que incumpriram o que se tinham comprometido a fazer.
Portugal é um dos países signatários, e não parece extraordinariamente inesperado que o subscreva. Portugal é desde sempre um país de migrantes, e tem continuado a sê-lo sempre que a economia não consegue oferecer a todos trabalho e condições de vida à altura das suas expectativas, ou seja, sempre.
Portugal chegou mesmo a acumular em simultâneo, em momentos específicos da história, as condições de emissor e receptor de vagas de migrantes. Durante o PREC Portugal recebeu centenas de milhares de retornados que fugiram à morte quase certa nas colónias fustigadas pelo revanchismo contra os colonizadores e pelas guerras civis entre facções de descolonizadores, e também viu milhares de portugueses fugirem de uma revolução controlada por comunistas que os saneava com violência e os ameaçava de prisão e até de destinos mais fatais por crimes como os de serem donos ou gestores de empresas, ou familiares.
Os primeiros absorveu-os como conseguiu, dada a dimensão extraordinária do problema social, económico e humanitário que o seu regresso constituiu, não sem as resistências dos resistentes habituais que não viam neles portugueses forçados pelas circunstâncias a fugir de uma morte quase certa que precisavam de ajuda urgente e inevitável do seu país, mas ameaças aos seus empregos, os funcionários públicos regressados tinham prioridade na ocupação de vagas na função pública, ao espírito revolucionário em vigor, a experiência deles a fugir dos comunistas que tomaram o poder nas ex-colónias fazia deles reaccionários convictos, e até à moral e aos bons costumes, a vida nas ex-colónias tendia a ser mais cosmopolita do que na metrópole, as saias mais curtas e as mulheres mais independentes e até fumavam no café.
Os segundos absorveu-os maioritariamente o Brasil, onde foram de uma maneira geral muito bem recebidos e rapidamente integrados na economia e na sociedade, e depois da normalização democrática regressaram pacificamente a Portugal os que quiseram regressar.
De resto, Portugal tem continuado a ser sem grandes dramas uma fonte de emigração e um destino de imigração económicas em vagas que vão variando ao sabor dos ciclos económicos do país e dos países cujos emigrantes escolhem Portugal para imigrar, e se a emigração tem sido pendularmente usada por populismos demagogos para tentar extrair dela consequências políticas, a imigração não é um tema fracturante para a generalidade da sociedade.
Mas os migrantes transformaram-se nos últimos anos num dos temas mais fracturantes das democracias liberais ocidentais, muito por via dos populismos que os apresentam, com razão ou sem ela, com base em factos ou em notícias falsas ou distorcidas, como uma ameaça à coesão das sociedades, e as preocupações com a ameaça dos migrantes também chegaram a Portugal, muito por via das redes sociais onde essas ameaças são divulgadas e multiplicadas. E há áreas ideológicas que elegem os migrantes como a maior ameaça à sociedade e concentram nela o grosso da sua intervenção cívica. Com pouquíssimo peso eleitoral, mesmo que haja experiências em curso para o procurar incrementar, mas um grande peso e grau de activismo e militância nas redes sociais.
E o Pacto Global das Nações Unidas para as Migrações Seguras, Ordeiras e Regulares tem sido objecto das teorias mais alarmantes sobre as consequências desastrosas que ameaça vir a ter para Portugal.
Não vou analisar, por motivos óbvios, as 34 páginas, 54 pontos e 23 objectivos do documento. Mas posso discutir brevemente os três aspectos mais ameaçadores que lhe têm sido apontados pelos preocupados.
O primeiro é que o texto do documento tem sido escondido das populações de modo a que seja subscrito pelos governos em segredo. Bom, a primeira vez que tentei procurar o documento na internet googlei "The Global Compact for Safe, Orderly and Regular Migration", o título da versão original inglesa do documento, e encontrei-o em vários locais, entre os quais este. Não estava escondido, estava disponível para o público. A teoria da conspiração que diz que as elites conspiram em segredo contra o povo é muito apetecível desde sempre, encontra sempre quem acredite que é real, e nunca houve nenhum populismo que não tivesse recorrido a ela, mas neste caso não corresponde à realidade.
