Quinta-feira, 13 de Setembro de 2012

Clássicos do Gremlin: "A crise"

 

 

Desta vez, limito-me a chamar a atenção para a data em que este texto foi publicado pela primeira vez.

 

DRAMA CAVAQUIANO

 

«A semana passada, os perversos sábios que se especializaram na nossa economia fizeram um seminário com banqueiros em Vilamoura. Nunca fui convidado para nenhuma destas negras actividades e tenho imensa pena. Os economistas não são como nós. Pertencem àquela espécie de seres que outrora nas florestas se ocupavam a conversar com espíritos e sabiam fórmulas mágicas para vender dragões. Ainda hoje há astrólogos e praticantes de medicinas paralelas. Mas com pouca influência. Só os economistas sobrevivem à civilização e conseguiram conservar os seu antigo prestígio. O grande Merlin (*Cavaco) ficou em Lisboa, a negociar a revisão constitucional. Em Vilamoura, só esteve o aprendiz Cadilhe, a fada Morgana, Teresa Ter-Minassian, e duas dúzias de feiticeiros teóricos. Mesmo assim valeu a pena.

 

Depois de vastas e profundas discussões e da celebração minuciosa dos ritos esotéricos da ciência, os sábios de Vilamoura resolveram mandar, pelo aprendiz Cadilhe, um recado urgente a Merlin: a raiz da mandrágora, a pele do sapo e os sinais de fumo indicavam, sem sombra de dúvida, que Merlin devia reduzir o défice do Estado. Da sua caverna de Linda-a-Velha, o venerando Alfredo de Sousa, ex-mestre de Merlin, aprovou esta grave advertência com todo o peso do seu afamado bom senso.

 

Não há certamente na história portuguesa dos últimos duzentos anos conselho que mais gente mais vezes tenha dado em vão a mais governos. Tirando Afonso Costa em 1913, do fim do século XVIII a 1928, nem um único governo foi capaz de reduzir significativamente o défice do Estado. O dr. Salazar, que foi capaz, era um ditador muito bem equipado, com um exército fascizante, uma bela polícia secreta e lindíssimos campos de concentração. Os sábios de Vilamoura, no etéreo assento onde subiram, desconhecem estas coisas vergonhosas ou não vêem por pura delicadeza qualquer relação entre o défice do Estado e a deliciosa capacidade de meter na cadeia os portugueses teimosos ou malvados, que se recusam a cumprir as profecias económicas dos peritos.

 

Quando lhes perguntam como pode o grande Merlin reduzir o défice, os sábios de Vilamoura deixam cair uma pérola da sua enorme sabedoria e respondem que, se diminuirem as despesas, eles garantem, porque um mocho lhes disse, que o défice também diminui. Quando lhes perguntam que despesas é preciso diminuir, eles respondem, falando sempre pelo mocho, que é preciso combater a burocracia. E que burocracia? A burocracia inútil. Perfeito. O feiticeiro de Linda-a-Velha chegou até a sugerir que se acabasse com o Conselho Nacional do Plano, acto heróico que pouparia pelo menos uns milhares (sic) de contos.

 

A ideia grotesca de que a maneira de reduzir o défice é reduzir o número de "empregos inúteis" fazia tradicionalmente parte do programa da Esquerda, ou seja, do radicalismo democrático. Durante séculos, a Esquerda berrou, ganiu, regougou contra os "empregados inúteis", para descobrir logo que chegava ao poder (e raras vezes chegou) que a "inutilidade" dos empregos consistia em não serem dela. Quando os "empregos" passavam para os "patriotas" do café Marrare e de outros cafés bem pensantes tornavam-se miraculosamente "úteis".

 

Dantes o ódio à burocracia disfarçava a ganância. Hoje disfarça a total ausência de pensamento político dos sábios de Vilamoura e a sua basáltica impermeabilidade ao real. Joaquim António de Aguiar declarou à hora da morte que não tinha gostado de nascer entre estúpidos, viver entre estúpidos e morrer entre estúpidos. Foi um excesso lamentável que só as circunstâncias explicam. Não está com certeza fora dos limites do entendimento dos sábios de Vilamoura que, em Portugal, o Estado preenche, ou tenta preencher, a diferença entre as expectativas dos portugueses e a pobreza do país e que, portanto, o défice é proporcional a essa diferença e reduzi-lo implica baixar essas expectativas.

