Sucedeu em Padim da Graça, concelho de Braga. Alzira, empresária da mesma freguesia, pede uma indemnização de 6.000 euros ao cantautor Miguel Costa, seu vizinho, por uma obra cujo conteúdo poético aborda o tema do "grilo da Zirinha", incluida no seu mais recente CD.
Diz a queixosa que a canção fez dela "alvo de chacota popular", porque insinua que teve com o autor "um caso amoroso". Acrescenta que até as crianças da freguesia cantam "o grilo da Zirinha" (presumo que ao passar por ela). E que já nem consegue ouvir os primeiros acordes, porque fica sempre "uma pilha de nervos".
"Cacei o grilo" é, na verdade, o título da canção* que o artista interpreta ao vivo nas festas e "eventos" para que é contratado. O que torna evidente que Miguel Costa está a ganhar dinheiro à custa do "grilo da Zirinha", e justifica o pedido de indemnização.
Durante a primeira audiência do julgamento, deu-se um sobressalto. Quando, por ordem do juiz, se ouviu "o grilo da Zirinha" no sistema estereofónico do Tribunal de Braga, a empresária Alzira sentiu-se "nervosa" e desmaiou, tendo sido reanimada por uma equipa do INEM.
Durante a segunda sessão, o colectivo reflectiu sobre o conteúdo de uma dissertação, oferecida por uma especialista, professora e sobrinha da queixosa, subordinada ao tema: "Conotações sexuais da palavra 'grilo' - Subsídios para o inventariado da terminologia popular nas diferentes designações associadas à balgina". A oradora mostrou-se convicta de que o poema revelava uma intenção clara, por parte do arguido, de sugerir que mantivera "uma relação sexual" com a tia.
Pessoalmente, identifico hesitações no depoimento desta académica. Uma "relação sexual" não é o mesmo que um "caso amoroso", e penso que a empresária Alzira vai ter que se decidir. Ou bem que fica "uma pilha de nervos" por considerar-se pressionada por Miguel a admitir com ele um "caso amoroso" cujos antecedentes, nos dias de hoje, não justificam; ou desmaia porque sente apoucadas as suas aspirações românticas, quando o cantautor reduz à sugestão de uma mera "relação sexual" tudo aquilo que viveram em conjunto. As duas versões são incompatíveis.
Aparentemente, o Tribunal de Braga também não se considerou esclarecido. E por isso confrontou a testemunha com textos de outros grandes nomes das letras portuguesas, como Gil Vicente ou Quim Barreiros, este último na substância do seu poema épico "A garagem da vizinha". O depoimento manteve-se inalterado.
O arguido negou qualquer intenção de ofender a empresária, a quem se referiu laconicamente como uma pessoa com quem tem "uma relação", se bem que "de grande amizade pessoal". Contudo, chamou a atenção para a existência de "mais do que uma Alzira na Freguesia", e informou tratar-se tudo de "uma questão de rima".
No poema, Miguel Costa apresenta Alzira como "uma amiga" a quem um dia pediu que lhe deixasse "tocar no grilo". "Zirinha não pôs isso em questão", pelo que o poeta, sentindo-se encorajado, começou "a apalpar". No refrão, Miguel repete com alegria: "cacei o grilo na toquinha, cacei o grilo da Zirinha".
Fui-me informar. Segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa:
grilo1 [grílu]. s. m. (Do lat. grillus). 1. Zool. Insecto ortóptero (gryllus), representado na fauna portuguesa por várias espécies, saltador, cujo macho produz com os élitros um ruído estridente. 2. s. m. (com maiúsc.) Rel. Frade da Ordem dos Agostinhos Descalços. O primeiro convento dos Agostinhos Descalços foi construído em Lisboa, no sítio do Grilo (freguesia do Beato), pelo que os frades ficaram conhecidos como os Grilos. A Igreja dos Grilos no Porto é em estilo barroco. 3. Pop. Espécie de jogo popular. 4. Fam. Pénis de criança. 5. Gír. Relógio de algibeira.
grilo2 [grílu]. adj. m. (Do lat. grillus). Diz-se do frade que pertence à Ordem dos Agostinhos Descalços. Frade grilo.
Desconheço a sentença que o Tribunal de Braga, possivelmente, ainda não proferiu. No entanto, e dado que tenho muita experiência em casos semelhantes, estou em condições de decidir que as custas do processo correrão por conta de Alzira pelas razões que passo a apresentar:
1.) Fica demonstrado que a palavra "grilo" não está oficialmente identificada com qualquer porção do organismo das empresárias. Um "grilo" pode ser um insecto, um frade, um jogo popular, um pénis de criança, ou um relógio de algibeira. Uma balgina não pode ser nenhum dos items referidos anteriormente;
2.) Na sequência do ponto 1.), considera o Tribunal de Braga que a queixosa Alzira tratou de bloquear o aparelho judicial do país, que tão difíceis tempos atravessa, com questões maliciosas ancoradas em porcarias que carecem de fundamento.
O arguido Miguel Costa será sujeito a uma repreensão, por abuso de talento. Considera o Tribunal de Braga que as liberdades poéticas concedidas aos cidadãos têm limites, e que esses limites devem circunscrever-se á compreensão das vizinhas, bem como de todo o tecido empresarial português. Não devem as obras artísticas conter vocábulos de significação dúbia, passíveis de interpretação ambiciosa por parte dos outros membros da comunidade.
Aconselha-se Miguel Costa a manter o grilo sob apertada supervisão, abstendo-se de construir sobre ele futuras composições. Sugerem-se cantos que tenham por base animais de interpretação mais serena, como "fanecas", "ratas", ou "passarinhas", que até à presente data não apresentaram problemas ao sistema jurídico da nação.
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* A peça "Cacei o grilo" pode ser ouvida neste link, durante uma actuação de Miguel Costa (contracenando com Marta, de quem falaremos noutra ocasião) no "Festejo do 25º aniversário do Autocarro das 6 da Rádio Voz do Neiva". Sublinha-se a euforia da plateia.
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