Aqui recuado, diz-me a IMDB, e já lá chegamos para explicar porque é a IMDB que mo diz, que no dia 23 de Outubro de 1999, numa tarde de sábado entrei numa loja da Avenida da Liberdade.
A loja era completamente dominada pela presença de uma espanhola à volta da qual tudo orbitava. Cinquentona, vistosa, com uma energia de cortar a respiração, palavra rápida como só as espanholas são capazes, a gesticular enquanto corria de escaparate em escaparate onde pegava em peças que despejava nas mãos de todos os funcionários da loja que a seguiam e se viam aflitos para dar vazão àquela jornada frenética. Quando finalmente parava eles despejavam as montanhas de roupa que carregavam no banco corrido que ocupava o centro da loja, onde estava sentado o único homem que parecia relativamente indiferente à presença da espanhola, e ela pegava numa mão-cheia de peças e ia experimentá-las para a cabine de prova, chamando de quando em quando o indiferente para dar uma opinião, e deixando a loja, os clientes e todos os funcionários em suspensão na acalmia que precede a tormenta, que recomeçava mal ela saía da cabine. Raramente ou mesmo nunca assisti a uma situação em que uma mulher foi fervorosamente seguida por uma multidão de homens prontos a beijar o chão que ela pisa, mas dificilmente arranjaria outro modo mais fiel do que isto para retratar aquela loja naquele dia. Resumindo, parecia uma mulher do Almodovar, uma força da natureza.
Num destes intervalos entre incursões da espanhola pelos escaparates lá consegui tratar do meu assunto, que era breve, e fui-me embora, e ela permaneceu e a loja a orbitar à volta dela.
Nesse serão fui ao Monumental ver o filme "Todo sobre mi madre" que tinha estreado justamente naquela sala na sexta, e é por isso que sei exactamente em que dia é que isto se passou. A espanhola que não tinha reconhecido na Calvin Klein era, está de ver, a Marisa Paredes, que tinha vindo a Lisboa para estar presente na estreia. Era mesmo uma mulher do Almodovar.
Isto para dizer que sim, a Avenida da Liberdade é para negros, é até de negros, e basta lá passar às horas em que não anda por lá o povo trabalhador para perceber quem mora lá ou lá se abastece, ainda que de vez em quando no meio dos milionários angolanos albergue discretamente políticos barrigudinhos que conseguem alugar por rendas catitas apartamentos de que se desfazem antes de suscitar a curiosidade dos jornalistas que, aliás, costumam ser muito pouco curiosos relativamente a eles. É para negros, é para mulheres do Almodovar, é para quem tem dinheiro. Só jornalistas muito distraídas não se apercebem disso, mas é verdade que há jornalistas muito distraídas.
Este ano fui para fora cá dentro. E, para encher os dias, fui ver o tesouro da Sé, que é mais tesouro do que imaginava; o castelo de S. Jorge, cuja porta não franqueei porque havia uma gigantesca fila de turistas à espera do privilégio de entrar para poderem dizer que lá tinham estado; ao palácio nacional de Queluz, onde contemplei a decadência e sujidade que com esplendor lá se guardam; aos Jerónimos, que continham mais visitantes a tirar selfies, a atrapalhar a circulação e a consultar com empenho os telemóveis do que alguma vez, no passado, monges – um Cristo moderno bem podia expulsar aquele lúmpen moderno de compralhões no templo, ao menos com o expediente de os fazer pagar bilhete; ao palácio Fronteira, fechado “para férias”, mas cujo aspecto exterior não me deixou uma irreprimível vontade de o ver por dentro; e ao “palácio” de Monserrate, por duas vezes, a primeira para bater com o nariz na porta por o concelho de Sintra, aparentemente, ter mais problemas de circulação automóvel que a cidade de Nova Iorque, o que me fez chegar tarde. Os jardins merecem a visita que o “palácio” não merece: não é um palácio, para começar, é uma folly em ponto grande; a decoração, de inspiração mourisca, é um exemplo daquela mania romântica de recrear espaços de civilizações perdidas, góticas, árabes ou orientais, e haverá decerto textos contemporâneos (que infelizmente não conheço) a classificar o exercício de um industrial inglês com a mania das grandezas por aquilo que era – uma piroseira, como são quase sempre os pastiches. De resto, o senhor D. Luís deu ao homem o título de visconde, e fez muito bem, porque Cook, que não deve ter sido meigo a explorar os miseráveis nas suas fábricas inglesas, no auge da Revolução Industrial, veio aliviar a sorte dos outros miseráveis que por aquele tempo habitavam aquelas serranias.
O “palácio” está despido de quase tudo o que continha, porque tudo foi leiloado nos anos 40, salvo erro, e parece que quem o administra tem a intenção de recomprar algumas coisas. Faz bem, é claro, como é claro que falhará: aqui como em todos os outros lados, nota-se uma terrível falta de dinheiro.
Ora isto é extraordinário. Portugal é um país pobre de monumentos, apesar dos seus 900 anos de história, mas precisamente por isso deveria estimar os que tem. E aqui, como em Mafra, ou nos castelos, conventos e igrejas espalhados pela província, o que salta à vista é uma confrangedora pelintrice.
O país é pobre, não pode? Tretas: de passagem, vi no Terreiro do Paço um cone com ar de chupa-chupa gigante, que me disseram ser uma árvore de Natal, e o resto do espaço estava obstruído com palcos, decerto para uns piolhosos irem para lá ganir umas musiquetas. É o mesmo, à escala, nos mais de 300 concelhos do país: subsídios à cultura da chupice, do espectáculo, do berreiro, dos artistas e das clientelas. E em todas estas coisas circula dinheiro público, o mesmo dinheiro que nunca há para conservar o património.
Talvez faça sentido: afinal a gente que vi nos Jerónimos, sem o menor vestígio de respeito pelo lugar, que ainda é de culto, ou de atenção pela arquitectura, que impressiona, é a que vota nos Marcelos ou Medinas desta vida.
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