Sábado, 14 de Setembro de 2019

CIP

A CIP é, invariavelmente, apresentada como representando os patrões. Sucede que nunca os representou nem os representa – muito menos agora, e desde há muito, que tem uma direcção bem comportadinha e perfeitamente integrada no sistema, isto é, no respeitinho do governo do dia e na ficção da concertação social, que tem dignidade constitucional e em cujo organismo tem assento com outras organizações de duvidosa representatividade e discutível utilidade.

 

Sobre a concertação social escrevi muito e sobre a CIP alguma coisa (quem tiver curiosidade que vá ver no meu blogue de origem), sempre em tons pouco lisonjeiros: a concertação não deveria existir noutro nível que não o das empresas, quando muito as do mesmo sector, ponto, e a CIP não deveria ser apresentada, nem fingir, como representando os patrões, nem ter outro papel na vida pública que não seja o de uma organização privada voluntária que, representando estritamente quem nela está inscrito, se alivia das doutrinas, dos estudos e das opiniões que defende.

 

Periodicamente, a CIP vem ao proscénio com um catálogo de reivindicações, e houve um tempo longínquo em que era uma voz de senso num mar de loucura – os muitos anos em que o país esteve a caminho do socialismo, primeiro, socialismo de rosto humano, depois, a Europa connosco, a seguir, e vários tipos de social-democracia durante e mais à frente.

 

Agora, está tudo muito bem, mas precisa de uns retoques, para crescer. O nosso país é lindo, o governo até que nem é mau, os portugueses são inexcedíveis, os empresários, então, em tendo os números de telefone certos, não há quem os segure. Mas, lá está, não chega. Ai!, que se os poderes públicos ligassem às mais de 80 medidas que a CIP anuncia, no texto para que remete o link acima, metíamos o turbo e, em vez de deslizarmos suavemente para o fundo da tabela dos rendimentos por cabeça por países da EU, como sucedeu com o garboso governo PS, iríamos fazer o senhor XI Jiping arregalar os olhos, enquanto comprava mais das nossas empresas, já não por razões geoestratégicas mas por serem um bom negócio.

 

A apresentação é no revulsivo paleio do empreendedorismo ecónomo-cavaquês: desafios do futuro, estratégia assente em vectores, motor da recuperação, foco nas Pessoas (assim, grafado com maiúscula), desafio da transformação digital, e o resto do palavreado sempre neste tom – Saraiva acha, e com ele a maioria dos economistas, que embrulhar a vacuidade e o asneirol neste dialecto reforça a credibilidade do discurso. Enfim, vamos às medidas (só algumas, que o documento não tem importância para mais do que um respigo).

 

A introdução, pedantemente intitulada “sumário executivo”, é um repositório actualizado do velho mantra da liberdade económica, e daí não decorreria nenhum mal – pelo contrário – se não viesse tingida de dirigismos sortidos, que estão a mais, e da denúncia tíbia dos constrangimentos que a impedem, que está a menos.

 

2.1 Desafios: É necessário mais investimento, indispensável à incorporação de inovação tecnológica nos produtos, nos serviços e nos processos.

 

Um ponto prévio: Isto não é um desafio (a economia não tem desafios, tem circunstâncias e oportunidades, umas negativas e outras positivas, desafio é coisa para concursos e jogos de futebol), é uma opinião e um objectivo. Mas quem tem de decidir se são necessários investimentos não é a CIP, são os empresários, e caso a caso.

 

As atuais dinâmicas do comércio e fluxos de investimento internacionais vão penalizar quem não é competitivo.

 

Siiim? Mas não foi sempre assim, as empresas que não são competitivas no ou nos mercados em que trabalham são penalizadas? E a CIP vê sinais seguros de que a liberalização do comércio internacional se vai aprofundar, e portanto que os fluxos de investimento vão crescer?

 

O nível de endividamento das empresas e os ainda elevados rácios de crédito em incumprimento dificultam ainda a capacidade de o sistema financeiro redirecionar o crédito para os setores produtivos.

 

Este palavreado limita-se a reproduzir acriticamente o discurso dos bancos, cuja gestão foi, em parte, responsável, na crise de 2008 e anos seguintes, por um penoso ajustamento, que entre nós ainda decorre. Os bancos foram salvos, e os seus gestores, os quadros, a parafernália administrativa, as práticas, as crenças, não foram beliscados seriamente, salvo casos contados. Quem perdeu foram os accionistas, mas, ao contrário do que sucede nas verdadeiras empresas (que não são, ao contrário dos bancos, instituições), a cultura empresarial dos responsáveis pelo descalabro não foi sancionada. Por razões que não cabe aqui explanar, dificilmente poderia ter sido de outra maneira, mas não é razoável ouvir gestores bancários como se estes fossem depositários de alguma espécie de lucidez em economia: não são, e há inclusive um incentivo perverso no sistema para premiar inimputáveis, teóricos, académicos e nulidades sortidas, com o denominador comum de todos serem pagos a peso de ouro.

