O Conselho Científico do Gremlin Literário torna pública a tese de doutoramento do seu colaborador José Sezinando, que tive o prazer de orientar pessoalmente, e que foi aceite esta semana pelo Departamento de Ciências Sociais da Universidade Clássica de Lisboa onde obteve a classificação de "summa cum laude".
"VESTIR
PARECERES & NÓTULAS A UM EXEMPLAR ENSAIO VERSANDO A MODA E DECORRENTES MALEFÍCIOS, COMUNICADAS POR JOSÉ SEZINANDO, HOMEM DE CULTURA VASTA, PORÉM CONFUSA.
Seja como for - e é-o, sem dúvida - Thoreau recomendava prudência perante "todos os empreendimentos que exijam o envergar de roupas novas". Não é, porém, menos exacto que, quando Sócrates, agonizante, lembrava: "Cryto, devemos oferecer um galo a Asclepius; não te esqueças de tratar disso", o filósofo grego se ocupava dum assunto que não vem a propósito (1).
Oferecerá dúvidas o interesse da questão?
Almeida Garret, sempre dandy, vestia calções à inglesa - e a inglesa ria-se muito enquanto ele lhos vestia. Os 12 Pares de França usavam doze pares de meias (2). Ninon, provavelmente, foi de Lenços, e só uma corruptela a crismou. As onze mil virgens trajavam vestidos até ao chão e sem decote (3). Os bordados da Madeira estão sujeitos simultaneamente à traça e ao caruncho. Tentar evitar a hipofilia duma senhora de redingote é inútil: do riding-coat à redingote veio um passo. Ao declararmos que reprovaríamos uma mulher escassamente vestida, queremos subconscientemente confessar que a re-provaríamos - que a provaríamos duas vezes.
Verifica-se, assim, que a elegância está inextricavelmente associada aos sucessos históricos, artísticos, económicos, políticos, éticos (4). A moda faz o homem da sua época. Como se depreende do apelido alemão e do sobriquet francês, Beau Brummell foi o mais célebre janota da Inglaterra. Mas foi-o apenas porque usava água-de-colónia "Beau Brummell". E uma mulher é mais mulher se usar o perfume "Femme" (5). Henrique IV de França terá realmente mandado chacinar os huguenotes? Ou terá apenas resmungado, entre dentes - e daí esse comentário ter sido mal interpretado - que queria abolir os capotes? Se Richelieu era tão pouco espirituoso, porque razão se falará tanto no "ponto" Richelieu? Sabê-lo-iam os três mosqueteiros (6)?
Terá certamente o leitor notado que grande parte da exemplificação expendida se reporta a figuras da história francesa. Não foi por acaso. A afirmação de que a França é a pátria da moda não pode ser rebatida (7).
Atente-se em que são de origem francesa os vocábulos toilette, bâton, bathyscaphe, rouge, madame, banlieue, décapotable, dior, rigolo, camembert. Tomando estas 10 palavras como uma amostragem típica da língua francesa, verifica-se que 4 dizem respeito à coquetterie. O rigor da análise estatística revela-nos, pois, que 40% dos vocábulos do idioma de Madame de Sévigné se relacionam com os atavios e o embelezamento.
Em contraste, este exame mostra-nos que nenhuma destas palavras é dinamarquesa: na Dinamarca é portanto 0% - ou seja, inferior àquela em 40% - a percentagem que investigamos. Noutros países europeus, a percentagem não chega a atingir uma média. Resultados diferentes se obtiveram, é certo, na Austrália, mas isso é levar as coisas longe demais: a estatística não pode abstrair da Estadística ou ciência do Estado, como já entre nós preconizava Sebastião José de Carvalho (8). Isto para não aludirmos ao nível atingido por este índice no País de Gales, demasiadamente significativo para ter qualquer significado (9). E, se remontássemos à antiguidade clássica, aperceber-nos-íamos de que na Grécia, ao contrário do que sucedia em Roma, se empregava correntemente a expressão "em Roma sê Romano" - observação esta que nos leva a abandonar prontamente a antiguidade clássica a que havíamos remontado (10). Esta pesquisa, aliás, bem poderia recuar até à Lei das 12 Tábuas (11).
A celebrada batalha entre os sexos atinge particular violência no domínio do vestuário. Disputas e questões constantes não lograram, até hoje, apurar se á a mulher ou o homem quem mais se arranja, mais se trata, mais se lava (12). O problema coevamente tornou-se extensivo às próprias crianças (13): os anúncios de pasta dentífrica representam um sorridente casal com filhos, donde decorre por um lado a perfeita inocuidade do produto e por outro lado a sua ineficácia contraceptiva; os bazares de brinquedos vendem resmas de "Harper's Bazaar" à sua específica clientela; nos casamentos elegantes, a toilette da noiva é tão rigorosa quanto a de seus filhos que lhe pegam na cauda (14).
