O primeiro episódio do programa "Perdoa-me", da SIC.
No próximo episódio o ministro Pedro Nuno Santos vai pedir perdão aos eleitores por tratar da vidinha dele, da da mulher, e da das mulheres dos amigos ao mesmo tempo que se está cagando para as deles, apesar do o secretário de Estado garantir que em Londres ainda é muito pior.
A história conta-se em poucas palavras. Aos 22 anos V. filmou-se, ou deixou-se filmar, a ter relações sexuais. Depois casou e empregou-se, seguiu a vida. Aos 27 o filme apareceu nas redes sociais, talvez colocado pelo co-protagonista? e foi descoberto e começou a ser circulado pelos colegas da empresa, que cuidavam de apontar "é aquela ali". Ela assustou-se mas o mundo continuou a andar à roda (eu sou heliocentrista e tenho a convicção por razões da ciência da Mecânica que a Terra anda à roda num movimento de rotação sobre o eixo e não é o resto do universo que todos os dias anda à roda dela), até a cunhada, que também trabalhava na empresa, o ter visto e o ter ido mostrar ao irmão, o marido de V.. E V., com vergonha, suicidou-se.
Vamos não discutir se o facto de ainda haver gente com vergonha em pleno século XXI é uma excentricidade, porque a pior das pessoas com vergonha é melhor do que a melhor das que não a têm.
Que papel tiveram na morte dela o autor da publicação original do filme nas redes sociais e todos os que, por maldade ou galhofa, o fizeram divulgar até ele chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: mataram-na sem a bala ter saído da arma que todos lhe apontaram para a matar.
O que merecem?
[Aqui abro um parêntesis para opinar sobre justiça.
Não há ninguém mais exigente do que eu de rigor na prova para considerar legítimo condenar um criminoso. Lamento muito dizê-lo mas, apesar de estar convicto e sem a mais pequena sombra de dúvida que o ex-primeiro ministro socialista José Sócrates é um criminoso e de desejar a sua punição tanto quanto qualquer outra pessoa que considere a corrupção merecedora de condenação, necessito de informação muito mais sólida do que consegui ver publicada em todas as notícias publicadas pela comunicação social sobre o processo ao longo dos anos para me convencer que há provas suficientemente sólidas para o condenar. E sem provas prefiro que ele seja solto a que seja condenado para satisfazer o alarido da multidão e limpar uma imagem que a justiça acumulou ao longo de décadas, talvez com alguma justiça, de ser tolerante com os poderosos. E tenho até noção que há crimes quase impossíveis de provar com solidez, nomeadamente os que são cometidos em privado e que só são testemunhados pela vítima e o criminoso, como grande parte dos crimes sexuais e de violência doméstica, e que esta posição de princípio de algum modo pode dificultar ou mesmo impedir a aplicação de justiça nalguns desses crimes, mas é o meu princípio e não é daqueles que estou disponível para substituir se tiverem outros melhores. É pior punir um inocente do que deixar partir um criminoso, e não é apenas por ser injusto para o injustamente punido, é mesmo por, sinalizando que inocentes podem ser punidos em vez deles, a justiça incentivar os criminosos.
Já relativamente à graduação das penas sou mais medievo. O princípio "olho por olho, dente por dente" não é injusto, é justo. Não é justo cortar a mão a um ladrão, mas não é injusto cortá-la a quem cortou a mão a outro. Sou muito céptico relativamente à pena de morte mas não é por não considerar que determinado tipo de criminosos não a merece, mas pelo risco do erro judicial que qualquer cedência no princípio da exigência da prova torna possível. De resto, qualquer pena é irreperável. A de morte por motivos óbvios (eu também não acredito na ressurreição), mas qualquer dia encarcerado numa cela à espera de ser ouvido por um juiz ou qualquer dia de prisão preventiva à espera do julgamento e de uma possível condenação são irrecuperáveis como dias em liberdade, às vítimas ninguém os tira.]
Merecem, portanto, um processo justo em que se apure com todo o rigor se fizeram alguma coisa que tenha contribuido efectivamente para a morte de V., como partilhar o filme nas redes sociais, mostrá-lo aos colegas e amigos, deixá-la perceber que faziam do filme motivo de galhofa, fazê-lo chegar aonde, ao ter chegado, a induziu ao suicídio. Uns por dolo, outros por negligência, todos por cretinice. A gentleman never tells, e estes cretinos não passaram de filhos da puta.
E, se fizeram, merecem ser responsabilizados pela morte dela e, na impossibilidade de fazer justiça recorrendo a uma bomba de neutrões que os levasse todos para lhe fazerem companhia, como mereciam, é da mais elementar justiça serem condenados a penas de prisão, é ainda mais justo se foram internados na ala dos sodomitas, e realmente justo seria internarem-nos lá, filmarem-nos a serem sodomizados e publicarem os filmes nas redes sociais. Olho por olho, dente por dente. Mas levá-los a julgamento por terem partilhado o filme em vez de os deixar sair sem um arranhão depois de a terem matado de vergonha já não será muito mau, e está ao alcance da justiça e do enquadramento legal que lhe determina as competências.
Esta situação [divulgação de um filme privado que os participantes quereriam manter privado] tem alguma coisa em comum com com uma praga que nos últimos anos entrou a pés juntos no debate público, a divulgação de notícias falsas nas redes sociais para incutir opiniões e, em determinados casos, encorajar à acção quem as toma por verdadeiras. Que é o facto de quem o faz, ou quem defende que quem o faz não deva ser penalizado por fazê-lo, não estar a fazer mais do que dispôr da sua liberdade de expressão do modo que bem entende, divulgando mentiras ou o filme pornográfico da colega de trabalho, e a liberdade de expressão dever ser inalienável.
A liberdade de expressão é, se me perguntarem a minha opinião, inalienável.
Posto isto, que a divulgação de informações íntimas pode provocar danos graves às vítimas da devassa ficou mais do que provado no suicídio de V., e não seria sequer preciso um fim tão trágico para haver danos, qualquer pedido de divórcio, crise conjugal, arrufo ou até um não te convido para a minha festa em querendo ela ir à festa dele poderiam ser danos originados pela brincadeira, mesmo que fosse apenas parva e não mal intencionada.
A divulgação de notícias falsas também tem, e a de notícias que insinuam comportamentos tão censuráveis ou perigosos de grupos de cidadãos que pode encorajar outros a reagir contra eles, eventualmente de modo agressivo, pode ter consequências tão trágicas como, ou muito mais trágicas do que, o suicídio de V..