Os outros dois aspectos mais apontados pelos preocupados são-no frequentemente com recurso à conferência de imprensa sobre o pacto conduzida pelo eurodeputado holandês Marcel de Graaff, membro do grupo parlamentar Europa das Nações e Liberdade que integra, entre outros partidos, o seu próprio Partido da Liberdade holandês e a União Nacional, a nova designação da Frente Nacional, francesa, que reproduzo aqui.
O segundo é que o pacto considera os crimes de ódio contra migrantes mais graves do que os crimes de ódio contra os nacionais dos países que os acolhem. E esta preocupação decorre das acções propostas para cumprir o objectivo 17 "Eliminate all forms of discrimination and promote evidence-based public discourse to shape perceptions of migration" de que a primeira é:
Traduzindo para Português isto significa "Criar, implementar ou manter legislação que penaliza crimes de ódio e crimes de ódio agravados contra migrantes, e treinar polícias e outros agentes oficiais para identificar, prevenir ou responder a crimes destes ou outros actos de violência contra migrantes, assim como de prestar às vítimas assistência médica, legal e psico-social". E traduzido em miúdos significa criar onde não existe, implementar onde existe mas não é aplicada, e continuar a aplicar onde existe e é aplicada, legislação a penalizar os crimes de ódio, tanto na forma simples como na forma agravada, também quando as vítimas são migrantes. Garantir que os crimes de ódio sejam previstos e penalizados, mesmo que ainda não sejam. Garantir que todos os crimes de ódio, simples e agravados, são penalizados, mesmo quando as vítimas são migrantes. Sem qualquer apelo a que os crimes de ódio devam ser considerados agravados pelo facto de as vítimas serem migrantes.
Em Portugal qual é a consequência da implementação desta acção, se vier a ser implementada na sequência da subscrição do pacto pelo governo português? Nenhuma. Os crimes de ódio já são penalizados na lei portuguesa, tanto na forma simples como agravada, tanto sobre nacionais como sobre migrantes. Nenhuma.
O terceiro é a criminalização das críticas às políticas de migração dos países subscritores e o encerramento de meios de informação que as critiquem. E esta preocupação decorre das terceira das acções propostas para cumprir o objectivo 17 "Eliminate all forms of discrimination and promote evidence-based public discourse to shape perceptions of migration":
Traduzindo para Português isto significa "Promover o relato independente, objectivo e de qualidade nos meios de informação, incluindo os baseados na internet, incluindo a sensibilização e formação dos profissionais de informação em temas e terminologia relacionados com migração, o investimento em padrões de informação éticos e em publicidade, e a cessação de financiamento público ou de apoio material a meios de informação que promovam sistematicamente a intolerância, a xenofobia, o racismo e outras formas de discriminação dos migrantes, dentro do respeito integral da liberdade dos meios de informação". E, traduzido em miúdos, significa, para além de produzir press releases a sugerir formas politicamente correctas de noticiar os factos e as políticas e medidas relacionadas com a migração, deixar de financiar com dinheiro público meios de informação que promovem sistematicamente a intolerância, o racismo e a xenofobia, respeitando embora a sua liberdade de expressão. Nenhuma sugestão de criminalização, sequer dos meios de informação que promovem sistematicamente a intolerância, o racismo e a xenofobia, quanto mais dos que criticam as políticas públicas a propósito da migração, nenhuma de os encerrar, apenas a de deixar de os financiar com dinheiro público se são financiados com dinheiro público.
Em Portugal qual é a consequência da implementação desta acção, se vier a ser implementada na sequência da subscrição do pacto pelo governo português? Nenhuma. Os meios de informação que promovem sistematicamente a intolerância, o racismo e a xenofobia, que são blogues e alguns pseudo-sites noticiosos de activismo político dessa orientação ideológica, já não recebem nenhum financiamento público. Nenhuma.
Tudo junto, e perante a aparente inconsequência prática para Portugal e para os portugueses, e a indiferença que o assunto suscita à generalidade deles, por que motivo há quem eleja o pacto das migrações como um tema nuclear do debate mediático, semente de teorias da conspiração denunciando ameaças graves e iminentes, motivo para uma mobilização da população contra as elites que a governam, o equivalente para 2018 da ameaça do Glisofato de 2016?
Se calhar, a falta de capacidade para traduzir do Inglês...
Não tenhamos dúvidas que na raiz do movimento #MeToo estão situações de violência reais que não foram denunciadas em devido tempo por a denúncia acarretar para as vítimas um custo demasiado elevado para a reparação que lhes poderia ter proporcionado.