Os resultados deste precedente repercutir-se-iam validamente na circunstância determinante da causalidade condicional, com incidências colaterais no ambiente em que se processava, do mesmo passo, o estádio ecológico a que poria termo - ilusório, aliás - o alternado sobrelevar dos caracteres mágico-sociais que Schlimmel teorizou pertinentemente num escorço porreiríssimo (15).
Cabe, neste ponto, fazer um indispensável parênteses. Ei-lo: ( ). E prossigamos:
O axioma teutónico "Übung macht den Meister", se não significa "pelo andar da carruagem se vê quem vai lá dentro", significará pelo menos qualquer outra coisa (16). Na verdade, não desapareceu ainda a crença de que a cada grupo ou classe social corresponde necessariamente um tipo definido de vestuário, espécie de índice exterior de casta (17). Pelo traje se distinguiria um banqueiro de um contínuo, um cantor de ópera de um camponês, um oficial do Exército de uma freira.
Mas esta teoria não só tem vindo gradualmente a ser abalada pela evolução social, como o seu emprego concreto é frequentemente falível: como diferenciar, com base nela, as estirpes de duas mulheres em bikini? E quem se lembra de querer diferenciar as estirpes de duas mulheres em bikini (18)?
Resumindo: este critério, sobre ser regressivo, poderia quando muito ser aplicável com bom-senso, com imparcialidade, com auto-crítica (19). Ao leitor se recomenda o maior cuidado (20).
Afirmar o contrário não é mais do que patentear que se desconhece inteiramente o problema das relações entre moda e sociedade. O que é quase tão vexatório como confundir Henry James com James Joyce com Joyce Cary com Cary Grant com Grant Wood, ou "O 93" com "Os 45" de Victor Hugo von Hoffmannstahl ou Denys de La Valière com Louise de la Pâtelière ou Schiller com Max Scheller com Max Schmelling com Max Weber ou Jean Maurois com Maurice Barois com André Siegfried de Wagner ou Pierre Emmanuel do Nascimento ou John Dos Paços d'Arcos.
JOSÉ SEZINANDO
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(1). É esta, pelo menos, a opinião de Kraft-Groppell. Em sentido contrário, consulte-se a tese de Groppell-Kraft.
(2). Tudo leva a crer que os 12 Pares de França, quando visitaram Portugal, pernoitaram na Casa dos 24.
(3). A cada par de França competiam 916,6 virgens, ou seja 458,3 a cada meio par. Pode o leitor verificar:
P/2 x 11.000 V = 12 x ᶍ V
ᶍ = 458,3 V
(4). Não chegou a pronunciar-se concretamente sobre este assunto o italiano Luigino Marocutto (1903-1905).
(5). Algumas têm a "Femme" e o proveito.
(6). A cada virgem correspondia 0,00027 de mosqueteiro. Reconheça-se que não era muito. Em compensação, segundo Júlio Verne, cada uma tinha 1,8 léguas submarinas.
(7). A não ser com a afirmação de que a França não é a pátria da moda. Mas, argumentando desse modo, nunca mais daqui sairíamos.
(8). Mais tarde Sebastião José de Carvalho e Melo.
(9). Lawrence e Santos, concordando nas premissas, divergiam nas conclusões e acabarm por ceder as quotas na sociedade.
(10). Cf. Heródoto, "A Retirada dos 10.000" - em ralação aos quais apenas 1.000 virgens sobejavam. Os tempos eram outros.
(11). Cada um defrança tinha meia tábua.
(12). Eruditamente, Ana Plácido dizia a Camilo: "O homo lava mais, Branco".
(13). Simone de Beauvoir, em "Le Troisième Sexe", não versou este problema. Teve toda a razão.
(14). Poder-se-á talvez dizer que este argumento é a posteriori.
(15). Sobre Schimmell poderão os interessados reler, com proveito, esta frase.
(16). "Por que é que vais com quem, quando, para onde?" - costumava perguntar Wagner ao Grão-Duque do Schleswig-Holstein. Nunca obteve resposta.
(17). Sobre Casta, consulte-se Suzana.
(18). A designação do próprio tecido pied de poule não pode ser tomada au pied de la lettre.
(19). Exemplo de auto-crítica: "O teu automóvel está pintado duma cor muito feia".
(20). Ou, como sustentam os penhoristas: todas as cautelas são poucas."
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(Publicado na revista "Almanaque", Dezembro 1960 - Janeiro 1961)
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