Tem havido atentados terroristas cometidos por gente, normalmente com pouca capacidade de discernimento e alguma predisposição para a violência, e há sempre gente assim em todo o lado, que foi radicalizada nas redes sociais através de notícias falsas que lhes incutiram a convicção que enfrentam ameaças graves, às vezes a convicção que estão no meio de uma guerra de civilizações de que os mais apáticos ou distraídos não se conseguem aperceber mas que eles e quem os informa sabem que está em curso, e que é vital reagir com determinação e urgência a essas ameaças para salvar alguém, eventualmente salvar a civilização.
Não sei o que é que os clérigos das mesquitas onde são radicalizados os novos terroristas islâmicos, os da vaga anterior eram filhos de família oriundos das teocracias do petróleo que viajavam em primeira classe ou de jacto privado, lhes dizem, que histórias lhes contam, como conseguem convencê-los que as pessoas que lhes propõem ou eles se predispõem a matar indiscriminadamente são uma ameaça que merece ser debelada, nem estou muito interessado em saber, mas certamente terão capacidade de os convencer com factos que elas merecem o destino que tiverem. Até porque não frequento mesquitas.
Não sei de que se convenciam uns aos outros os terroristas de extrema-esquerda de há umas décadas atrás, mas também passaria certamente por pintar as vítimas como a tal nível desumanas que era melhor eliminá-las do que não o fazer, mesmo que fossem bebés de colo que um dia poderiam crescer para se tornarem fascistas ou capitalistas. Até porque não frequentava círculos de activismo da extrema-esquerda nessas décadas.
Mas sei de alguns casos recentes de radicalização de terroristas a partir de pessoas normais através de notícias falsas devidamente enquadradas por interpretações sugeridas que os levam à conclusão que só mesmo a passagem à acção directa pode salvar alguém ou o mundo das ameaças que os convencem que são graves e iminentes. Até porque frequento as redes sociais e vejo circular notícias como as que os radicalizam. E até tenho deixado por aqui e por aqui algumas reflexões e preocupações sobre o fenómeno da disseminação de notícias falsas.
Alguns casos de radicalização chegam a ser cómicos, pelo menos para quem se consegue abstrair da tragédia em que podem terminar. Como o do pacato pai de família que a frequência de redes sociais da alt-right convenceu que a cave da pizzeria Comet Ping Pong em Washington era usada para encarcerar crianças por uma rede de pedofilia gerida por Hillary Clinton, o género de "história que os mainstream media escondem pelo que não vale a pena tentar confirmá-la nas notícias", e decidiu libertá-las, viajando 6 horas até Washington e entrando na pizzeria a disparar uma arma automática, para os entendidos uma AR-15, para os leigos uma espécie de G-3, felizmente sem ter atingido ninguém. Depois de se render pacificamente explicou que se tinha rendido por ter verificado que afinal não havia lá crianças presas. Exceptuando a descomunal falta de bom-senso requerida para alguém acreditar que era possível a secretária de Estado do governo americano dirigir uma rede de pedofilia e a facilidade assustadora de se deixar sugestionar ao extremo de criar uma convicção tão sólida sobre a autenticidade da situação imaginária que só a acção directa a poderia resolver, o autor do atentado podia até ser um pai de família decente que agiu na melhor das intenções acreditando estar a salvar crianças de um inferno. Mas transformou-se num terrorista, e podia ter feito inúmeras vítimas. E acabou condenado numa daquelas penas que nos EUA são para fazer doer. Deu cabo da vida dele, e da da família.
E que papel tiveram no atentado cometido por um cidadão que até nem tinha perfil de criminoso o autor da publicação original da notícia falsa nas redes sociais e todos os que a fizeram circular sustentada por argumentos que a faziam parecer sólida e à prova de dúvidas até ela chegar aonde chegou? O mesmo que tem num pelotão de fuzilamento o soldado a quem calha o cartucho vazio: cometeram-no sem as balas terem saído da arma que todos apontaram para o cometer.
E que legitimidade tinham eles para inventar e divulgar uma notícia falsa que fazia acreditar a quem a tomasse por verdadeira que no local do atentado havia vítimas que era necessário libertar? Toda. Todos, exercendo a sua liberdade de expressão, tinham legitimidade para divulgar a notícia falsa, acreditando nela ou não.
E como lidar então com as consequências que podem eventualmente resultar do acolhimento como credível de uma notícia falsa que os autores devem ter a liberdade de divulgar sem colocar em causa a liberdade de expressão? Responsabilizando-os pelas consequências.
Como o tribunal espanhol vai avaliar que papel e que responsabilidade tiveram os colegas de trabalho de V. na sua morte, e que punição criminal eventualmente poderá ser apropriada para os confrontar com essa responsabilidade, quem coloca no exercício da sua liberdade de expressão notícias falsas a circular também deve ser responsabilizável se elas eventualmente tiverem consequências más.
Liberdade e responsabilidade são dois conceitos sem os quais não queremos ser forçados a viver, mas que só têm sentido quando usados em conjunto. Um sem o outro é caminho certo para o disparate.
Calhou ouvir na SicN a entrevista do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais sobre a escandaleira de ontem. Os secretários desta pasta são desde há uns anos figuras invariavelmente sinistras, não tanto por uma qualquer inevitabilidade na natureza das funções mas porque no Fisco, mais do que em qualquer outra área, se constata o nível demencial a que chegou a estatização da vida em sociedade, até que ponto se tornou um Estado dentro do Estado, o carácter inquisitorial daquele departamento e, finalmente, a negação, em que hoje vivemos, do Estado de Direito. Negação tão gritante que o cidadão que calha ser apanhado, com boas ou más razões, na teia extorsionária do labirinto fiscal, ou paga se puder ou, se não puder, pode ver a sua vida transformada num inferno.
Isto é assim agora; e não era assim no tempo do Estado Novo, que respeitava as formas, a legalidade e a modéstia do Poder em tudo que não pusesse em causa o regime. Por exemplo, o exercício da liberdade de opinião podia pôr em causa o regime, e por isso não era tolerada; a organização corporativa e hierárquica da sociedade implicava um tipo de respeito pelas autoridades que hoje, felizmente, já não é exigido nem exigível; a população, sobre a escolha de quem a pastoreava, não tinha nada a dizer, nem periodicamente nem em momento algum; e as infracções ao perímetro de segurança das instituições, mesmo que apenas potenciais, mesmo que ligeiras, podiam acarretar consequências gravosas para a liberdade e até, em casos extremos, a vida.
Com estes caveats, porém, o Estado Novo era, fiscalmente, um estado de direito, coisa que o estado democrático, fiscalmente, não é.
