Gosto muito de assinalar datas, e o 10 de Junho ajuda-me sempre. No ano passado aconteceu puézia, porque o dr. António Barrete fez um discurso lindo, a tratar Portugal por tu, "óh Portugal, tu isto tu aquilo", e "os teus filhos não sei quê", e foi muito comovente; todas as senhoras choraram, mesmo as mais acostumadas às câmaras da televisão.
Este ano o dr. Barrete foi medalhado, encontrando-se agora na companhia de todos os artistas do PREC, e nessa qualidade não pôde repetir o momento espiritual. Foi substituido, quanto a mim com vantagem, pelo dr. Sampaio da Nóvoa. Estou certa que rebentaram os índices de audiências, atingindo os níveis mais baixos desde a transmissão, na RTP 2, em Junho de 2004, da totalidade do Festival de Dança de Roda Silenciosa Nijemo Kolo, da Croácia. Refiro-me às últimas duas horas do festival, transmitido em simultâneo com as meias finais do Campeonato Europeu de Futebol, de saudosa memória, no canal do lado.
Sampaio da Nóvoa é um homem sóbrio. Não se vê o dr. Sampaio da Nóvoa sempre a pôr-se em bicos dos pés, aparecendo por tudo e por nada a perpetrar entrevistas, ou a carimbar com as suas reflexões qualquer programa de "mesa redonda". Sampaio da Nóvoa reserva as suas presenças para situações onde ela é, efectivamente inescusável. Como em Março de 2011, pela inauguração da exposição de arte (credo, o teclado até rangeu) lusófona "Caras e Citações: uma interpelação estética sobre Universidade, Cultura e Desenvolvimento", da talentosa Ana de Macedo, patrocinada pelo Instituto de Investigação Científica Tropical, presidido pelo pai da rapariga, e em parceria com o projecto Saber Continuar. Com o "apoio" da Faculdade de Letras que comemorava assim o seu centenário.
A obra apresentada constava de uma série de enormes painéis revestidos com colagens (uma técnica ainda desconhecida dos portugueses) onde, numa combinação de génio cromático com astúcia literária, podiamos observar pretinhos a brincar com computadores Magalhães, intercalados com lixeiras, edifícios de escritórios, salas de aulas, manifestações estudantis, e frases irreverentes como "A lusofonia pode ser aplicada a qualquer parte do mundo", ou "O espaço de parcerias alargou, e muito", ou ainda "Português não é assim um conceito de raça, mas antes uma 'unidade de sentimento e de cultura', que aproximou homens de várias origens". Esta última vinha assinada "O.R.".
No discurso que reservou para esta ocasião, Sampaio da Nóvoa foi inflexível. Disse que "este centenário fica marcado pela criação, mobilidade e cooperação que existe nos dias de hoje nos países lusófonos, que vai muito além das universidades". Concordo. Vai muito além das universidades. Já vai nas "artes". E disse também que "é preciso criar condições concretas para que os estudantes de países Lusófonos possam estudar em Portugal e para que haja dinâmica efectiva de cooperação nos estados lusófonos". Pronto, dr. Sampaio da Nóvoa, já tínhamos ouvido.
Pelo 10 de Junho, Sampaio da Nóvoa voltou a abanar os portugueses com afirmações polémicas e originais. Desta feita, alertou para o "aumento das desigualdades sociais", observou que os portugueses "vivem hoje pior do que viviam ontem", e temeu que esta sociedade fosse "vencida pelo medo e pela radicalização". Depois ilustrou o discurso com mais um sortido de finuras da mesma natureza e, lá mais para o fim, disse que "Precisamos de transformar estes movimentos numa acção sobre o país, numa acção de reinvenção e de reforço da sociedade. Chegou o tempo de dar um rumo novo à nossa história. Portugal tem de se organizar dentro de si, não para se fechar, mas para se abrir, para alcançar uma presença forte fora de si." E acabou, tão entusiasmante como começou, concluindo que "Não temos tempo para hesitações. As universidades vivem de liberdade, precisam de ser livres para estarem à altura do que a sociedade lhes pede. É por aqui que passa o nosso futuro, pela forma como conseguirmos ligar as universidades e a sociedade, pela forma como conseguirmos que o conhecimento esteja ao serviço da transformação das nossas instituições e das nossas empresas".
O que Sampaio da Nóvoa não disse foi nada de concreto. Efectivamente, não disse nada que interessasse aos portugueses. Como, por exemplo, que tipo de acção é preciso exercer "sobre o país", ou qual o "novo rumo" a dar "à nossa história", ou de que forma pensa ele que o conhecimento pode passar a estar "ao serviço da transformação das nossas instituições e das nossas empresas". E não o disse porque Sampaio da Nóvoa não alinha em "facilitismos", e desengane-se quem pensar que Sampaio da Nóvoa nos vai servir a papinha toda feita. Além de que um feriado, como toda a gente sabe, serve para os portugueses dormirem o meio dia da manhã, e Sampaio da Nóvoa respeita o descanso dos portugueses.
Sampaio da Nóvoa distingue-se das restantes figuras do pensamento pátrio, cujo dinamismo só encontra paralelo na vastidão da sua irrelevância. Sampaio da Nóvoa poupa-nos o dinamismo.
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