 

Os bancos não financiam o sector produtivo porque a gestão é inepta, não sabe avaliar o risco, como foi abundantemente demonstrado, e continua a financiar actividades do sector de bens não-transacionáveis à boleia de garantias reais que desembocam em bolhas, o Estado, empresas públicas e grandes empresas com boas e obscuras alavancagens no tráfico de influências.

 

Só com as empresas, mediante a introdução de tecnologias inovadoras mais limpas, a aposta na economia circular, uma mobilidade mais amiga do ambiente, a promoção da eficiência energética e da transição gradual para energias renováveis, será possível alcançar desenvolvimento mais compatível com a sustentabilidade ambiental.

 

Todo este parágrafo é um indigno chorrilho de asneiras, traduzindo uma adesão acrítica a ideias da moda: as empresas não precisam de conselheiros, e ainda menos de normas, para a introdução de tecnologias mais “limpas” (isso é uma decorrência da evolução tecnológica e das exigências e preferências dos clientes); a economia circular não é mais do que treta redonda, não significa nada; a transição gradual para energias renováveis é, no estado actual do desenvolvimento científico e tecnológico, pouco mais do que um bordão propagandístico e um unicórnio económico; e o “desenvolvimento mais compatível com a sustentabilidade ambiental” tem lugar num acampamento do Bloco de Esquerda, num comício do PS, ou num artigo de opinião de um frade piolhoso obcecado com o ambiente – num catálogo de intenções de uma associação empresarial não.

 

1,6%  ꟷ Estas são as projeções de crescimento anual do PIB em 2020 e 2021. Trata-se de um resultado insuficiente para vencer os desafios identificados.

 

É insuficiente sim, não por causa dos “desafios” (essa qualificação parva tem o transparente propósito de fazer passar a ideia de que os empresários são uma espécie de condottieri que se expõe ao temor e reverência dos gentios) mas porque há nações, numa Europa que não cessa de perder lugares no mundo, que estavam, e já não estão, abaixo de Portugal no rendimento por cabeça, e porque quase todos os países da liga dos últimos crescem mais do que nós. E isso apenas porque têm mais liberdade económica, em particular na fiscalidade, e não por qualquer conjunto muito sofisticado de políticas públicas intervencionistas subtis.

 

Pessoas ꟷ O ser humano é, em qualquer circunstância, a base e o fundamento da intervenção dos decisores e responsáveis. Do ponto de vista económico, o seu talento é, cada vez mais, o principal fator de diferenciação e de sucesso de qualquer empresa ou de qualquer nação.

 

O ser humano NÃO É a base do fundamento e decisão etc., a menos que com esta frase obscura se queira dizer que um eremita não faz empresa nenhuma porque não tem nem empregados nem mercado. Que as estratégias de diferenciação parecem cruciais para a sobrevivência da muitas empresas (não todas: a generalização, neste domínio ainda mais do que noutros, é má conselheira) é inegável; que a formação académica tem importância é indiscutível, embora só por si não sirva para nada (Portugal anda a formar médicos, enfermeiros, arquitectos e outros profissionais para os exportar porque cá ou não têm lugar ou são mal pagos); e que a formação profissional contínua é, em muitos casos, necessária, parece ser uma inevitabilidade. É porém um equívoco achar que o Estado, para além do ensino clássico (cujos níveis de exigência ganhavam se subissem, e se os programas fossem depurados de fantasias e voluntarismos sortidos – mas isso são outros quinhentos) tem um grande papel a desempenhar. Pelo contrário: O Estado em Portugal é inimigo da liberdade de ensino, no sentido de hostilizar a propriedade privada dos estabelecimentos.

 

O talento não se ensina (o que se ensina são conhecimentos), aparece quando as circunstâncias o permitem; a formação profissional deve ser a que os empresários requerem, não a que alguns iluminados acham por eles que deveriam querer; e a subsidiação, os acordos com mediação de entidades públicas, e de forma geral toda a sorte de imposições na matéria são apenas múltiplas formas de promover a corrupção, sustentar consultadorias, escolas  e organismos inúteis, e financiar a concorrência desleal.

 

Nem tudo no capítulo sob a epígrafe “Pessoas” é para deitar fora. Mas a tónica está errada: não é preciso mais Estado, e sim menos; não são precisas “ajudas”, nem agências para promover isto e aquilo; nem muito menos uma qualquer CIP sabe o que convém e desconvém, e deve por isso abster-se de entrar em “parcerias”.

 

Não há paciência para ler mais, o resto afina pelo mesmo diapasão: mais Estado, mais Estado, mais Estado, nem sequer faltando tolices como “promover o empreendedorismo como verdadeira opção de carreira para ambos os géneros”. Sim, CIP? O empreendedorismo não se promove, CIP, porque quem o sabe promover faz empresas, não discursos; e ele surgir, e frutificar, não depende de o querer muito, e ter muitas opiniões, depende da diminuição dos obstáculos. E quanto aos géneros, CIP, não há dois (o que há dois são sexos), há aí uns cem, segundo a última contagem. Não consta que em alguma cabeça more a ideia peregrina de colocar obstáculos a qualquer dos sexos e, portanto, remover uma inexistência só não é arrombar uma porta aberta porque ela, efectivamente, está fechada – para quase todos.