Regressando à entrevista do SEAF, o homem (que diabo: precisava de ter uma barba mal amanhada e ser repugnantemente melífluo?) prometeu que estas acções policiais, naqueles termos, não se voltam a realizar; que a iniciativa não tinha sido decidida centralmente; e que vai ser feito um inquérito para saber o que se passou, mas que ninguém será punido porque os funcionários fiscais são inexcedíveis de zelo e dedicação. E não ficou claro, mas poderia ter ficado se os jornalistas não fossem canhestros, que a verdadeira razão porque o atropelo foi suspenso foi o clamor nas redes sociais; e qual o destino dos quatro autuados (dois, parece, por dívidas no âmbito da SCUTs ou lá o que é) que tiveram o azar de passar naquela rotunda à hora em que lá estavam os 20 (!) elementos da AT e os 10 (!) da GNR.
Sobre o abuso de a GNR mandar parar cidadãos não por qualquer razão ligada a segurança rodoviária ou por suspeita plausível da prática de crimes disse nada, como se a polícia tivesse o direito de genericamente imobilizar cidadãos para apurar se devem alguma coisa; sobre a penhora de veículos para pagamento de dívidas de valor substancialmente inferior moita carrasco, decerto por achar que o Estado não quer realmente os veículos, quer é exercer coacção, e portanto vale tudo; sobre a necessidade de as relações entre a autoridade tributária (a mudança de nome de Direcção-Geral das Contribuições e Impostos para Autoridade Tributária já indiciou o pendor autoritário que esta gente alberga na cabeça) se regularem pela lei e não pelo arbítrio e inspiração de um qualquer poder central, silêncio; e sobre o nº 3 do artº 268º da Constituição, decerto o senhor SEAF acha que a Constituição só poderia ter entrado em vigor se tivesse sido transcrita numa circular aos serviços que ele, ou os antecessores, tivesse assinado.
Sucede que a indignação que, como um rastilho, se espalhou nas redes, não tem razão de ser: já agora, e desde há muito, o Fisco (e não apenas o Fisco, também a Segurança Social) vai às contas bancárias, sem aviso porque se houvesse encontrava a conta desnatada, e pilha-as. E não adianta provar ao banco que a dívida (aliás, com frequência, imaginária, como se prova com a quantidade de vezes que o Estado perde em impugnações) está paga, tem que ser a autoridade a, com majestade e vagar, levantar o interdito.
Se levantar. Porque, quer a dívida exista, quer não exista, para a impugnar é preciso pagar ou apresentar garantias.
Isto é extraordinário: o cidadão ou a empresa acusados de serem caloteiros têm, primeiro, que pagar, dado que as garantias nem sempre existem ou, existindo, têm custos associados. Se tiverem meios para ir a tribunal (se não tiverem são pura e simplesmente esbulhados), e garantias para apresentar, nem sabem nem é possível saber quando e se obterão ganho de causa, o que leva anos. E, se obtiverem, têm ainda a via dolorosa de executar a sentença contra o mesmo Estado que não dá meios aos tribunais fiscais, daí os atrasos, e incentiva com prémios os seus funcionários a levantarem “autos de notícia” com ou sem fundamento são, e com frequência baseados em presunções delirantes. Todos, secretários de Estado, directores-gerais, inspectores, se felicitam ou são felicitados pelo resultado, medido pela quantidade de multas e volume das exacções. E o cidadão, que ignora isto, acorda espavorido com uma operação STOP numa rotunda em Valongo, como se o que lá se faz tenha alguma diferença, salvo ser na via pública, em relação ao que a AT faz todos os dias.
Quando o cidadão ou a empresa (e uma empresa são também cidadãos, coligados para um fim) são impedidos de se defender e perdem a fazenda, o caso é muito menos grave que a liberdade ou a vida. Mas é uma diferença de grau, não de essência: em ambos os casos as pessoas concretas que ocupam os lugares de comando político no Estado estão a defender os seus lugares, que ocupam ilegitimamente quando não são eleitos e que ocupam com duvidosa legitimidade quando, sendo eleitos, compram votos com distribuição de benefícios obtidos por pilhagem.
Estes abusos operam-se sob o piedoso mote de “combate à evasão fiscal” e o SEAF, na entrevista acima referida, não deixou de repetir o mantra, falsíssimo, de que se houver quem não pague os outros pagam mais, quando o que a experiência mostra é que pague quem pagar o que pagar, o Estado gasta sempre tudo, e mais; e insinuando que, se o Estado diz que o cidadão deve, então é porque deve, sem mais.
A força desta ideia, isto é, de que não há limites para o tal combate e em nome dele se podem atropelar todos os direitos, criar uma legislação impenetrável e volúvel, bafejar com estatuto de excepção os funcionários, e inverter o ónus da prova sempre que um deles, mesmo incompetente, mesmo ignorante do direito aplicável, mesmo sabendo de contabilidade apenas rudimentos, se lembre de inventar ilícitos, com a tranquila certeza de que, se uns anos volvidos o tribunal vier a dar razão ao ofendido, nem os prémios que tiver empochado serão restituídos nem o prestígio que tiver angariado junto das chefias sairá beliscado.
E o abismo em que, em nome da inveja e do ódio ao rico, já caímos, é tão fundo que até mesmo o meu partido, que a um tempo se considerou a si mesmo o partido dos contribuintes, nomeou para SEAF um militante que não reverteu um único dos abusos e criou um prémio de automóveis a sortear entre os contribuintes que se prestassem a ser fiscais civis do Fisco. Baldado esforço: não ganhou o respeito da esquerda por isso e perdeu o deste militante. Não devo ter sido o único.
O Estado Português não é fiscalmente legítimo, e quem lhe subscreve os processos merece o desprezo das pessoas de bem. O cidadão comum, claro, não acha isto, porque julga que beneficia. Até ao dia em que descobre que o socialismo é insaciável: tira aos outros para nos dar a nós até ao dia em que é à nossa porta que vem bater.
Já tenho ponderado dedicar uma série de artigos à defesa da família com que tempero as minhas concepções muito liberais dos costumes, e poucas vezes tenho visto nestes já 62 anos de vida defender a família com a determinação comovente, quase obsessão, com que o PS que hoje está defende as famílias dos seus.
Mas para evitar meter-me num assunto que depois é tão vasto que dificilmente conseguiria estar à altura de dar conta do recado mesmo que não fizesse mais nada para além de escrevinhar neste blogue, tenho-me refreado. Por outro lado sei que, refreando-me, cometo uma injustiça por omissão.
Vou hoje, a título de excepção, homenagear uma família socialista e, nela, todas as famílias socialistas.
O marido da vice-governadora do Banco de Portugal que diz que o dinheiro do Estado é do PS participou no grande assalto à CGD e é presidente da CCDR Norte.
