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Hoje é dia de orçamento, o documento que, via fugas, antes de o ser já o era.
É um documento trágico: quase ninguém acredita que a pauperização da classe média seja caminho para lado algum. Não porque seja possível pagar dívidas sem apertar o cinto, mas porque o violento esbulho do rendimento ainda disponível é feito em nome de uma inevitabilidade sem outra esperança que não seja os credores abrirem os olhos a tempo de verem que nem para eles estão a ser bons.
Entendamo-nos: o caminho que alguma esquerda defende (renegociar a dívida sem reforma séria do Estado, sem diminuir as despesas sociais, e sem nenhuma receita para o crescimento que não seja o consumo) esbarra na incredulidade dos credores e no senso comum. E a ideia de que se pode dizer aos mercados que para já não pagamos, mas que o crédito deve continuar a fluir para importarmos combustíveis, alimentos, matérias-primas para a indústria e o mais que mantém o país de pé - ou decorre de ignorância, ou ingenuidade, ou má-fé.
Nas circunstâncias a que nos deixamos chegar o Governo que temos teve uma curta oportunidade de reformar o Estado, se tivesse concentrado todos os seus esforços na correcção do défice pelo lado da despesa e não hesitasse no tratamento a dar aos poderes fácticos do sector financeiro, dos plutocratas, dos sindicatos, das associações patronais e das opiniões estatistas, que são quase todas. Não foi assim e agora é tarde. Haveria convulsões, a popularidade ficaria num frangalho, o ambiente social não seria muito diferente do que é, a berrata das esquerdas seria, se possível, ainda mais estrídula, quando houvesse eleições perdê-las-ia - mas nem a queda do produto seria tão grande, nem a perspectiva de recuperação tão distante, nem a autoridade para discutir com os credores tão enfraquecida.
Numa palavra, preferiu-se a água choca do diálogo social, dos panos quentes, das reformazinhas, dos cortezinhos e das medidinhas. Quando, numa reforma do instituto das fundações, se faz um corte de apenas 30% à Fundação Mário Soares, um monumento dispendioso ao ego daquele heróico fóssil; quando se tratam com panos quentes os empresários de retorno garantido das PPPs e a banca que está por detrás; quando se deixa em paz o sorvedouro da RTP; ou quando se deixa cair a reforma dos municípios, para não perturbar as doces sinecuras dos senhores autarcas treteiros e sempre grávidos do próximo melhoramento - está tudo dito.
Alguma coisa ficará, muito mais do que ficaria se fôssemos pastoreados por um Seguro, ou um Costa, ou qualquer outro da longa lista de criadores de riqueza via Decreto-Lei e dinamismos públicos sortidos. Mas será pouco.
Para quem defende o que eu defendo, e que agora me dispenso de repetir, um pouco de cinismo autorizaria que pensasse: quanto pior, melhor. Nada disso: pena-me que o Governo mais à direita em quase 40 anos deixe de si a imagem de ter querido fazer tarde o que não teve coragem de fazer cedo; de ter sido forte com os fracos, por ter que ser, sem ter sido forte com os fortes, como devia; e que em momento algum tenha parado para pensar que há futuro sem Euro e que, se não acredita já no caminho que os credores apontam, deveria ter o carácter de dizer: não sei para onde vou, mas sei que não vou por aí.
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* Fotografia: Margarida Bentes Penedo
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