Mas as exigências de prova que a metodologia de denunciar um abuso sexual sem testemunhas ocorrido há tempo suficiente para eliminar qualquer possibilidade de ser investigado de modo a esclarecer se a denúncia é verdadeira ou falsa, que são nenhumas, só poderiam conduzir aonde conduziram: uma situação em que qualquer mulher mal intencionada pode denunciar qualquer homem que, pelo menos, tenha estado a sós com ela nalguma ocasião no passado de a ter assediado ou cometido um abuso sexual sobre ela, quer tenham tido qualquer tipo de contacto físico, quer não, quer qualquer eventual contacto físico tenha sido consentido, quer não, mesmo que a não ter sido consentido tivesse sido ele, e não ela, a vítima do abuso.
Isto não é um problema específico dos abusos sexuais, é um problema genérico de todos os crimes que são cometidos na intimidade e que só podem ser avaliados com base em provas testemunhais, que podem ser fantasiadas, quer por parte de quem acusa, quer pela de quem se defende. Não é um problema simples de resolver, e eu não sei como deveria ser resolvido, mas é um problema real.
E isto é um risco real que correm todos os homens que ficam a sós com uma mulher em qualquer circunstância, em qualquer lugar, do elevador do prédio ao gabinete de trabalho ou sala de reuniões. Se a mulher for desonesta e o quiser fazer, pode inventar uma denúncia de assédio ou mesmo de abuso sexual que ela poderá não conseguir provar mas que ele muito dificilmente terá possibilidade de provar ser falsa. No máximo poderá ser condenado em tribunal por abuso sexual com base no testemunho da queixosa, no mínimo a reputação do acusado é condenada à morte.
E a generalização de queixas de antigos atentados atentados à autodeterminação sexual das vítimas que constitui hoje em dia o movimento #MeToo é uma chacina de reputações, algumas que certamente mereciam se expostas, outras que não, outras que pelo contrário.
Wall Street é, apesar de albergar o que há quem pense serem os facínoras mais gananciosos do mundo, ou se calhar por isso mesmo, um local onde tem sido feito algum esforço por promover a ascensão de mais mulheres aos mais altos cargos de gestão das empresas cotadas, o que só demonstra inteligência da parte dos investidores que preferem mais mulheres a gerir as empresas onde arriscam as suas poupanças porque julgam que mais mulheres trarão melhor gestão às empresas e maior valorização dos seus investimentos. A ideologia de Wall Street não é o marxismo cultural, seja lá o que este termo possa designar, é a cultura da maximização do retorno do investimento.
Há fundos de investimento compostos exclusivamente por acções de empresas que têm mais mulheres nos Conselhos de Administração, e em 2017 foi mesmo eregida uma estátua com uma carga simbólica evidente de uma pequena mulher tão frágil quanto poderosa, a "Fearless Girl", a enfrentar o poder dos mercados, o "Charging Bull", que será brevemente mudada para junto da New York Stock Exchange.
Não por razões de ideologia do género, mas porque mais mulheres nos mercados financeiros potenciam melhor gestão e melhores retornos. Até agora.
Agora, para responder aos riscos incontroláveis em situações específicas colocados pelo movimento #MeToo que está "...creating a sense of walking on eggshells...", os Wall Street boys andam a adoptar informalmente regras de prudência como "No more dinners with female colleagues. Don’t sit next to them on flights. Book hotel rooms on different floors. Avoid one-on-one meetings", ou mesmo evitar recrutar mulheres por recrutar alguma se poder transformar num "unknown risk". Ou seja, a segregar as mulheres, tanto no trabalho do dia-a-dia e nos contactos profissionais como até nas oportunidades de emprego.
Por razões muito atendíveis. Por mais propensos ao risco que sejam habitualmente os Wall Street boys, é pior ter um prémio de gestão mais ambicioso por ter mulheres ao lado a contribuirem para melhorar os resultados das empresas mas poder acabar na cadeia do que ter um prémio de gestão mais modesto mas poder gastá-lo em liberdade.
Quem são então as vítimas finais do modo como se desenvolveu o movimento #MeToo? As mulheres. Podem agradecer a quem fez dele aquilo em que ele se tornou.
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