Deixo aqui a minha singela mas sentida homenagem a esta encantadora família.
* Fotografia roubada à revista Caras
O eleitorado borrifou-se para as eleições europeias: não sabia quem eram os candidatos, quem eram os deputados que lá estavam, o que fizeram, e o que vão fazer estes agora eleitos. Sabe difusamente que ganham bem; e que nenhum dos futuros deputados é contra a Europa dos subsídios. A Europa dos subsídios é boa, como é a dos empregos quando falham aqui, a dos empregos mais bem pagos quando aqui são mal, e, para a juventude, o Erasmus. O Euro deixou de ser assunto porque criou a sua própria realidade: agrada à direita porque obriga a disciplina orçamental; agrada ao PS porque, fazendo da necessidade força, descobriu que mesmo com ele e a disciplina a que obriga pode ganhar eleições; agrada ao eleitor porque tem no bolso a mesma moeda que o alemão ou o francês; e, desagradando ao Bloco, e mais ainda ao PCP, nenhum dos dois quer, por razões tácticas, insistir num cavalo perdedor, sendo que o Bloco, por estar a caminho do poder efectivo, tende a ser cada vez mais europeísta e institucional, guardando o esquerdismo para as cores do arco-íris.
Não havendo nada para discutir sobre o “parlamento” europeu, discutiram-se as trincas caseiras. Mas nenhum dos candidatos o era para governar, e todos foram eco das posições dos respectivos partidos sobre a governação do país, razão pela qual o que estava em jogo era apenas uma mega-sondagem. À qual os consultados, à altura de quase 70% (provavelmente menos: ninguém afiança que os cadernos eleitorais estejam expurgados de mortos. O que é estranho, num país onde a máquina do Estado, se quiser, pode apurar quantas pessoas sofrem de hemorroidal, mas não é capaz de actualizar a lista de cidadãos eleitores) disseram não querer responder.
O PCP continua a perder eleitores (quase 200.000), e o herdeiro natural dos votos perdidos é o Bloco. Entende-se: as posições do PCP dentro da geringonça mal se têm distinguido das do Bloco. Como as credenciais democráticas dos comunistas inexistem, e as bloquistas parecem existir, além do que tem uma retórica mais moderna, fracturante e flexível, ao PCP restaria ser o depositário da esperança de uma sociedade alternativa. Se tudo o que tem para oferecer é o apoio a funcionários públicos e pensionistas, agora que até os sindicatos se atrevem a ignorá-los porque sabem que no essencial o PCP está amarrado ao que o governo decide, votar comunista não vale a pena. A actual direcção do PCP fez um gambito errado, que o partido seguiu por causa do centralismo “democrático”. E só não é garantido o abençoado enterro desta associação de malfeitores porque não é impossível que mudem de orientação, sobretudo se uma futura geringonça incluir o Bloco no governo mas não o PCP (se incluísse também o PCP, o suicídio confirmar-se-ia – comunistas não resistem a experiências governamentais, a menos que liquidem os compagnons, a democracia e a alternância).
Nem o PSD nem o CDS perderam votos em relação a 2014 (pelo contrário, ganharam um pouco mais de 20.000; se incluirmos a Aliança, o Chega e a IL, que presumivelmente integravam a PàF, o ganho é de cerca de 144.000). Porém, a base de cálculo é diferente porque há quase um milhão de novos eleitores. Donde, a chamada direita teve uma clara derrota.
Que fazer com a derrota? O que há a fazer é evidente, já que os eleitores que faltam para derrubar a situação estão em casa, pelo que é preciso ir lá buscá-los.
O busílis é como. Rui Rio, no inacreditável discurso de derrota da noite eleitoral, disse isto: estou convencido de que, se fizer mais do mesmo, o eleitorado que agora me mandou bugiar mudará de opinião daqui a três meses. O homem é teimoso, mas nem ele acreditará numa tese destas, pelo que, traduzindo, afirmou que conta perder as eleições legislativas mas ir para o governo na posição de sócio júnior, fazendo então as reformas de que o país precisa, com o amigo Costa.
Costa, porém, não sabe o que são reformas, mas sabe o que lhe convém para preservar o seu couro político. Fará portanto as alianças que forem necessárias para continuar a andar de carro com motorista e ter o poder de distribuir lugares no aparelho de Estado. E como, na sua abissal ignorância sobre o que conviria fazer para pôr o país a crescer seriamente, guarda instintos de esquerda, preferirá alianças com as maluquinhas do Bloco ou os comedores de tofu do PAN, caso em que, de reformas, podemos contar com a extinção das touradas, a modificação dos menus das cantinas escolares e o reforço da agenda LGBTI nos manuais do ensino.
Se viesse a aliar-se, por um bambúrrio qualquer do destino eleitoral, com Rio, é provável que alinhasse na loucura da regionalização que, longe de diminuir o peso do Estado, aproximaria este do cidadão, mas em veste da multiplicação de terreiros do Paço pelo país, de tiranetes pela província, e de publicanos a esmifrar o que resta de rendimento disponível.
Os eleitores que ficaram em casa poucas razões terão portanto para se incomodarem a dar o seu voto ao PSD nas legislativas. E no CDS?
Este partido nunca ganhou eleições e nasceu tarde para acaparar lugares no aparelho de Estado – já estavam ocupados. Quando chegou ao governo, foi como ancilar do PSD. Desde que Rio elegeu, como potencial aliado, o PS, o papel do CDS deveria ser falar, além do seu eleitorado tradicional (católicos, social-democratas que se autodescrevem como democratas-cristãos, conservadores, liberais e reaccionários sortidos) àquele do PSD que Rio desamparou.
Fez isso, mas sem consistência e com uma pecha triunfalista (nós vamos ultrapassar o PSD) que nem era realista nem podia cair bem. E ao mesmo tempo, como uma galinha sem cabeça, desatou a correr atrás de todas as causas em que houvesse descontentes, tomando-lhes as dores sem cuidar de saber que quaisquer posições, para serem credíveis, precisam de ter, antes de mais, autenticidade. Foi o caso com os professores: o CDS não pode, na oposição, defender coisas diferentes das que defenderia se fosse governo, porque o eleitorado não engole a patranha.