 

Vamos lá devagarinho e com paciência. As expectativas dos portugueses não dependem apenas no governo. Dependem sobretudo do que os portugueses conhecem do estilo de vida na Europa e na América; das promessas que receberam de inúmeros demagogos desde 1974; e das próprias mudanças para melhor nestes últimos tempos. Incontestavelmente, o dr. Cavaco acirrou o apetite a toda a gente durante os dois anos da absurda campanha eleitoral, que começou no governo de 85 e acabou em 19 de Julho. Mas resta apurar se, sem ela, a situação seria menos intratável.

 

Os portugueses querem as escolas e as universidades que têm e mais escolas e mais universidades e mais professores e mais instalações. Querem mais hospitais, mais médicos e tratamentos mais caros. Querem reformas maiores. Querem mais casas e mais baratas. Querem mais esgotos, mais estradas, mais electrificação, mais água canalizada, mais tribunais e tribunais mais eficientes. Querem mais isto e mais aquilo e, a seguir, ainda mais e mais. Não há fundo no que os portugueses querem e no que se sentem com direito a ter. Os inválidos querem a assistência, os atletas pistas de tartan, os cineastas filmes e a aldeia de Pouca Terra o restauro de uma capela. Basta ligar a televisão dez minutos por dia para se apreciar o abismo insondável do que os portugueses esperam do Estado. Digam-me os sábios de Vilamoura de quem é que eles hão-de esperar? Da sua pobreza ou de Nossa Senhora de Fátima?

 

Nenhum milagre financeiro (incluindo a venda das empresas públicas e a contenção temporária da dívida) pode algum dia vir a satisfazer as exigências do país, no mínimo necessário à paz e ao equilíbrio social, com as receitas "normais" do Estado. O défice é, por consequência, inevitável e o crescimento do défice também, uma vez que a soma do que os portugueses consideram o mínimo necessário cresce exponencialmente à medida que esse mínimo é satisfeito. Por outro lado, como o grande Merlin não tardará a descobrir, a pobreza não põe limites à voracidade indígena, mas põe estreitíssimos limites à carga fiscal suportável pela classe média que, para classe média, vive numa patética indigência, constantemente ameaçada de um sério trambolhão social. Não é por acaso que, desde os bons tempos de el-rei D. João VI, os governos andam por aí apertados entre o imposto e a dívida, ora caindo por causa do imposto, ora caindo por causa da dívida. Neste capítulo, nada mudou. O que mudou foi a quantidade de coisas desejadas, hoje infinitamente maiores.

 

Não sendo pessoas mal nascidas e ordinárias, os sábios de Vilamoura não se preocupam com política. Limitam-se a oferecer opiniões muito avisadas e criteriosas, para os políticos, no seu próprio interesse, seguirem à risca. Eles guiam-se pela razão, os políticos pela razão inferior de ganhar votos, a que sacrificam a Pátria e o Desenvolvimento. Mas nunca lhes ocorreu que se, por exemplo, o dr. Cavaco não ganhar votos, os ganha o dr. Constâncio pelos mesmos sórdidos processos e para os mesmos repelentes fins, ou que a aplicação das suas receitas, além do recheio das suas queridas cabecinhas, exige dez PIDES e um considerável alvoroço.

 

O grande Merlin, agora bastante depenado, já pertenceu ao grupo dos sete sábios de Vilamoura. Este ano começou a sua educação. Ainda tem muito que aprender. Quando aprender tudo, vai descobrir que afinal não é o grande Merlin, é o dr. Cavaco, pequeno político com muita sorte, metido no pântano até ao pescoço. Como os outros, coitado. Um pobre homem.»

 

(Vasco Pulido Valente, in O Independente, 21 de Outubro de 1988)

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 20:59
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