 

Isto é a CIP, que em tempos bradava no deserto, e sob a liderança do vaselinesco Saraiva evoluiu para um organismozinho socialista, simpaticozinho e colaboracionista. Felizmente, continua a bradar no deserto – nem tudo se perdeu.

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publicado por José Meireles Graça às 17:33
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Terça-feira, 3 de Setembro de 2019

De profundis

Sócrates publicou há dias um artigo no Expresso (a que tive acesso por o ver transcrito em vários lugares; não contribuo voluntariamente para o sustento de um órgão oficioso do Poder, independente apenas na exacta medida necessária para gente inocente acreditar que o seja) em que casca vigorosamente no seu antigo número dois. O ex-PM pode dizer o que quiser, e tem aliás todo o tempo do mundo para o fazer: já se percebeu que será julgado pelos seus crimes sim – mais década menos década; e que não é impossível que os seus advogados venham, com razão, invocar a prescrição num tempo em que a opinião pública já mal se lembrará do que é que ao certo ele estava acusado.

 

Sucede que Sócrates, desta vez, está coberto de razão: lista os triunfos (falaciosos uns e imaginários outros, mas não é esse aqui o ponto) dos seus governos e queixa-se de a direção do PS “se manter apostada em desmerecê-la [a maioria absoluta do PS], juntando-se, assim, ao discurso de todos os outros partidos que têm óbvio interesse político em fazê-lo”.

 

É realmente o que Costa faz: para dizer que “os portugueses têm má memória das maiorias absolutas, quer as do PSD quer a do PS” seria preciso que em algum momento, durante a carreira ascensional de Sócrates, e mesmo depois de passar para a câmara de Lisboa (onde foi uma nódoa igual à dos antecessores, e do sucessor) e para a Quadratura do  Círculo, tivesse manifestado em algum momento a mais remota dúvida sobre os méritos dos governos PS, as excelsas qualidades do líder do seu partido e as fundas culpas no desastre a que o país foi conduzido em 2011.

 

Isto é tanto assim que se um canal de televisão se desse ao trabalho de pesquisar encontraria sem dificuldade, sempre que Costa ou o seu alter-ego para assuntos de aldrabices financeiras atroassem os ares com os méritos do equilíbrio orçamental, ou as cativações, ou o respeito pelos credores, declarações em que o próprio defendia precisamente o oposto. E, para isso, nem seria preciso remexer em mais do que a extinta Quadratura: Costa a pôr Sócrates, que Pacheco crucificava (quase sempre por más razões, que Nosso Senhor a Pacheco deu o gosto pela leitura e boa memória, mas discernimento nem por isso) nos cornos da lua, e a gabar até à vigésima quinta hora o descalabro perante as cordatas objurgatórias de Lobo Xavier, os dois persignados de grande respeito pelo “António”, como ainda hoje.

 

Seria essa obra, a de confrontar Costa hoje com o que consistentemente e anos a fio andou a fazer e defender, um serviço à democracia. Porque, a ser verdade o que dizem as sondagens, o eleitorado homologou uma maioria contranatura que não tinha sido aventada na campanha eleitoral; engoliu a patranha da reversão do brutal aumento de impostos, ao mesmo tempo que a receita fiscal cresceu mais do que o produto; e atribuiu ao governo o aumento das exportações, a diminuição do desemprego e um clima geral de alívio (ilusório decerto, o eleitorado suspeita, mas enquanto o pau vai e vem folgam as costas) como se o turismo tivesse explosivamente crescido por alguma política que o tivesse induzido, como se alguma empresa exportadora pequena ou média tivesse visto o seu quadro fiscal, declarativo e regulamentar, melhorado, e como se a mudança da ortodoxia do BCE (exigente e até insolente nos tempos da troica) para uma orgia de facilitação tivesse tido alguma coisa a ver com a gordurosa e parlapatona bonomia de Costa.

 

O homem tem sorte, mas a sorte dele é o nosso azar. Porque, à cautela, já vai admitindo que não é impossível uma crise internacional, o tal diabo cuja chegada Passos Coelho previu. E, ao contrário do que diz, não estamos “melhor preparados” nem “temos mais instrumentos para resistir”: em 2015 a dívida pública bruta por cabeça, que era de 22.300 Euros, passa agora alegremente os 23.800. E como o sector privado está exausto, investimento que se veja não há, e se houver será sobretudo público (o que quer dizer elefantes brancos), a banca está ligada à máquina do BCE, o turismo não pode crescer muito mais porque não há muito mais para descobrir ou inventar, e o número de funcionários públicos cresceu em todos os anos do governo PS e são já 700.000, os tais instrumentos consistem na prática na boa-vontade dos nossos “parceiros” europeus.

 

Não é nada mal vista, a chantagem: convém que nos sustentem porque a União é um sucesso. E vejam lá se mantêm indefinidamente aquela coisa dos juros negativos: se trocar dívida velha por nova dá lucro a máquina do movimento perpétuo, afinal, existe.

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publicado por José Meireles Graça às 22:59
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