No lamber das feridas, é provável que as várias capelas dentro dos partidos derrotados reivindiquem para si a exclusão das outras, com o propósito de ganhar eleitores com consistência e unidade de propósitos. Puro engano: aos partidos de poder a consistência e unidade são fornecidas pela direcção, que todavia exclui da decisão sem excluir do partido – as tendências fazem parte da vida dos partidos que querem ser grandes. E é também seguro que as novas franjas de eleitores, sobretudo a miudagem que chegou hoje ao voto e traz a cabeça formatada pelas tretas do ambiente e da salvação do planeta, precisam de uma resposta. Mas essa resposta, mesmo que não muito convincente, não pode ser a mesma da esquerda, que consiste em mais leis, mais organismos, mais propaganda e mais despesa pública. Porque, nisto como no resto, o eleitor prefere os originais aos sucedâneos.
Nada mudará, provavelmente, nos três meses que faltam até às legislativas. E não é impossível que a provável vitória do PS se venha a revelar pírrica, porque o aparelho de Estado está anquilosado por falta de investimento de manutenção, a economia não cresce senão em doses minúsculas, o Estado Social dá mostras de esgotamento, e as contas públicas não melhoraram a ponto de se poder dizer que o país está preparado para resistir a uma crise.
Talvez portanto esta derrota seja menos má do que parece, porque da introspecção que vai provocar pode nascer uma melhor direita. Uma que ache que é possível demonstrar ao eleitor que se pode fazer melhor não com versões diferentes das mesmas políticas mas com políticas alternativas; e que, tendo desaparecido das análises políticas a maioria sociológica de esquerda, mas não tendo desaparecido da realidade nem do grosso das mensagens subliminares da comunicação social, e sendo a lei eleitoral o que é, o melhor caminho para quem tenha saudades do futuro é a reedição da PàF.
Não com Rio, que é um cadáver adiado; mas decerto com a Iniciativa Liberal, e talvez com a Aliança.
Anda por aí um movimento (o 5.7), que voluntariamente submergiu durante a campanha. Que reemerja, porque esse é o caminho.
O PSD e o CDS, que constituem o que em Portugal se chama “a direita” não são hoje, nem poderiam ser, o que eram quando nasceram. O primeiro nasceu para impedir que o revanchismo anti Velha Senhora descambasse numa Cuba europeia; e o segundo para atrair franjas de antigos situacionistas, católicos de vária pinta, embriões de liberais e reaccionários sortidos que convinha arregimentar a benefício do jogo democrático. Mas a Velha Senhora já quase ninguém a viveu e conheceu; e o que hoje se descreve como extrema-direita, entre nós e no exterior, nem remotamente põe em causa o regime democrático, apenas defende soluções públicas que não agradam ao complexo jornalístico-situacionista actual, feito de um socialismo mole regado a impostagens absurdamente altas, engenharias sociais fracturantes, Estados obesos, clientelas imensas e dirigismos bem-pensantes.
Para quem não viveu, é difícil imaginar as circunstâncias deste parto e as juras, sentidas ou hipócritas, que foi preciso fazer, sobretudo o CDS, de respeito pela democracia socialista, pela revolução de Abril e os seus capitães e, finalmente, pela Constituição que consagrou a sociedade sem classes. A qual, aliás, o CDS, com a coragem e coerência que o PSD não teve, não aprovou. Hoje, semelhante destino colectivo apenas permanece no preâmbulo, que os sucessivos revisores constitucionais deixaram incólume.
Esta ternurenta preservação, em que pese aos realistas que entendem que, por não ter conteúdo jurídico substantivo, é inócua, é pelo contrário sintomática: indicia o pecado original de o nosso xadrez partidário ter sido inquinado pela defesa do socialismo.
Mas foi, e está. A sociedade portuguesa actual, no score eleitoral absurdo de comunistas e radicais de esquerda, na promiscuidade do Poder com o grande capitalismo, na esmagadora camisa de forças regulatória, fiscal e interventiva que atrapalha o pequeno, e na opressiva opinião publicada ou televisionada, ainda é tributária dos primeiros anos do regime e do papel que então coube ao PS de partido-charneira.
É certo que o mesmo PS que arrastou sempre os pés para rever a Constituição, aceitando a cada nova revisão o que rejeitou na anterior, evoluiu recentemente para o respeito das contas públicas equilibradas. Uma cambalhota que contradiz o passado, as promessas eleitorais, e as profissões de fé no efeito multiplicador da despesa pública. Com isso roubou o principal capital político do PSD tradicional, reduzindo-se agora a destrinça a questões adjectivas de diferenças de carácter e de propaganda (Costa mente com facilidade e naturalidade, e conta com uma comunicação social atenta, veneradora e obrigada), rigor de contas (boa parte do alegado sucesso de Centeno assenta no empurrar de problemas para o próximo governo, quando não vindouros mais longínquos), grau de nepotismo (a colonização do aparelho de Estado por familiares e amigos atingiu com o PS níveis sem precedentes) e pouco mais.
É certo que o PSD de Rio não é o mesmo de Passos Coelho. E não é decerto um acaso o ódio virulento e persistente que a esquerda em peso dedica a Passos, e se manifesta sempre que este emerge do silencioso exílio a que com dignidade se remeteu. Passos, aliás, abundou nos idos de 2011 em declarações de índole liberal, defendeu a certo ponto, para geral escândalo, a revisão da Constituição, e deu provas como governante de não se impressionar com bonzos do capitalismo caseiro. É certo que nada ou quase fez pela reforma do Estado, mas não sabemos se no apertado colete de forças da troica havia espaço, tempo e imaginação para reformar fosse o que fosse, donde se lhe deu o benefício da dúvida. Além do que a reforma do Estado tropeça sempre nas imensas clientelas a ofender, numa opinião publicada hostil, e numa opinião pública formatada na dependência do Estado.
Passos, porém, e o PSD de Passos e Morgado, não são candidatos nestas eleições nem, presumivelmente, nas próximas – Rio sim. E, admitindo que as sondagens têm um mínimo de credibilidade (que um máximo não têm, estou certo), compreende-se que o eleitorado, que é conservador, não vá correr atrás de um socialista novo quando tem um velho à mão, que já deu provas (mais retóricas do que reais, mas a retórica conta) de se preocupar com os pobres. Razões por que, se eu fosse laranjinha, orientava desta vez o meu voto para um valor menos duvidoso, já que melhor do mesmo não chega – é preciso outra coisa.
Na outra coisa há agora a Iniciativa Liberal, que a comunicação social tem com zelo ignorado, como não ignorava o Bloco nos seus primórdios. Sucede porém que a IL, se arrebanha parte do que melhor há à direita, tem a liberdade de não se preocupar com a exequibilidade do seu programa porque realisticamente sabe que não chega a poder executá-lo. Portanto, o seu natural objectivo é difundir as boas ideias lá no terreno onde elas podem medrar, isto é, com certeza o CDS e em parte o PSD. As eleições são instrumentais para este mais do que legítimo propósito.
