Segunda-feira, 23 de Abril de 2012

As conversas

  

 

As conversas são, tradicionalmente, uma forma de aproximar as pessoas. É preocupante concluir que, de há uns tempos a esta parte, as pessoas deixaram de saber conversar.

 

Começa logo na escolha do tema. Se excluirmos a bajulação e a intriga, não me lembro de mais nenhum que possa interessar. Por exemplo: a dívida. É um tema excelente, capaz de entusiasmar uma mesa com muitos convidados, se tratarmos de esmiuçar a dívida do Adérito, do Mendonça ou da Raquel, e desde que essa dívida tenha sido contraída na sequência de um processo de divórcio, de chantagem, de favores políticos ou de rinoplastias particulamente complexas. Se o endividado estiver presente, melhor. Mas atenção, convém ser específico: se a dívida for "dos portugueses" ou "dos madeirenses" a conversa tende a perder o viço. Até pelas razões da dívida, como veremos a seguir.

 

É absolutamente indispensável, para que a conversa seja fecunda, que a dívida em questão tenha origens humilhantes. Se um país inteiro se endividou porque passou trinta anos a curtir mordomias pagas pelos alemães, isso não é motivo de humilhação. É motivo de orgulho e até de bravata porque, qualquer europeu percebe imediatamente, se trata de um país de rapaziada bem disposta, despreocupada, e que sabe apreciar o que a vida tem de prazenteiro. Acima de tudo, trata-se de um país de gente urbana e sedutora - ingredientes sem os quais nenhum vigarista consegue uma carreira digna desse nome. Pelo que a dívida pública não tem qualquer interesse, num jantar ou num debate televisivo, e era bom que os membros do governo tomassem nota deste facto.

 

Não há nada mais grosseiro do que uma conversa à qual seja necessário prestar atenção. Suponhamos que o dr. Passos Coelho pretende bajular as audiências dizendo-lhes que os portugueses não alinham em escolas manhosas, porque preferem que os seus filhos tenham uma educação exigente em vez de gastarem o tempo e o dinheiro em aulas de cidadania, de ballet, de expressão artística ou outra pieguice qualquer. Tem que chegar ao estúdio e dizer esta frase, assim tal e qual, toda direitinha. Não é esperar pela inauguração de um edifício tremendo, armado de um sistema de ar condicionado de tal maneira complexo que ninguém o sabe ligar, com as janelas todas bloqueadas em nome da segurança das crianças e equipado com os candeeiros mais caros do mercado, e fazer, com a testa luzidia e o buço perlado de suor, um discurso de uma hora e vinte minutos que nenhum português tem paciência para acompanhar.

 

Uma conversa em condições é aquela em que estamos a tratar de assuntos que são importantes para nós; como empernar com um administrador da Parpública que está sentado do outro lado da mesa, ou investigar para que lado é que os empregados do restaurante arrumam os seus orgãos genitais.

 

Pior do que conversar com alguém, é prestar atenção ao que alguém nos diz. Isso vai dar-lhe a sensação de que estamos interessados na conversa. No caso de se tratar de um político, de um comentador, de um banqueiro ou de um "agente cultural", o equívoco é particulamente grave porque nos tornamos coniventes com a dimensão que estes egos atingem, e quando menos esperamos temos o país em peúgas.

 

Por isso o verdadeiro patriota, com sensatez e com berço, nem deve olhar para a pessoa que fala com ele. A atitude certa é virar as costas e deixá-la a falar sozinha. Caso não seja possível, devemos agarrar no iPhone, ligar ao facebook com um perfil falso, e passar o resto do serão a marcar encontros com os filhos das nossas amigas. Desta maneira, garantimos uma série de frustrações e atritos domésticos que, como se sabe, contribuem para o "processo de estruturação" de qualquer adolescente. E asseguram um número conveniente de postos de trabalho aos psicólogos, sociólogos, assistentes sociais, pedagogos, pedo-psiquiatras e toda esta espécie de profissionais que, de outro modo, ninguém estaria na disposição de pagar.

 

publicado por Margarida Bentes Penedo às 02:34
link do post | comentar
4 comentários:
De Anónimo a 24 de Abril de 2012 às 06:37
Margarida, aos profissionais mencionados faltaram os arquitectos que dão cabo das nossas cidades.
De Margarida Bentes Penedo a 24 de Abril de 2012 às 13:28
Quem dá cabo das nossas cidades, caro Anónimo, não são os arquitectos. Nem tão pouco são os proprietários, se quer saber.

Quem dá cabo das nossas cidades são os "poderes públicos", whatever that means.

Comentar post

Pesquisar neste blog

 

Autores

Posts mais comentados

Últimos comentários

https://www.aromaeasy.com/product-category/bulk-es...
E depois queixam-se do Chega...Não acreditam no qu...
Boa tarde, pode-me dizer qual é o seguro que tem??...
Gostei do seu artigo
Até onde eu sei essa doença não e mortal ainda mai...

Arquivos

Janeiro 2020

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Links

Tags

25 de abril

5dias

adse

ambiente

angola

antónio costa

arquitectura

austeridade

banca

banco de portugal

banif

be

bes

bloco de esquerda

blogs

brexit

carlos costa

cartão de cidadão

catarina martins

causas

cavaco silva

cds

censura

cgd

cgtp

comentadores

cortes

crise

cultura

daniel oliveira

deficit

desigualdade

dívida

educação

eleições europeias

ensino

esquerda

estado social

ética

euro

europa

férias

fernando leal da costa

fiscalidade

francisco louçã

gnr

grécia

greve

impostos

irs

itália

jornalismo

josé sócrates

justiça

lisboa

manifestação

marcelo

marcelo rebelo de sousa

mariana mortágua

mário centeno

mário nogueira

mário soares

mba

obama

oe 2017

orçamento

pacheco pereira

partido socialista

passos coelho

paulo portas

pcp

pedro passos coelho

populismo

portugal

ps

psd

público

quadratura do círculo

raquel varela

renzi

rtp

rui rio

salário mínimo

sampaio da nóvoa

saúde

sns

socialismo

socialista

sócrates

syriza

tabaco

tap

tribunal constitucional

trump

ue

união europeia

vasco pulido valente

venezuela

vital moreira

vítor gaspar

todas as tags

blogs SAPO

subscrever feeds