Sábado, 14 de Abril de 2012

Clássicos do Gremlin: "Cobrar o imposto e fazer o empréstimo"

 

«- Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz?

 

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremeda, um verdadeiro episódio histórico!...

 

O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar...

 

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o País ia alegremente e lindamente para a bancarrota.

 

- Num galopezinho muito seguro e muito a direito - disse o Cohen, sorrindo. - Ah, sobre isso ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da Fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...

 

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hem? E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras.

 

- A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela - continuava o Cohen - que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o País...

 

Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionária constante; nas vésperas de se lançarem os empréstimos haver duzentos maganões decididos que caíssem à pancada na municipal e quebrassem os candeeiros com vivas à república; telegrafar isto em letras bem gordas para os jornais de Paris, de Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brasileiro, e a bancarrota estalava. Somente, como ele disse, isto não convinha a ninguém.

 

Então Ega protestou com veemência. Como não convinha a ninguém? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos!... À bancarrota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um país que vive da inscrição, em não lha pagando, agarra no cacete; e procedendo por princípio, ou procedendo apenas por vingança - o primeiro cuidado que tem é varrer a monarquia que lhe representa o calote, e com ela o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal, livre da velha dívida, da velha gente, dessa colecção grotesca de bestas...

 

A voz de Ega sibilava... Mas vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens de ordem que fazem prosperar os bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom senso. Evidentemente, ele era o primeiro a dizê-lo, em toda essa gente que figurava desde 46 havia medíocres e patetas - mas também homens de grande valor!

 

- Há talento, há saber - dizia ele com um tom de experiência. - Você deve reconhecê-lo, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, há talento, há saber.

 

E, lembrando-se que algumas dessas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar, porém, cofiava sobriamente o bigode. Ultimamente pendia para ideias radicais, para a democracia humanitária de 1848: por instinto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo político, como num asilo paralelo: queria uma república governada por génios, a fraternização dos povos, os Estados Unidos da Europa... Além disso, tinha longas queixas desses politiquetes, agora gente do Poder, outrora seus camaradas de redacção, de café e de batota...

 

- Isso - disse ele - lá a respeito de talento e de saber, histórias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...

 

O Cohen acudiu:

 

- Não senhor, Alencar, não senhor! Você também é dos tais... Até lhe fica mal dizer isso... É exageração. Não senhor, há talento, há saber.

 

E o Alencar, perante esta intimação do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o marido da divina Raquel, o dono dessa hospitaleira casa da Rua do Ferragial onde se jantava tão bem, recalcou o despeito - admitiu que não deixava de haver talento e saber.

 

Então, tendo assim, pela influência do seu banco, dos belos olhos da sua mulher e da excelência do seu cozinheiro, chamado estes espíritos rebeldes ao respeito dos parlamentares e à veneração da ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o País necessitava reformas...

 

Ega, porém, incorrigível nesse dia, soltou outra enormidade:

 

- Portugal não necessita reformas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão espanhola.

 

Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen, com aquele sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, viu ali apenas "um dos paradoxos do nosso Ega". Mas o Ega falava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia ele, invasão não significa perda absoluta de independência. Um receio tão estúpido é digno só de uma sociedade tão estúpida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um país que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguém consentiria em deixar cair nas mãos de Espanha, nação militar e marítima, esta bela linha de costa de Portugal. Sem contar as alianças que teríamos, a troco das colónias - das colónias que só nos servem, como a prata de família aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise... Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, num momento da guerra europeia, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnização, perdermos uma ou duas províncias, ver talvez a Galiza estendida até ao Douro...

 

- Poulet aux champignons - murmurou o criado, apresentando-lhe a travessa.

 

E enquanto ele se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via ele a salvação do País, nessa catástrofe que tornaria povoação espanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heróis, berço dos Egas...

 

- Nisto: no ressuscitar do espírito público e do génio português! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tínhamos que fazer um esforço desesperado para viver. E em que bela situação nos achávamos! Sem monarquia, sem essa caterva de políticos, sem esse tortulho da inscrição, porque tudo desaparecia, estávamos novos em folha, limpos, escarolados, como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se uma história nova, um outro Portugal, um Portugal sério e inteligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilização como outrora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tareia... Oh Deus de Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o st. emilion

 

(Eça de Queiroz, in "Os Maias")

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 19:45
link do post | comentar
2 comentários:
De daniel arlindo massuanganhe a 15 de Abril de 2012 às 12:17
gostei!mocanbique e inteligente mas nao usa-a para pratica! gostaria de saber porque?
De Margarida Bentes Penedo a 16 de Abril de 2012 às 00:50
Daniel, a sua escrita sem acentos custou-me a compreender. No entanto, sei que há teclados assim.

Conte lá, então, porque é que Moçambique é inteligente mas não usa a inteligência?

Comentar post

Pesquisar neste blog

 

Autores

Posts mais comentados

Últimos comentários

https://www.aromaeasy.com/product-category/bulk-es...
E depois queixam-se do Chega...Não acreditam no qu...
Boa tarde, pode-me dizer qual é o seguro que tem??...
Gostei do seu artigo
Até onde eu sei essa doença não e mortal ainda mai...

Arquivos

Janeiro 2020

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Links

Tags

25 de abril

5dias

adse

ambiente

angola

antónio costa

arquitectura

austeridade

banca

banco de portugal

banif

be

bes

bloco de esquerda

blogs

brexit

carlos costa

cartão de cidadão

catarina martins

causas

cavaco silva

cds

censura

cgd

cgtp

comentadores

cortes

crise

cultura

daniel oliveira

deficit

desigualdade

dívida

educação

eleições europeias

ensino

esquerda

estado social

ética

euro

europa

férias

fernando leal da costa

fiscalidade

francisco louçã

gnr

grécia

greve

impostos

irs

itália

jornalismo

josé sócrates

justiça

lisboa

manifestação

marcelo

marcelo rebelo de sousa

mariana mortágua

mário centeno

mário nogueira

mário soares

mba

obama

oe 2017

orçamento

pacheco pereira

partido socialista

passos coelho

paulo portas

pcp

pedro passos coelho

populismo

portugal

ps

psd

público

quadratura do círculo

raquel varela

renzi

rtp

rui rio

salário mínimo

sampaio da nóvoa

saúde

sns

socialismo

socialista

sócrates

syriza

tabaco

tap

tribunal constitucional

trump

ue

união europeia

vasco pulido valente

venezuela

vital moreira

vítor gaspar

todas as tags

blogs SAPO

subscrever feeds