Na Iniciativa Liberal não está ninguém que conheça e de quem verdadeiramente não goste, e conheço muitos, e moram muitas ideias que subscrevo. E no CDS não apenas há gente por quem não morro de amores, como há ideias, e algumas práticas, no passado e no presente, que de liberal têm nada, e de fradesco ou social-democrata muito.
Resta todavia que a boa direita sempre morou no CDS, ou num PSD que agora está em banho-maria. E o país, que já perdeu muito por não lhe ter dado mais força, não tem nada a ganhar em enfraquecê-lo. A Iniciativa Liberal atrai, mas é como a amante nova, jovem, álacre e um pouco destravada – trocá-la pela legítima não é exactamente a melhor coisa que um conservador pode fazer.
Razões por que, no domingo, voto CDS.
PS: Não falo da Europa para não dar a impressão que levo a sério a ficção das eleições europeias. Estas eleições são uma sondagem em ponto grande. A mim basta-me para escolher.
O vice-chanceler austríaco Heinz-Christian Strache, do Partido da Liberdade considerado populista de extrema-direita, demitiu-se, ou foi forçado a demitir-se, todos sabemos como os cordões sanitários são importantes na política, por ter sido apanhado numa gravação a propôr a um investidor russo a garantia de adjudicações de obras públicas desde que ele se disponibilizasse para adquirir o controlo accionista de um jornal e lhe alterasse a linha editorial para passar a apoiar o governo e "build a media landscape like Orban".
E a primeira dificuldade em sair deste primeiro parágrafo é a renitência de alguns, mais especificamente dos populistas de extrema-direita, em aceitar a classificação de populistas de extrema-direita. Enquanto extremistas como, por exemplo, os comunistas, se orgulham da sua orientação ideológica, e para muitos não há mesmo maior honra do que ser sepultado com a bandeira do Partido a cobrir o caixão, os populistas de extrema-direita parecem ter vergonha e ressentem-se de serem classificados assim, e estão normalmente dispostos a encetar discussões infindáveis para desmentir a classificação, que passam sempre pelo argumento que para os socialistas qualquer posição que não esteja de acordo com a deles é populista de extrema-direita.
A parte do populismo é de facto fácil de pôr em dúvida, porque qualquer definição de populismo passa pelo menos, para além da denúncia das elites corruptas instaladas no sistema, pela sua assumpção como um movimento de revolta das bases contra as elites, e os populismos são esmagadoramente liderados por clãs. Os Trump, os Bolsonaro, os Le Pen. Curiosamente, como os comunismos. Os Kim, os Castro, os dos Santos.
Mas abstraindo esse detalhe que põe em causa que os populismos liderados por elites sejam mesmo movimentos de bases, os populismos são fáceis de identificar, e toda a gente os identifica bem desde que não se perca a discutir a definição.
Já a parte da extrema-direita, que os revolta ainda mais por se considerarem a eles próprios no centro, no meio do povo, é mais fácil de demonstrar, até geometricamente. Se alguém considera todos os outros de esquerda está obrigatoriamente a olhar para eles da extremidade direita. Se um português vê socialistas em, para além dos partidos da extrema-esquerda incluindo o BE, do comunismo clássico do PCP, do socialismo dito democrático do PS, também na social-democracia mais ou menos liberal do PSD e do conservadorismo mais ou menos centrista do CDS, só pode estar à direita deles todos, só pode estar na extrema-direita.
O termo "populismo de extrema-direita" tem ainda uma vantagem apreciável que favorece a sua utilização, pelo menos coloquial. Independentemente de descrever fielmente ou não as características de quem refere, identifica muito bem quem refere. Quando se fala de populistas de extrema-direita toda a gente percebe de quem se está a falar, pelo que, independentemente de eles serem ou não populistas de extrema-direita, o termo tem precisão quanto baste para ser útil para os identificar.
Resignemo-nos então ao incómodo que lhes causa serem identificados como populistas de extrema-direita, e continuemos.
O que têm então de diferente os populistas de extrema-direita austríacos que foram apanhados em flagrante a propôr um esquema de corrupção a investidores russos dos populistas de extrema-direita franceses que não foram?
O exercício de funções executivas e o consequente acesso ao desvio de dinheiros públicos para benefício próprio. Os Le Pen estão na política há décadas, são talvez dos políticos franceses que estão há mais tempo instalados na política, mas nunca tiveram oportunidade, também pela exigência do sistema eleitoral francês, de ocupar funções executivas. Estão há décadas em todos os tipos de parlamento, dos locais ao europeu, mas nunca estiveram em maioria nem governaram.
Porque o sentido de ética, esse, foi sendo aferido ao longo da carreira política do clã, à medida das oportunidades que lhe foram sendo colocadas. Se nunca esteve em posição de adjudicar obras públicas, já esteve em posição de contratar assessores parlamentares ou de votar estando ausente do parlamento. E nunca se desviou de um padrão bem definido. Marine Le Pen contratou como assistentes parlamentares com o salário pago pelo Parlamento Europeu, ou pelos contribuintes europeus, que o Parlamento Europeu não dispõe de dinheiro que não seja deles, funcionários do partido a fazer trabalho para o partido, e por isso foi condenada pelo Tribunal Europeu ao reembolso de €298,497.87. O pai Jean-Marie Le Pen, e um clã é um clã, foi por seu lado condenado a pagar mais de 320 mil € pelos mesmos motivos. Quem sai aos seus não degenera. Marine Le Pen foi também apanhada num esquema de falsificação de votações no Parlamento Europeu onde depois de ela se ausentar o seu voto foi usado pelo colega de bancada holandês Marcel de Graaff.
Estes pecadilhos, mesmo assim envolvendo somas consideráveis de dinheiro, são tão graves como a promessa de adjudicação de obras públicas a troco de um favorecimento do partido do governante? Não, nem de perto. Mas podem ser o melhor que se consegue arranjar para um político corrupto que ainda não teve oportunidade de, ocupando funções executivas, subir de divisão para a grande corrupção. São um bom preditor do que fará o ladrão, uma vez lhe seja dada a ocasião.
E isto distingue em alguma coisa populistas de extrema-direita corruptos de políticos do sistema igualmente corruptos que também usaram dinheiro público para comprar jornais e canais de televisão, e também enriqueceram graças a gorjetas generosas por adjudicações de obras públicas? Não. Como a divisão do poder entre membros de clãs não distingue em nada os clãs de familiares de populistas de extrema-direita dos clãs de familiares, colegas de curso e de partido de políticos que já são do sistema. Como a recusa em fornecer informações a entidades de investigação independentes do executivo não distingue o boicote de Donald Trump às investigações às suas finanças pessoais ou às suas ligações com o governo russo do boicote de António Costa a fornecer às comissões parlamentares de inquérito informações sobre os créditos concedidos a amigos pelas gestões socialistas da CGD. Como a tentativa de capturar o controlo do sistema judicial, que pode facilitar tanto a vida a políticos corruptos, não distingue em nada governos populistas de extrema-direita como o de Viktor Orban de governos de partidos do sistema como o de António Costa. Políticos corruptos são políticos corruptos, qualquer que seja a sua orientação ideológica.
Mas este é justamente o ponto. Quando uma força política populista se afirma através da denúncia da falta de ética dos políticos do sistema, e há muitos com falta de ética, insinuando que têm todos falta de ética, já isto é uma falsidade absoluta, há que olhar muito bem para ela para lhe avaliar os sinais do seu próprio sentido de ética, descontar-lhe o facto de nunca ter sido posta à prova com oportunidades de praticar grande corrupção como eles foram, e perceber se tem um percurso de pequena corrupção, ou de suspeitas, ou de nepotismo, ou de recusa de cooperação com investigações independentes, ou de resistência à separação de poderes. Porque há grandes probabilidades de essa força, se acumular algum destes indícios, ser tão corrupta como os mais corruptos dos que já chegaram antes ao sistema e tiveram a oportunidade de demonstrar que são.
A palavra mais discutível no título não é afinal "populismo" nem "extrema-direita". É "ética".
A 200 metros do meu portão passa uma ciclovia, agora ligada à, já antiga, que vai até Fafe, utilizando a quase totalidade do leito do caminho de ferro que foi desactivado em 1986 e que estava ao serviço desde 1907.
O novo troço foi inaugurado em Setembro do ano passado, com a devida solenidade, isto é, presumo, com o discurso de circunstância da nulidade que sobraça(va) a pasta dos transportes e as eructações aldeãs do edil local.
“O objetivo desta intervenção é generalizar o uso da bicicleta na vida quotidiana dos vimaranenses, transformando-a num meio de transporte e não somente num veículo de lazer ou de desporto”, diz a notícia e pensam decerto as luminárias que promovem estas modernices.
Anteontem, com um sol radioso, fui investigar e caminhei por um pouco mais de 6 km, isto é, até à actual estação ferroviária de Guimarães, onde hoje acaba a linha que vem do Porto. É um bonito passeio porque não houve ainda tempo de poluir a paisagem – a linha estava protegida por uma zona non aedificandi e não havia particular apetência para construir perto do barulho e fumarada dos comboios. Veem-se, a nível quase sempre inferior porque o trajecto é numa encosta, novas urbanizações, geralmente com prédios abomináveis à la Souto Moura, mas sem bandalheiras e lixo no entorno, e com acessos e parques de estacionamento razoáveis.
A novel pista tem um piso impecável, irrepreensivelmente pintado num bonito bordeaux, com sinalética esclarecedora e abundante, e postes de iluminação negros, de design contido. O alcatrão acaba em guias de ferro discretíssimas e bem colocadas, as bermas têm largura uniforme e uma cuidada gravilha. Em suma, a execução é excelente.
A meio, parei numa esplanada de um café moderno, para um sumo de laranja que não havia, substituído por um fino de cerveja morta, um lanche ressequido e dois cigarros.
Quer dizer que o passeio durou pr’aí uma hora e meia. E neste espaço de tempo, a meio da tarde de um dia esplendoroso, vi três ciclistas.
A ideia de que numa cidade onde é tudo a subir e a descer, onde nos longos meses de Inverno faz um frio de rachar não tanto porque as temperaturas sejam muito baixas mas porque há vento e chuva, e onde no Verão as temperaturas sobem acima dos 30º, possa haver um número significativo de pessoas que abandonem o carro, ou a motoreta, ou os transportes colectivos, a benefício da mitificada bicicleta, é um absurdo.
Absurdo que só se explica porque correm rios de dinheiro da Europa nos cofres municipais, e fortes correntes de ar pejado de alucinogénios entre as orelhas dos autarcas.
Estas brincadeiras custam milhões. Os milhões que não existem para coisas tão simples como tampas de saneamento à face dos pisos das estradas e arruamentos, e não salientes ou afundadas, ou acessos decentes e bem mantidos a zonas residenciais ou industriais. Isto numa longa lista de aplicações alternativas socialmente mais úteis de recursos públicos, mesmo dando de barato (eu não dou, mas não é disso que aqui trato) que diminuir impostos não é razoável e que a União Europeia é tão estúpida, e a nossa diplomacia tão impotente, que dinheiro só há para torrar em fantasias.
É de fantasias que se trata: jamais a população aceitará, se tiver outro remédio, que a medida do progresso é a deslocação por tracção animal, que tinha ficado lá atrás, até meados do séc. XX. E por muitos partidos verdes ejaculando propaganda pró-ambiente de China maoísta, injunções de médicos fascistas que esqueceram o juramento de Hipócrates para o trocar pela engenharia de costumes sadios, e esquerdistas sortidos que não descansam enquanto não construírem um homem novo, o raio da pista continuará deserta.
Estranho caso: A certo ponto quase toda a gente concordou que a construção das autoestradas sem tráfego assinalável foi uma malbaratação de recursos, e que as externalidades positivas foram uma invenção de políticos venais ou inconscientes. À escala local, as ciclovias não são um escândalo menor. Abençoado embora por quanto idiota sabe, melhor do que as pessoas, o que a elas convém, e ainda que as mesmas pessoas, por julgarem que o dinheiro não lhes sai do bolso, achem que as ciclovias são uma óptima ideia – para os outros.
Quando fiz um MBA na Universidade Nova de Lisboa no milénio passado o professor José Neves Adelino disse numa aula de Finanças uma frase de que nunca me esqueci, ao longo da vida vamos guardando frases de que nunca nos esquecemos e para mim esta foi uma delas, "quando os gestores não se conseguem justificar um investimento que querem fazer aprovar através de números defendem-no dizendo que é estratégico".
Em decisões de investimento "estratégico" é a palavra mágica que cala qualquer oposição ou sequer dúvida. Tal como, incapazes de recorrer a uma verborreia cheia de palavras como "orgânico", "telúrico" ou "estruturante", temos vergonha de mostrar que não percebemos uma instalação de arte moderna, ou arquitectura já que estou com a mão na massa, dizendo que não vemos ali arte, mas merda, também temos vergonha de não estar à altura de entender o pensamento estratégico que sustenta uma decisão de investimento pelo que, para evitar passarmos por parolos, nos calamos prudentemente. O que é estratégico é para aprovar.
Vem isto a propósito das declarações recentes do professor, chamemos-lhe assim, Fernando Teixeira dos Santos, explicando o episódio Berardo como uma consequência natural da estratégia dos "centros de decisão nacional" que orientou muito do pensamento de política económica português nas últimas décadas, e intensamente o dos governos Sócrates de que ele foi membro.
O professor Fernando Teixeira dos Santos será avaliado pela história a partir de muitos pontos de vista contraditórios e não sei, nem me interessa por aí além, qual deles prevalecerá. O financeiro que sustentou até ao fim os governos corruptos de José Sócrates, ou o herói que desencadeou no último minuto o pedido de assistência financeira à revelia e contra a vontade e a ira do comandante? A minha impressão pessoal, que vale o que vale, é que ele não deverá ter sido menos honesto que o antecessor mas, ao contrário deste que se levantou sem tocar no prato logo que se apercebeu da qualidade das matérias-primas usadas na cozinha, teve estômago para ficar na mesa até ao fim e sofreu as consequências de sucessivas gastroenterites até se tornar insuportável aguentá-las e chamar o 112. De qualquer modo tem, como testemunha desses tempos, a qualidade inegável do conhecimento directo de os ter vivido por dentro do núcleo mais duro que os conduziu.
Eu já me tinha aqui dedicado a apelar a que se olhasse para o caso Berardo com distância suficiente para perceber o quadro mais completo em vez de se ficar preso no detalhe que alimenta o populismo fácil dos "quando se deve mil tem-se um problema, quando se deve um milhão o banco tem um problema", "os ricos safam-se sempre", "rouba e ainda goza com o pagode", contextualizando o papel que ele desempenhou no projecto montado pelo governo Sócrates de assumir o controlo da gestão do BCP sem o nacionalizar.
Teixeira dos Santos abre ainda um bocado mais o zoom e explica, e bem, que a conquista do controlo da gestão do BCP pelo PS não deve também ser apenas vista como um mero golpe de um grupo de fora-da-lei aparentemente dentro da lei para dominar uma instituição financeira com capacidade para desviar dinheiro para projectos de investimento "amigos", ou "de amigos", mas como uma peça de um projecto mais largo que estava no núcleo da política económica do governo Sócrates, o da defesa dos centros de decisão nacional nos sectores estratégicos da economia.
Vale a pena registar algumas frases carregadas de objectividade que contextualizam os Berardo, como "Não nos podemos esquecer do que há 20 anos se tornou quase um paradigma, pelo menos entre as elites bem pensantes económicas, que achavam que precisávamos de ter centros de decisão nacional ... Foi esta ideia de os bancos arranjarem empresários portugueses que personificassem estes tais centros de decisão nacional e de os financiarem para que pudessem existir que está na raiz do que se tem assistido com a CGD". Ou até um olhar lúcido sobre a profundidade da crise como "Tivemos um capitalismo próprio sem capital próprio ... Com a crise todo esse status quo foi abalado".
Da política económica do governo Sócrates e, de facto, da filosofia económica do Socialismo, quer na forma clássica e fundamentalista do Comunismo Soviético, quer na forma mais moderna e manhosa do Socialismo Democrático. Que bebem a inspiração do princípio comum e o interpretam por caminhos diferentes.
Na primeira o controlo dos sectores estratégicos só pode ser garantido pelo Estado, sendo que o partido assegura, por seu lado, o controlo do Estado, o que significa que o controlo dos sectores estratégicos é exercido pelo partido, e como não há nenhuma alternância política este controlo é estável.
Na segunda pode ser aceitável a existência de sectores estratégicos no sector privado, ainda que volta e meia socialistas menos sofisticados se distraiam e exijam a sua nacionalização, e o seu controlo deve ser garantido através da colocação de socialistas na gestão desses sectores, o que lhes garante alguma estabilidade de manutenção dos sectores em boas mãos mesmo quando o ciclo político lhes é adverso e o governo cai em más mãos. E de algum modo comprova a estupidez dos que berram pela nacionalização mesmo depois de ouvirem o hino da CGTP horas a fio para acalmarem a sua ira revolucionária perante um mundo que nem sempre a segue: os Constâncio vão-se com as mudanças de ciclo político mas os Mexia perduram.
Para atalhar conclusões, não nos fiquemos por atribuir o caso Berardo, que é trágico, não por ele se rir, mas por nos sair do bolso a todos, à chico-espertice do próprio, apesar de ela ser real, não nos fiquemos também por atribuí-lo à chico-espertice de um partido corrupto e de um governo corrupto que o utilizaram para concretizar um plano corrupto, apesar de também ela ser real, mas percebamos que a ocasião que faz o ladrão é a intervenção do Estado na economia, e essa está na raiz de todo o pensamento económico socialista, qualquer que seja a versão do socialismo em execução.
Não querem Berardos? Retirem o Estado da economia.
O Patriarcado de Lisboa partilhou nas redes sociais um quadro elaborado por uma associação de direito à vida, a Federação Portuguesa pela Vida, que resumia a posição dos diversos partidos face a diversos temas da "ideologia de género", incluindo o aborto, a eutanásia, as barrigas de aluguer, a prostituição e a liberdade de educação, e apelando ao voto nas eleições para o Parlamento Europeu nos partidos que defendem a vida, ou seja, que são pela criminalização do aborto e da eutanásia, e talvez as outras. Mais tarde retirou a publicação e classificou-a como uma imprudência, ou por ter ponderado que a recomendação incluía algum partido em cujas posições o Patriarcado não se revê, ou por preferir manter-se acima da luta política abstendo-se de fazer recomendações de voto.
Não é a primeira vez que a Igreja faz recomendações de voto em eleições.
Nas primeiras eleições a seguir ao 25 de Abril, realizadas em 25 de Abril de 1975 para eleger a Assembleia Constituinte, o pároco de uma pequena paróquia no Alto Minho ponderou que o melhor voto dos seus paroquianos devia ser no CDS, e na missa que antecedeu as eleições comunicou-lhes essa recomendação.
Mas fez mais, sendo uma paróquia com uma elevada proporção de gente de idade e analfabeta decidiu ajudá-los a localizar o CDS no boletim de voto. Assumiu que o boletim de voto devia ter os partidos dispostos por ordem alfabética e recomendou o voto no terceiro quadrado.
E nas primeiras eleições da nossa jovem democracia a mesa de voto dessa paróquia do Alto Minho teve uma esmagadora vitória da Frente Socialista Popular, um grupo de dissidentes do Partido Socialista que sairam pela extrema-esquerda para fazer a revolução popular.
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